Papéis de gênero e maternidade, entrevista com Dilma Rousseff

A ex-chefe do executivo ilustrou o preconceito de gênero na política: “enquanto mulheres são suaves e emocionais, homens são precisos e racionais”

Imagem: reprodução
por Bibi Tavares

A primeira mulher brasileira a chegar ao mais alto cargo do poder Executivo tem uma trajetória marcada por períodos atribulados, mas, também, de orgulho para muitas mulheres. Numa conversa de uma hora com O Partisano, a ex-presidenta sintetiza de forma mais fiel como a figura da mulher na política é considerada quase um absurdo, algo ultrajante para a aristocracia tupiniquim.

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Dilma Vana Rousseff chega à presidência em janeiro de 2011 e permaneceu no cargo até 2016, ano do fatídico golpe no já moribundo Brasil. Durante todo esse período, viu e sentiu a misoginia ser usada da forma mais depreciativa possível para abalar sua autoestima, sua moral e seu governo. Naquela época, os ratos já faziam a festa e até mesmo o fiasco genético também conhecido como membros do MBL, adolescentes de bigodinhos esverdeados de puberdade e resquícios de molho de hambúrguer, se sentiam no direito de ofender uma mulher chamando-a de “burra” e outras podrices.

Por sorte, Dilma Rousseff é extremamente lúcida sobre tudo o que lhe ocorreu nos últimos anos, mostrando que mesmo depois de tantas traições, ainda se propõe a pensar as questões que assolam nosso falido cotidiano. A ex-chefe do executivo deu início à conversa ilustrando como as pessoas traduzem a presença de uma mulher num ambiente historicamente reservado para homens:

“[O estereótipo] envolve mulheres que são frágeis, inadequadas pra atividade política, suaves, emocionais, particulares; contra um perfil masculino que é forte, preciso, adequado, racional, universal. Essa duplicidade foi trabalhada o tempo inteiro contra mim.”

Como bem cita Dilma, “essa visão [do preconceito contra a mulher em cargos de poder] remonta à IV Conferência da ONU, em que três conceitos foram divulgados pelo movimento de mulheres: gênero, empoderamento e a transversalidade.”, se referindo à IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, ocorrida em 1995, em Pequim.

IV Conferência Mundial sobre a Mulher com o tema central “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz.” Imagem: ONU Mulheres

O evento trazia em sua agenda o fundamental comprometimento dos direitos das mulheres como parte dos direitos humanos, tendo como base o conceito de gênero, o necessário – porém controverso – empoderamento e a transversalidade de políticas públicas que contemplem e possibilitem essas tarefas. No caso do empoderamento, o debate é ruidoso, pois como bem se sabe, esse termo costuma ser usado como ferramenta para estimular o individualismo e a competição entre mulheres, sabotando a união e a solidariedade de gênero e classe, mas esse é um outro tema para um outro texto.

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Voltemos à ONU e Dilma. Essa Conferência em Pequim vai ao encontro da terceira onda feminista, onde as questões de gênero começam a tomar forma, com intensas discussões sobre perfomance da feminilidade, papéis de gênero – principalmente com os trabalhos de Judith Butler. Nesse contexto, a transversalidade surge como uma ferramenta necessária para fazer com que as demandas das mulheres fossem atendidas de acordo com suas realidades, levando em consideração idade, etnia, sexualidade, classe e religião. Ou seja, as mulheres dependiam de políticas públicas – como cotas, por exemplo – para que fosse garantido seu lugar no espaço público.

Infelizmente, mesmo depois de 26 anos dessa Conferência, apesar do número de mulheres ter dobrado no mercado de trabalho brasileiro, nos cargos médios elas ainda ganham 20% a menos do que homens. Já nos cargos de topo, os mais bem pagos do país, a diferença salarial entre mulheres e homens é a mesma desde a década de 70!

“Eu era uma gerentona”

A ex-chefe do executivo entende que o patriarcalismo foi usado como pano de fundo para o golpe. Esse, por sua vez, foi aplicado para “enquadrar o Brasil econômica, social e geopoliticamente ao neoliberalismo”, como ela cita. Isso deixa claro como a questão do gênero é usada de acordo com a conveniência do freguês, ora pra  “incentivar ” a luta, capitalizando as pautas, ora para derrubar governos. É isso o que acontece quando a mulher “ousa sair de uma posição, digamos, doméstica, privada, para qualquer espaço público. Notoriamente, isso se radicaliza quando se trata da presidência da república.”

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Os ataques, olhares tortos e comentários misóginos que Dilma sofreu revelam a exaustiva tática, às vezes até inconsciente, das mulheres para se fazerem ouvidas nesses locais: performar como um homem. Sim, sem meias palavras, agir como um homem agiria, falando grosso, mais alto, cara fechada, sem risadinha! A ex-presidenta era sistematicamente apontada como uma “gerentona”, uma mulher dura, e não como uma chefe de estado plenamente capaz de dirigir o país sem ter um ataque de nervos, como a mídia golpista da época chegou a sugerir.

“Eu era uma pessoa dura. Um homem seria forte, incisivo; a mulher é dura.  Ao mesmo tempo, como eles não têm muito respeito pela lógica, eu era frágil, passional.”

Capa da IstoÉ com Dilma gera polêmica e acusações de machismo - Jornal Opção
Capa da Isto É acusando Dilma de estar prestes a ter um ataque de nervos, utilizando uma foto fora de contexto. Imagem: reprodução

Azar da infeliz autora da reportagem, pois, como bem lembra Dilma, e essa passagem com certeza deveria ficar grava na história, ela não estava prestes a surtar:

“Eu aprendi a suportar tensão e pressão quando eu fui presa e quando fui torturada, ou aprende a suportar ou não sobrevive. Então, você tá no limite ali e sozinho, ninguém ali gosta de você.”

Palmatória e pau de arara: Dilma conta detalhes de como foi torturada
Imagem: reprodução

Apojadura: “eu fui mãe na ditadura militar”

Se ser mãe em 2021 ainda é lidar com machismo, marginalização, preconceito, falta de políticas públicas e espaços públicos adequados, como não era na década de 70, em plena ditadura entrando em decadência? Gente como a gente, Dilma nos contou que foi uma situação bem complicada, agravada pelo fato de sua filha, Paula Rousseff, ter asma. Então, vez ou outra tinha que sair correndo para socorrer a menina.

“Eu tive uma filha só e a minha filha tinha asma, era extremamente complicado. Saia correndo de reunião […] Eu fui mãe durante a ditadura, eu não fui mãe na democracia, eu fui mãe numa situação de baixa abertura e eu ainda estava na universidade.”

Maternar em períodos ditatoriais quando se é da oposição é uma situação delicada, porque a tendência é você querer proteger sua prole e, numa ditadura, os algozes não têm escrúpulo nenhum. O histórico de tortura e morte de mulheres grávidas ou com seus filhos na ditadura militar brasileira é extenso. Em 1974, dois anos antes da filha de Dilma nascer, Dinalva Teixeira Oliveira, militante do PCdoB e membro da guerrilha do Araguaia, foi executada após ser presa e torturada. Ela estava grávida. Outro caso bem conhecido é o de Maria Amélia Teles, fortemente torturada por Carlos Brilhante Ustra, ídolo de Bolsonaro. Teles levou choque, foi estuprada, ficou no pau-de-arara e, para completar, os militares levavam seus filhos para que eles a vissem urinada e ensanguentada, fazendo terrorismo psicológico.

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Na época, Dilma ainda teve que conciliar a maternidade e militância com sua vida acadêmica, que foi interrompida após sua prisão. A ex-presidenta iniciou sua trajetória política no movimento estudantil e decidiu cursar economia na Universidade Federal de Minas Gerais, mas por ter ficado mais de dois anos no cárcere, acabou perdendo a matrícula. Anos mais tarde, esteve presente em todo o governo Lula em diversos cargos até chegar à presidência da república.

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Ouça a entrevista completa, ou assista no vídeo abaixo:

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