O velho mundo e sua herança maldita

A derrubada da estátua de um comerciante de escravos em Bristol reacendeu a discussão sobre como lidar com as memórias sombrias de nossas civilizações

Colombo vai ao chão. Imagem: reprodução
por Bibi Tavares

O ano de 2020 chegou furioso em cima de grande parte da população mundial, com direito a pandemia e todos os outros ingredientes extras. A cada dia estamos vendo o colapso de nossa existência, mas não sem reagir, e não sem dar uma resposta ao sistema. O assassinato de George Floyd, por exemplo, foi um desses acontecimentos que desencadeou uma série de respostas, violentas ou não, ao racismo estrutural no mundo. No último domingo (7), na cidade de Bristol, Inglaterra, impulsionados pelo movimento #BlackLivesMatter, manifestantes derrubaram e jogaram no rio Avon a estátua de Edward Colston, um empresário que foi responsável pelo tráfico de mais de 100 mil escravos negros da África para o Caribe e a América durante 17 anos.

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Pelo que consta na história, assim como muitos genocidas, racistas, nazistas, Colston também era filantropo, mais especificamente de Bristol, sendo esse o argumento utilizado por muito tempo para justificar sua estátua na cidade. Aqui no Brasil também temos os nossos infelizes, e de muito mau gosto, monumentos em vias públicas.

Qual paulistano nunca deu de cara com os 240 blocos de granito que compõem a obra de Victor Brecheret em homenagem aos bandeirantes em frente ao Parque do Ibirapuera, ou com a estátua de 12,5 metros de altura do bandeirante Borba Gato, ali em Santo Amaro, zona sul de São Paulo? Para quem não sabe, os bandeirantes, também conhecidos como “desbravadores” pelos saudosos da escravidão, amantes do latifúndio e outros equivocados, eram homens enviados pelos colonizadores portugueses para procurar e tomar as riquezas da América do Sul, além de buscar indígenas para escravizar e quilombos para exterminar. Inclusive, há uma infeliz ironia sobre as aldeias indígenas do Jaraguá, em São Paulo, que estão literalmente no pé da Rodovia dos Bandeirantes, inaugurada por um dos esgotos da ditadura, Ernesto Geisel.

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Sim, a mão de derrubar essas aberrações da cidade chega a tremer. Em 2016, ano de eleição para a prefeitura, a estátua dos Bandeirantes amanheceu cheia de tinta. A intervenção se deu como protesto ao debate contra pichação e grafiti, e na época a grande mídia tratou os autores da intervenção como vândalos e vagabundos, mesmo cientes do significado daquele monumento.

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Intervenção no monumento aos Bandeirantes. Imagem: Alex Falcão

Atitude um tanto diferente aconteceu em relação à derrubada da estátua de Colston, onde o chefe da polícia local, Andy Bennett, afirmou que, apesar de estar decepcionado com a forma como os manifestantes trataram a estátua, entendia perfeitamente o motivo daquela ação e, a fim de não causar desordem, ele optou por não intervir, mesmo ciente do que estava acontecendo.

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Essa ação dos manifestantes reacendeu a discussão sobre o que fazer com esses monumentos que homenageiam nomes que, no passado, foram responsáveis por massacres, escravidão, estupros e torturas dos povos nativos, ou mesmo em momentos históricos como o Holocausto e as ditaduras. Mas derrubar essas estátuas, destruir esses locais que foram marcos sombrios na história, vai reparar toda a dor e sofrimento causados?

Preservar a história

Apesar da enorme satisfação em depredar e triturar a estátua dessas figuras, não se deve deixar que a história seja ocultada ou apagada, pelo bem do próprio povo vítima desses genocidas. Quando se desaparece com uma estátua dessas, quando se esconde a obra de determinado autor, sem qualquer explicação ou menção fixada de alguma forma, a impressão que fica é a de que toda a herança histórica de dor, luta e resistência também se vai. O historiador Laurentino Gomes, por exemplo, acredita que apagar essas personalidades da história é um erro, “devem ser preservados como objetos de estudo e reflexão”.

Luis Antônio Dias, professor da PUC-SP e doutor especialista em memória, pontua que se deve realocar essas obras fora das vias públicas, em lugares como museus e memoriais, onde a memória do fato histórico será preservada com a devida explicação, pois “quando você some com documentos ou imagens é como se você fizesse um apagamento. Se você tira essas imagens, daqui vinte ou trinta anos elas somem da história e não houve um debate. É importante que você substitua e coloque um marco (…) explicando que a estátua foi retirada em determinado momento por conta de um movimento da sociedade civil com pressões para alterá-lo. Isso é um processo histórico que faz parte desta memória.”

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O povo não pode ser privado de conhecer sua história, por mais sombria e criminosa que ela tenha sido. Na Alemanha, por exemplo, mesmo com toda a herança carregada de dor, o povo sabe que o nazismo foi uma prática terrível não apenas por ler nos livros de história na escola, mas pelas memórias materiais que se encontram em locais como o campo de concentração em Auschwitz. A história e a memória devem ser preservadas como uma das principais armas de defesa contra as armadilhas do futuro e daqueles que se espelham no passado.

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“O trabalho liberta”. Portão principal de Auschwitz. Imagem: Muzeum Auschwitz-Birkenau

 

 

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