Gestão catastrófica do Brasil na pandemia não pode ser atribuída simplesmente à incompetência, mas revela, pela persistência, um plano político definido

por Alexandre Lessa da Silva
“Deus não joga dados com o universo”, afirmou Einstein em uma de suas cartas em que critica a mecânica quântica. Dentro da visão de mundo do físico alemão, portanto, não há espaço para o acaso no universo, tudo tem uma razão para ser, existir. Também Leibniz, ao postular seu princípio da razão suficiente, afirmou que tudo tem uma razão de ser, ou várias. Em casos em que o acaso parece falar mais alto, o que ocorre, de fato, é o nosso desconhecimento das razões que produziram um acontecimento. Apesar da infinita e irresoluta querela entre determinismo e indeterminismo não poder ser resolvida, uma coisa é certa, não se pode ser ingênuo na hora de buscar as causas que determinam um evento, como ocorre com a política sanitária brasileira em relação à pandemia, ou sindemia, de COVID-19.
Apesar de todo Brasil saber que o governo Bolsonaro não é pautado pela qualidade técnica de seus integrantes, o caos sanitário e econômico de norte a sul do país não é uma questão de incompetência, uma vez que até a incompetência tem limite. Não, não é o caso, trata-se de um programa, de um projeto.
Não é necessário ser médico ou pesquisador da área para ver que uma doença viral tem a tendência de se espalhar quando não há forma de combatê-la, a não ser o distanciamento social e a higiene adequada, incluindo o uso das máscaras. Entretanto, o governo brasileiro, indo de encontro aos especialistas e a maior parte dos governos do mundo, preferiu combater o distanciamento, as máscaras e a higiene, apresentando uma falsa dicotomia entre a saúde e a economia. Incompetência? Erro? Não, projeto, já que seria muito mais vantajoso, do ponto de vista político e econômico, tentar equacionar a posição dos governadores e o desejo dos empresários, apesar de, ainda assim, não ser justo, já que a justiça deveria afastar o desejo do empresariado e o próprio interesse político dos governadores, e rumar no sentido do que é certo, correto, ou seja, proteger a vida acima de tudo.
Bolsonaro teve outra grande oportunidade, quando as vacinas começaram a se tornar algo um pouco mais concreto. Num país que produz quase 100 % das vacinas para gado e tem 30 fábricas com este objetivo e que, por sua vez, importa 90% das vacinas para seres humanos, pois só há duas fábricas com este fim, não é difícil prever que teríamos que importar vacinas contra o Sars-CoV-2. É de uma clareza e distinção cartesianas que a aposta na vacinação implicaria um ganho político muito grande, além de produzir um gigantesco ganho econômico, mas Bolsonaro preferiu fazer o contrário e transformar o Brasil num risco para todo o mundo. Mas, por que ir contra o que é evidente? A causa, novamente, não pode ser a simples incompetência; há um querer maligno nisso tudo.
Anular os outros poderes
A escolha de Moro, responsável pela condenação que deixou seu principal adversário fora da disputa presidencial, como ministro, os ataques desnecessários a outros poderes, a política ambiental desastrosa, a falta de direcionamento econômico, a briga diplomática com nossos principais parceiros comerciais, o desprezo pelo povo brasileiro em suas declarações, o antissemitismo pululante de membros de seu governo, a destruição da educação pública e, como já foi dito, o apoio irrestrito ao vírus são partes de algo muito maior.
Não há dúvida que a extrema direita em todo mundo tem, em seu discurso, uma política do confronto. Entretanto, Bolsonaro passa de todos os limites, revelando que há um programa que visa destruir as bases do Estado brasileiro e do que ainda resta de democrático nele. Em tal projeto, há uma quebra de todos os poderes, deixando apenas um poder de pé. O Poder Legislativo não passa, no momento, de um fantoche nas mãos de Bolsonaro, uma vez que o Centrão fornece todo apoio para que o Executivo continue com seus pacotes de maldades. O Judiciário, por sua vez, não tem força para enquadrar Bolsonaro por todos os crimes já apontados pela imprensa, assim como a maioria de seus aliados poderosos. O Ministério Público, tão combativo e prejudicial ao país na era PT, definha a cada dia diante do poder da extrema direita que, ele mesmo, ajudou a colocar no poder. A imprensa, tida por muitos como o quarto poder, perdeu a credibilidade e desmancha diante das redes sociais, sendo massacrada por aquele que apoiou. Resta, portanto, um único poder, e ele não é, exatamente, o Executivo. Este poder é o Exército.
O papel dos EUA do golpe até Bolsonaro
Os Estados Unidos, interessados pela Petrobras e demais potenciais nacionais, já manobravam para ter o controle dos órgãos de investigação brasileiros desde 1999, conforme a entrevista de Carlos Costa, chefe do FBI no Brasil de 1999 a 2003, na edição 283 de Carta Capital (24/03/2004). Apesar disso, parece não ter existido, durante esse período, o planejamento de um golpe para o Brasil.
Em 2013, entretanto, tudo muda, a partir das revelações de Edward Snowden que a Petrobras e a presidente Dilma Rousseff haviam sido espionadas pelos Estados Unidos. Nada mais comum, é evidente que os Estados Unidos, assim como todo país desenvolvido, espionam para atingir seus interesses. No mundo da Realpolitik, não há o que se espantar. Todavia, Dilma reagiu muito mal a essa divulgação, já que seria impossível ela não ter dado conta que isso ocorria, e as relações diplomáticas entre os dois países acabaram desgastadas. A partir daí, os Estados Unidos esperaram que Dilma não fosse reeleita, uma vez que foi intensificada a aposta na Lava Jato, mas no final de outubro de 2014, Dilma se reelegeu, o que levou à ideia, junto com todas as forças envolvidas em território nacional, de um golpe contra Dilma. Não há como afirmar quem foi o responsável pela ideia de um soft coup, mas certamente o objetivo era estabelecer um governo neoliberal para comandar o país.
Michel Temer assume o poder como um governo transitório que prepara o caminho para um governo do PSDB, algo que não ocorre.
Donald Trump é eleito o 45º presidente dos Estados Unidos na eleição de 2016. Com isso, tudo muda, e o presidente de extrema direita estadunidense passa a preferir a extrema direita brasileira e seu plano de um só poder. Para Bolsonaro, há um só modelo, um único paradigma, e ele não é democrático. Bolsonaro, assim como seus fiéis apoiadores, só reconhecem o padrão da Ditadura Militar de 1964, nada mais. Nesse modelo, o Exército é a única força existente e o interesse da elite é quase sempre atendido. Travestido de democracia, o governo tenta realizar seus planos, tendo a figura de Bolsonaro como aquela que garante um certo apoio popular a esse projeto. Resta saber se o descontentamento da metrópole com todo esse projeto, como já demonstrou Joe Biden, será o suficiente para que arrisque a vitória da esquerda nas próximas eleições.
Racionalmente, um governo de centro-esquerda no Brasil não prejudicaria os Estados Unidos, como acontece com o governo Bolsonaro, uma vez que já demonstrou ser um perigo para toda humanidade. Entretanto, quem disse que a política é algo racional? Apesar disso, o governo Biden tem muitas razões para querer o fim do governo Bolsonaro: a Amazônia, a possibilidade de novas variantes do vírus surgirem e ameaçarem o mundo pela conduta de Bolsonaro, os discursos de Bolsonaro e Ernesto Araújo defendendo Trump e os invasores do Capitólio e, agora, a possível participação de Eduardo Bolsonaro no complô que preparou a insurreição de 6 de janeiro no Capitólio.
O site Proof publicou ontem, 6 de março, uma matéria investigativa em que afirma que Michael Lindell, conselheiro de Donald Trump e CEO da MyPillow, encontrou-se com Eduardo Bolsonaro no dia 5, um dia antes da invasão e no mesmo dia em que um suposto “conselho de guerra pré-insurreição” se encontrou na residência privada de Trump, no Hotel Trump International. Seth Abramson, jornalista responsável pelo artigo, escreveu que “detalhes anteriormente desconhecidos da reunião de Lindell-Bolsonaro, em 5 de janeiro, podem estabelecer ligações entre o círculo interno de Trump e a insurreição de 6 de janeiro e o ataque ao Capitólio”.
Resta, portanto, saber até onde essa investigação vai e o que ela pode, ainda, revelar. Todavia, uma coisa é certa, Bolsonaro não terá pólvora o suficiente para combater um império, caso as alegações de Seth Abramson sejam comprovadas.
[…] O Brasil foi rasgado pelo grito “fora Bolsonaro” por todo país. O grito, entretanto, não soou apenas em território nacional, mas em várias partes do mundo, já que cidades como Londres, Paris, Berlim, Lisboa, Bruxelas, Amsterdã, Genebra e Nova York se juntaram às mais de 200 cidades brasileiras que deixaram claro seu repúdio ao carniceiro da cloroquina, assim como seu projeto niilista reativo de destruição da vida dos brasileiros e de sua nação. […]