O possível, o necessário e o revolucionário

Plano de reconstrução nacional do PT dá um horizonte de mobilização pela base e expressa contradições do Brasil e de sua classe operária, que ecoam dentro do partido

Imagem: Ricardo Stuckert
por Matheus Dato

Em setembro de 2020, o Partido dos Trabalhadores deu a última forma de um projeto ousado e longamente gestado por sua fundação de apoio, a Fundação Perseu Abramo. Causando um certo estranhamento, visto que as lentes da análise política se voltam ao contexto municipal em virtude das eleições que se aproximam neste ano, o PT levou a público o seu projeto político de reconstrução nacional. Com o título “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil”, a proposta contempla uma análise de conjuntura e diagnóstico dos problemas experimentados pelo país, bem como a proposição de medidas variadas em curto, médio e longo prazo, de caráter tanto emergencial como estrutural, além de apresentar ao povo brasileiro também uma conclusão sobre os erros e acertos que nos conduziram a este antro estreito.

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De certo modo, talvez seja a típica empáfia do militante de esquerda a falar agora, mas a possibilidade de avançar ou retroceder no debate das alternativas relacionadas à presente crise do capitalismo passa, necessariamente, por compreender concretamente o que pretende fazer o maior partido brasileiro do campo popular. Para desprezar ou endossar, não se pode passar ao largo deste documento histórico que lança questões fundamentais a serem desvendadas pelos construtores do socialismo brasileiro; não somente uma plataforma, o Plano de Reconstrução é um retrato confiável das contradições internas inerentes ao partido e também uma expressão importante da temperatura da luta de classes em meio ao rescaldo diante do imperialismo que assola a nação. Seria de extrema imprudência, então, decidirmos nos calar a respeito deste assunto.

Em primeiro lugar, cumpre dizer que não é este o espaço para resumir e explicar as múltiplas páginas do documento, e reafirmo que este deveria ser lido por todo militante comprometido, discutido com os trabalhadores e finalmente construído de maneira real e material. O objetivo de se dedicar algumas palavras ao pequeno livro petista é tecer uma crítica atenta ao que está dito e ao que não está dito no programa, jogar luz sobre certas divergências que rondam a discussão de um projeto socialista e conjecturar sobre possíveis desdobramentos do que pretende fazer o Partido dos Trabalhadores e, talvez, o progressismo brasileiro de maneira ampla.

Reações previsíveis

Objetivamente, a expressão mais notável desta situação que agora discutimos é o festival de absurdos que sucederá à publicação do Plano: este documento imprescindível para a luta atual estará condenado ao silêncio da imprensa burguesa ou ao escárnio público dos sujeitos mais débeis mentais que posam como comentaristas políticos caso não haja uma mobilização em todos os âmbitos para que esta proposta seja conhecida, discutida e que a classe operária participe dela. Após isto, ainda veremos um séquito de contestadores do óbvio, a vanguarda iluminada da esquerda sectária que enxergará nesse programa nada mais que uma reedição do reformismo vulgar e costumeiramente até inexistente de determinadas gestões petistas. Prevalecerá, no final das contas, a análise materialista das condições e se apropriará melhor do plano o coletivo que for mais capaz de penetrar fundo na realidade catastrófica do capitalismo dependente, que arrasta à barbárie o maior número de brasileiros em toda a história.

O Plano e as contradições nacionais

Dito isso, o necessário a ser dito sobre a política ali contida é que o observador atento ali verá expressa toda a contradição inerente aos trabalhadores brasileiros e ao Partido dos Trabalhadores. As aspirações democráticas mais elementares, a repetição de uma confiança idealista em uma refundação pacífica das instituições divide espaço com níveis de compreensão mais elevados que chegam, finalmente, ao socialismo, ainda que permeado de uma certa obscuridade. E assim é o Brasil e o PT.

Longe de exaurir o tema, o desenvolvimento dependente do capitalismo brasileiro e a ausência de um projeto burguês de democracia nacional soberana moldaram incisivamente a consciência de classe do proletariado e da própria classe dominante desde que o nosso primeiro senhor se instalou nestas terras como representante do interesse estrangeiro do centro da civilização em transição, grosso modo, como ensinado por Florestan Fernandes em sua reflexão sobre a luta de classes e o subdesenvolvimento, em conjunto com outros mestres do marxismo nacional. A principal pauta dos revolucionários brasileiros, desde a fundação do movimento sindical até a ascensão dos partidos comunistas do Brasil, esteve intimamente ligada à necessidade de um desenvolvimento material que elevasse as condições de produção do país a um nível avançado dentro dos padrões capitalistas que se revezaram ao longo de nossa história; o desenho do desenvolvimentismo da década de 30, o auge da expressão da crise na II Guerra Mundial e o fechamento de duas ditaduras em território brasileiro jamais permitiram ao militante esquecer das contradições impostas pelo imperialismo ao nosso poder político e sequer tiraram dos olhos dos trabalhadores brasileiros a realidade de uma miséria que parecia impossibilitar de maneira definitiva a construção de qualquer nova realidade que fosse.

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Dentro deste quadro, o surgimento de um partido de base sindical como o Partido dos Trabalhadores, filho da crise do capital internacional e do socialismo real na década de 80, ficou profundamente marcado por esta dinâmica de convivência de um programa mínimo de aprimoramento e libertação democrática das forças produtivas e das classes produtoras com um programa máximo de estabelecimento de uma nova ordem social baseada na livre associação dos trabalhadores em uma realidade socialista. A carta de princípios do PT, de 1979, preconizava a impossibilidade de uma democracia sem socialismo e de um socialismo sem democracia – e é para este fim que se fundou o PT, afinal. Ousar construir um socialismo pela base.

Mas a realidade se impõe e a degeneração burocrática, a vitória da burguesia mundial na guerra encarniçada contra os Estados operários do mundo inteiro e o refluxo do movimento de trabalhadores e estudantes no Brasil após a promulgação da Constituição de 1988 fizeram nascer no Partido os obstáculos de se construir a hegemonia proletária, justamente no seio do maior partido proletário do Brasil à sua época. E após golpes, linhas políticas erradas e renascimentos, o PT do século XXI não é tão diferente quando se trata da dialética entre a radicalidade e a institucionalidade presente nas suas fileiras.

Uma alternativa revolucionária no partido

Em segundo lugar, o plano é a continuidade de um processo longo e complexo de construção coletiva baseada nos núcleos de aproximação e observação de políticas públicas. Segundo o próprio texto, não é um manual editado por mentes iluminadas mas um programa popular desde o início. Isso nos leva a mais uma digressão necessária, o problema da lei dialética de eternas aproximações e distanciamentos entre os partidos operários e suas respectivas bases.

Se é verdade que a imaturidade política de dirigentes e militantes, a concepção errada a respeito da dinâmica de classes do Brasil e o comprometimento de dirigentes partidários com outras agendas levaram o PT a um afastamento de seu verdadeiro cerne, também é verdade que este período representou o ressurgimento de uma alternativa revolucionária no partido que parecia estar adormecida desde a conquista do Executivo. Também é verdade que poucos partidos se esforçaram tão grandemente em se reconstruir cotidianamente para retomar o caminho de sua linha política no pós-golpe de 2016.

O fio condutor deste raciocínio mostra que a perseguição sistemática ao maior partido de esquerda do Brasil denota ao mesmo tempo o desgaste da política recuada da conciliação de classes sem viés tático e da fórmula meramente eleitoral adotada. Em outras palavras, o bonde da história pode ter ultrapassado em diversos momentos o Partido dos Trabalhadores, mas a corrida não acabou e só acabará quando surgirem os resultados de nossa luta final. Não será possível a reconstrução do país se o PT estiver relegado ao plano de objeto descartável da classe dominante.

7 de setembro

Avançando ainda mais, alguns eventos específicos nos ajudam a compreender o verdadeiro caráter da peça política publicada no mês de setembro. Na data magna da República Federativa do Brasil, o presidente Lula realizou um pronunciamento desconfortável. Desconfortável pois se dirigiu sem rodeios a todo o Brasil, sem pedir licença ao monopólio da mídia e revelando o porquê de Luís Inácio ser Luís Inácio, para o bem e para o mal. O anúncio do discurso histórico de Lula foi a antessala, o ensaio, de que o partido está prestes a embarcar em um compromisso com um desenvolvimento global muito mais desafiador do que as plataformas democráticas anteriores. No momento em que nos vemos em meio a um impasse eleitoral, a figura do ex-presidente da República mostra que não se pode ignorar o preso político que se fez líder popular para depois ser preso político novamente.

Também há, por certo, a demonstração de um certo alinhamento, que existe ainda que não se traduza em unidade de fato, entre o programa político dos agentes históricos da esquerda no Brasil. As candidaturas do PSOL, PCdoB e o apoio manifesto da Unidade Popular pelo Socialismo e do PCB às atuações eleitorais do Partido Socialismo e Liberdade são o eco da mobilização, em patamares e bases teóricas e programáticas distintas, ao redor de um combate ao neoliberalismo parasitário no sentido do desenvolvimento de uma democracia desenvolvida. Colocadas certas coisas no seu devido lugar, o que retirar deste Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil?

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Combater o neoliberalismo

Ao começar, o diagnóstico conjuntural é certeiro na medida em que o programa aponta que a crise em que o Brasil se encontra mergulhado não é mero resultado de uma pandemia global e nem um acidente de percurso, e sim o projeto calculado de maneira cuidadosa pela elite a fim de maximizar os lucros dos setores mais monopolistas e poderosos da burguesia nacional e internacional, sacrificando nesta fogueira a sobrevivência do país em um pandemônio neoliberal.

Um aparte histórico: a ideia de um projeto antiliberal capitaneado pelo PT existe como tarefa histórica do partido desde a sua fundação e somente não apareceu como plataforma de governo na candidatura de 1989, a primeira de Lula, em virtude de uma série de eventos que fizeram com que esta posição marcadamente classista fosse derrotada, ainda que majoritária.

A primeira conclusão coerente a se tirar desta análise do Partido dos Trabalhadores é a de que, se temos plena consciência de que o capitalismo é incapaz de resolver seus próprios problemas e que a união entre neoliberalismo e fascismo é o retrato fiel destes mesmos problemas, então não podemos aceitar que grupos inteiramente comprometidos com a burguesia liberal se façam de democratas nesta hora tão vital para o futuro. Simultaneamente, o significado óbvio de uma afirmação como essa é que o PT não pode, de maneira alguma, aceitar qualquer reminiscência de uma mentalidade e prática neoliberais entre seus membros e em seu exercício do poder.

O projeto, desenvolvimentista do início ao fim, também implica necessariamente que não se pode pensar a existência de uma nova sociedade sem que um eixo composto por produção – sustentabilidade – democracia – soberania seja a base da vida do país. Portanto, a crítica será trabalhada de acordo com estes nortes.

Embora interconectadas pelos mais diversos laços, cada uma dessas áreas possui as suas complexidades próprias e obstáculos a serem superados.

Desemprego e miséria

Pela primeira vez, o Brasil encontra em sua população uma parcela maior de pessoas fora da vida produtiva do que efetivamente trabalhando; a série histórica de desemprego e recessão empurram a miséria para o alto. Ao mesmo tempo, a ausência de uma política econômica voltada ao interesse nacional, a desvalorização programada da moeda nacional, a destruição de reservas cambiais internacionais, o pico de exportações combinado ao desabastecimento interno, o fechamento dos médios e pequenos negócios, o fim da pesquisa voltada à indústria e a crescente desindustrialização e privatização dos setores estratégicos do tecido produtivo brasileiro são as expressões materiais de um país à beira do abismo.

O Partido dos Trabalhadores propôs, neste sentido, o combate às medidas antipopulares que se aprofundaram com o golpe, por meio da geração de empregos provisórios e postos de trabalho permanente, valorização do salário mínimo real por meio da combinação entre o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor, uma estatística utilizada para analisar a inflação) e a variação do PIB bianual, retomada do papel do Estado na intensificação da industrialização e complexificação das indústrias, fomento à pesquisa produtiva, novas linhas de crédito aos produtores, garantia de permanência do trabalho, nacionalização de setores energéticos e revisão de privatizações. A sustentabilidade está diretamente relacionada à constatação de que o agronegócio e os setores das classes dominantes dedicados à exploração ambiental não possuem qualquer consciência ou sensibilidade em relação à destruição da natureza e do patrimônio fauna-flora brasileiro; ademais, o plano apresentado também coloca no centro da discussão as problemáticas que envolvem os povos originários da floresta e as comunidades extrativistas dos diversos biomas nacionais.

Fim da expansão de fronteiras agrícolas, novas formas de produzir no campo, retomada da reforma agrária e uma legislação dedicada a aplicar medidas preventivas e punitivas no âmbito da institucionalidade são parte da resposta do PT ao problema.

De maneira ainda mais ampla, o Partido dos Trabalhadores propôs a refundação do Estado Democrático de Direito sobre novas bases populares, por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte soberana, trazendo novos mecanismos de controle popular sobre o poder político; revogação do teto de gastos, revogação das “reformas” liberais, revogação da Lei de Segurança Nacional, criminalização institucional de atos antidemocráticos, fortalecimento do SUS, retomada do protagonismo público na educação, desmilitarização das polícias estaduais, fim da Justiça Militar Estadual e a limitação de competências das Forças Armadas constam no plano ao lado da defesa da soberania brasileira, retomada da integração latino-americana, combate à unilateralidade imperialista protagonizada pelos Estados Unidos da América e a implementação de um novo programa militar de defesa da pátria são apresentadas na conjuntura.

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Como o Plano poderia ser adotado?

Tudo isto está dito no Plano, por que destacar esses pontos? Justamente porque é a partir deste debate que passamos a compreender que a proposta do Partido dos Trabalhadores é um plano de desenvolvimento e reformas necessárias e urgentes que não poderá triunfar a menos que seja imposto pelas classes trabalhadores, dentro dos parâmetros da legalidade e fora destes parâmetros.

As tarefas de reforma em um capitalismo subdesenvolvido como o brasileiro são tarefas revolucionárias, que esbarram e desafiam a uma luta mortal o atraso das classes dominantes e de nosso modo de produção. A história de nosso povo é a história das baionetas suplantando a construção de um país, é a invasão de um continente pelo elemento estranho em busca de riquezas. Se a tradição golpista nos ensina algo é que o republicanismo, a ilusão em uma saída democrática e independente de hegemonia, somente pode nos trazer um banho de sangue.

Que perguntas deveríamos fazer diante do Plano? As mesmas que o materialismo dialético sempre fez. Em um país dominado pela propaganda e pela alienação, que possibilidade de democracia participativa existe sem que a consciência de classe dos trabalhadores seja elevada a um ponto em que a sua missão histórica de dominar se faça inevitável?

Como desmilitarizar ordeiramente, pela lei, uma polícia que trabalha como engrenagem de um genocídio permanente? Esta mesma polícia é capaz de motins de cunho fascista, como bem observamos em capítulos recentes por motivos muito menores. Quem irá enfrentar estas armas?

As Forças Armadas, ponta de lança reacionária do imperialismo estrangeiro, permitirão que tal projeto seja sequer cogitado como política de Estado? A burguesia daqui e de lá, esta mesma que golpeou o Brasil em 2016, em 1964 e em muitas vezes mais, permitirá?

Está claro que tal Plano de Reconstrução é uma das páginas mais fundamentais desta fase da luta política não somente pela importância de suas propostas, mas acima de tudo pelos efeitos que produzirá nas consciências e nas organizações de operários da cidade e do campo. Uma Assembleia Livre que sepulte a herança ditatorial da atual Constituição Federal é tarefa para uma vasta rede de movimentos populares organizados em núcleos de democracia de base, possuidores de um congresso popular que caminhe para tornar obsoletas e ainda mais repugnantes as nossas instituições oficiais. A Reforma Agrária, por sua vez, não poderá jamais ser discutida sem a perspectiva do fim do latifúndio e da propriedade privada da terra.

Caso a esquerda seja capaz de se organizar em torno deste projeto comum, ou de características parecidas, estaremos diante de um quadro novo, em que a necessidade de preparar um povo militante, apto a defender este projeto de nação até às últimas consequências, triplicará. Quanto mais recuamos, mais raivosos se tornam os inimigos dos trabalhadores.

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O triunfo do Plano de Reconstrução Nacional representaria uma fase inédita de crescimento e melhora das condições de vida dos trabalhadores, mas será um sonho efêmero como tantas outras memórias latinas que dolorosamente conhecemos caso falhe a construção de um duplo poder sob o controle da classe operária. Celebremos este importante documento, mas mantendo a cabeça fria e o coração quente. Nossos frutos sempre caem das sementes que plantamos, e não do céu ou da mesa dos poderosos.

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