O partido revolucionário depois da Revolução Russa

Quando Lênin propunha um jornal impresso como organizador do partido, a imprensa era a última palavra em comunicação; e agora, diante de coisas como o rádio, a TV e a Internet?

Imagem: trecho do filme O Incrível Exército de Brancaleone
por Alexandre Flach

O texto abaixo é a quinta parte da série Fogo e revolta nas ruas: para onde vai a luta popular?

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Neste quinto texto da série “Fogo e revolta nas ruas: para onde vai a luta popular?” vamos dar uma olhada por dentro da organização usada pelos bolcheviques para chegarem ao poder, e que deu tão certo que originou uma nova forma de partido político: o partido revolucionário.

Vamos ver que, diferentemente dos partidos populares comuns, normalmente organizados por “tendências” – como são, no Brasil, o PT e o PSOL – o partido revolucionário não tem como principal objetivo ganhar eleições e participar do poder do Estado burguês. Os partidos nascidos da experiência bolchevique se dedicam principalmente a tomarem o poder pela ação política direta, à força se for necessário, instaurando assim uma nova forma de Estado, o Estado Popular, o Estado do povo.

Um partido-exército

Para chegar a este objetivo, o partido revolucionário se baseia em um programa prévio meticuloso, na maioria das vezes inspirado nas diretrizes das Internacionais Comunistas, do Partido Comunista Soviético, ou no Programa de Transição de Trótski. 

Além disso, a estrutura interna do partido revolucionário também é bastante diferente dos demais partidos populares. O partido revolucionário utiliza um sistema de organização chamado de “centralismo democrático”, onde instâncias setoriais de poder, normalmente compostas de grupos de base de seis a dez militantes, as células partidárias, vão centralizando debates e decisões até unificarem as várias teses em um “comitê central”, que sintetiza as conclusões gerais e as transforma em diretrizes a serem fielmente obedecidas por todos os membros do partido, numa ação única e coordenada.

Na verdade, o esquema básico do partido revolucionário no estilo leninista, seria algo como agregar um exército a um partido popular tradicional. Seu funcionamento passa a ter duas “fases”, por assim dizer: a fase de discussão, seguida pela fase de ação. No momento da “discussão”, todos os militantes do partido – uma vez que são comunistas – devem ser considerados absolutamente iguais para debater, sem censura, melindres pessoais ou hierarquizações artificiais, qualquer tema a ser decidido pelo partido. Na fase da “ação”, após ocorrer a decisão geral do partido, todos se convertem em verdadeiros soldados com hierarquia e disciplina. Um exército obstinado em apenas e tão somente cumprir as diretrizes vencedoras do debate político.

Uma poderosa ferramenta de luta dos trabalhadores

Na visão dos bolcheviques e dos leninistas em geral, este é o único esquema organizativo capaz de vencer a guerra contra o poder da burguesia para possibilitar o nascimento da sociedade sem classes. Construir um poderoso partido revolucionário seria a peça-chave do roteiro da revolução do povo.

Trata-se de algo tão importante que o centralismo democrático foi mantido como a base de organização do povo junto ao Estado Popular fundado pela revolução. É este o método fundamental de funcionamento das democracias populares da China e de Cuba, por exemplo. Um método que, conforme já vimos aqui, permite uma participação popular muito maior do que simplesmente votar, de dois em dois anos, nos candidatos escolhidos pelos outros, como acontece naquilo que ainda teimamos em chamar de “democracias”, nos países capitalistas.

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Construir um partido a partir de gráficas e jornais de papel

Com a ajuda do jornal e na relação com ele, irá se formando por si mesma a organização permanente que se ocupará do trabalho local, mas também do trabalho geral e regular, que acostumará os seus membros a seguir atentamente os acontecimentos políticos, a valorizar a sua significação e sua influência junto aos diversos setores da população, a elaborar métodos adequados que permitirão ao partido revolucionário influir nesses acontecimentos. (Lênin)

O grande problema é conquistar este alto grau de organização e disciplina muito antes de ele realmente aparecer aos olhos do povo como minimamente necessário. Ou seja, bem antes da rebelião popular explodir. Depois que o povo entra em movimento revolucionário, não há mais tempo nem condições materiais para tentar organizar um partido nos moldes bolcheviques. Ele já tem que estar pronto e atuando com todo o seu poder muito antes dos primeiros coquetéis molotov serem jogados nos Bancos.

Para este exército revolucionário estar pronto e atuante muito antes da rebelião popular aparecer no horizonte dos acontecimentos na Rússia, quando ninguém ainda acreditava em uma revolução naquele país – nem mesmo Marx e Engels ou seus discípulos – Lênin percebeu que deveria utilizar este momento, centrado na agitação e propaganda, como experiência concreta para os militantes aprenderem na prática a serem agentes maduros de um partido-exército.

Esta experiência acabou sendo enriquecida justamente pelas dificuldades de então. Como todos os bolcheviques eram clandestinos ou semi-clandestinos desde o início, pois tinham que atuar baixo a um regime fechado, um verdadeiro Estado Policial, onde o Czar e sua polícia possuíam poderes absolutos de vida e morte sobre o povo russo, a casca grossa revolucionária era construída desde os primeiros passos do militante bolchevique.

No início do século XX, o único meio do comunicação de massas era a imprensa escrita, o jornal. Neste contexto, a tarefa de produzir e distribuir clandestinamente entre os trabalhadores e camponeses um jornal de agitação e propaganda marxista e revolucionária foi a atividade utilizada para organizar, educar e trazer formação política para o partido revolucionário, preparando-o para a luta. 

Lênin devotou ao “empreendimento comunista” de construção e manutenção do jornal revolucionário toda a estruturação cotidiana do partido: organização partidária, recrutamento de novos membros, articulação de ações práticas, discussão política e ligação muito próxima, orgânica, com as massas, dando voz a todas as lutas e reivindicações populares, por menores que fossem.

Um bom método, mas que envelheceu mal

O sucesso desta inteligente e ousada empreitada foi tão marcante no movimento popular que ainda hoje, na assim chamada esquerda “revolucionária” mundial, a produção e distribuição de um jornal físico, de papel, é o método adotado por algumas dessas organizações para a construção de seus partidos. 

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Usam as lições do velho Lênin literalmente, e com as mesmas finalidades! Fazendo vista grossa às mudanças tecnológicas dos últimos 100 anos – no Brasil, por exemplo, aos 300 milhões de celulares em ação, capazes de levar todo tipo de ideias quase à velocidade da luz, por fibras óticas e antenas 4G, espalhadas pelo país inteiro – preferem continuar a devotar toda a construção do que consideram a chave mestra da revolução, o partido revolucionário, a toners, tipos e outras tecnologias que eram a última palavra na época de nossos tataravós.

Já se vê que a própria existência de organizações que em 2020 acreditam ser uma “vanguarda da classe operária”, mas que seguem utilizando os mesmos métodos dos bolcheviques pré-era do rádio, de 1905, é uma das várias demonstrações de que vivemos uma profunda crise neste modelo de liderança popular. Algo que possivelmente está na raiz da incapacidade de liderança dos movimentos de massas contemporâneos e que joga toda a luta popular não alinhada com as instituições burguesas em um enorme e profundo atoleiro.

A vanguarda da retaguarda

Enfia esta merda na cabeça de uma vez por todas: você não pensa, só obedece; você não age, só executa; você não decide, só cumpre; você será a minha mão no pescoço daquele filho da puta e a minha voz vai ser a do camarada Stalin, e Stalin pensa por todos nós… Bliat’! (O Homem que Amava os Cachorros, Leonardo Padura)

Ausentes as condições revolucionárias objetivas, com os trabalhadores na maior parte das vezes acuados pelas inúmeras armadilhas da burguesia mundial, os “partidos revolucionários” acabaram se fechando em si mesmos, falhando na principal tarefa dos tempos de aparente “calmaria”: construir laços orgânicos com o povo, verdadeiro e único agente revolucionário.

Deste Stálin até hoje, os partidos leninistas – onde também se incluem os trotskistas – foram gradualmente perdendo a sua ligação com as massas, reduzindo-se a poucas dezenas de quadros. Uma falsa “vanguarda” de classe média – pequeno-burgueses, no jargão mais técnico do marxismo. Nestas condições, é inevitável que as imitações atuais do partido-exército construído por Lênin se reduzam a uma burocracia estreita e monolítica, que não produz nada além de uma unanimidade artificial, crônica e patológica imposta por suas direções, engessada em estratégias derrotistas ou até mesmo francamente malucas.

Refratários às lutas populares espontâneas e limitados por uma visão quase quixotesca de revolução, onde não faltam os vetustos “livros de cavalaria (revolucionária)” e seus inevitáveis “moinhos de vento (conspirativos)”, estas organizações, em geral, não conseguem construir ligação nenhuma com as massas populares, salvo raríssimas, louváveis e efêmeras exceções. E sem essa ligação, como já vaticinavam os velhos bolcheviques do Congresso da Internacional em 1921, o seu “comitê diretor não guiará jamais as massas, só poderá, no melhor dos casos, segui-las”.

“No melhor dos casos, segui-las”

Sim! No melhor dos casos… Mas, no geral, o que ocorre é o pior dos casos. Foi o que houve no sombrio, inexplorado e misterioso junho de 2013, no Brasil, quando o próprio povo entrou em luta contra as “vanguardas” que se consideram no direito “natural” de liderá-lo. No geral, os leninistas dos tempos que correm são vistos pelas massas não como as “vanguardas” que eles estão convencidos de ser, mas como o melhor exemplo de uma retaguarda política, anacrônica, bolorenta e obsoleta, gente que ninguém está interessado em seguir de modo nenhum. Um pessoal acostumado a miseráveis “pregações no deserto”, coisa que desde a época dos profetas hebreus era sintoma claro de seitas esquisitas, isoladas e impopulares.

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É verdade que há notáveis esforços para dar vida nova ao leninismo, como se vê em certos militantes do PCB, como Jones Manoel, ou em movimentos e partidos que aplicam uma versão parcial e bastante atenuada de leninismo, como no MST ou no PCdoB, este praticamente um partido de tendências.

Mas como regra geral o que se observa é que, quanto mais ortodoxa e literal é a devoção teórica aos ensinamentos de Lênin, por armadilhas da dialética histórica, a realização concreta dos objetivos do mestre das revoluções se torna mais e mais distante. Maior se torna o distanciamento com o povo, mais artificial a organização – não raro, chegando aos píncaros do ridículo – e mais a política, antes revolucionária e progressista, degenera em pequenas “igrejas” reacionárias, a ponto de diversas vezes flertarem com posicionamentos típicos da extrema-direita. 

E agora, o que fazer?

Sem algum tipo de organização política capaz de realmente ser a voz e a vez do povo em luta, a prática está demonstrando que todo o poder popular não faz mais do que girar em círculos, sem avanços práticos. Por outro lado, as organizações populares tradicionais – movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos leninistas ou não – em regra, não têm se mostrado à altura dos desafios proto-revolucionários da atualidade, em liderar e ser a voz política das multidões contadas agora aos bilhões, cada vez mais acossadas pelas tendências antissociais (neoliberais) e francamente fascistas da burguesia por todo o mundo.

Mas será a crise gerada pelo envelhecimento do leninismo que está na raiz desta profunda crise de lideranças da atualidade? Quais serão os caminhos para impedir que os movimentos populares continuem a ser vítimas tão fáceis das manipulações burguesas e seus “apartidarismos baixa-bandeiras”? Enfim, será que Marx estava certo afinal, e a revolução bolchevique não era a revolução proletária que infalivelmente decorre das leis expostas em “O Capital”?

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É o que veremos nas próximas conversas desta série, Partisanos!

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