O apartheid da vacina sob a ordem capitalista

A pandemia expôs de forma contundente a falência do capitalismo como sistema mundial incapaz de enfrentar os desafios sociais da humanidade

por William Dunne

Terça-feira (6) aconteceu uma conferência de imprensa da Organização Mundial da Saúde (OMS). Hage Geingob, presidente da Namíbia, país no sudoeste africano com cerca de 2,5 milhões de habitantes, denunciou durante uma intervenção no evento o que ele chamou de “apartheid da vacina”, em que só países ricos estão tendo acesso à imunização contra a Covid-19. “Há um apartheid da vacina. Nós, como país, pagamos um depósito mas até agora não recebemos nenhuma vacina”. Até agora, a Namíbia conseguiu vacinar menos de 0,01% de sua pequena população, utilizando doses que foram doadas pela Índia e pela China.

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Essa é a realidade da maioria dos países no mundo, como mostra levantamento do portal Our World in Data (“Nosso mundo em dados”), que vem acompanhando o avanço da vacinação mundialmente. É assim especialmente na África, onde só o Marrocos é o único país que vacinou mais de 10% de sua população, enquanto quase todos os outros países vacinaram menos de 1%. A baixa vacinação se repete em regiões como o sudeste asiático, leste da Europa e países específicos da América Latina, com Paraguai (0,61%) e Bolívia (1,97%).

Em janeiro, o diretor-geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, havia alertado para o perigo de um “fracasso moral catastrófico” caso o mundo não fosse capaz de distribuir as vacinas de maneira equitativa. Na ocasião, Ghebreyesus afirmou que “o preço desse fracasso será pago com vidas e meios de subsistência nos países mais pobres do mundo”. Em março, Ghebreyesus lamentou que seu alerta não tenha surtido nenhum efeito, e denunciou que o fosso entre a vacinação em países ricos e pobres estivesse crescendo. “Países que agora estão vacinando pessoas jovens e saudáveis com baixo risco de ficarem doentes, estão fazendo isso às custas da vida de trabalhadores da saúde, de gente mais velha e de outras pessoas em grupos de risco em países mais pobres”, declarou então.

Terrorismo biológico

Além da pobreza dos países mantidos no atraso e da consequente desigualdade que isso provoca em um plano internacional, outro fator que vem limitando o acesso à vacina é o uso deliberado do coronavírus como arma biológica de destruição em massa. Em entrevista à AFP no dia 7 de abril, o chanceler da Venezuela, Jorge Arreaza, denunciou que as sanções econômicas impostas ao governo venezuelano impediram o país de comprar as vacinas necessárias. “Se a Venezuela não tivesse seus recursos bloqueados [no exterior], teríamos comprado há três meses as 30 milhões de vacinas que faltam ao país”, afirmou o chanceler do país caribenho de cerca de 30 milhões de habitantes. Em agosto de 2019, o então presidente dos EUA, Donald Trump, bloqueou todos os ativos da Venezuela no país.

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Também na Palestina, sob ocupação de Israel e sem um governo soberano em seu fragmentado território, a população teve o acesso à vacinação severamente limitado, apesar de Israel ser o país que, proporcionalmente, vacinou mais gente até agora (61% da população). Em entrevista ao UOL publicada em 14 de março, a psiquiatra palestina Samah Jabr afirmou que “Israel está recebendo elogios e vem impressionando o mundo por ser o país líder em termos de vacinação. Em paralelo a isso, estão dificultando a obtenção de vacinas por palestinos. Houve atrasos desnecessários para entregar 22 mil doses para Gaza e, na Cisjordânia, muito poucas vacinas foram distribuídas. Estamos numa situação de apartheid.”

Jabr denunciou, também, o caráter da vacinação de palestinos que trabalham em território israelense: “A motivação de Israel para vacinar os trabalhadores palestinos é econômica. Eles não querem que essas pessoas estejam ausentes do trabalho. Eles não querem parar com a expansão dos assentamentos em função da pandemia. Você deveria ouvir os debates bastante racistas entre os políticos israelenses antes da decisão de vacinar os trabalhadores [palestinos], antes da decisão de vacinar prisioneiros. Há pouca preocupação em termos de saúde pública.”

Desigualdades internas

No Brasil, o acesso à vacina não tem sido dos piores no quadro geral internacional (8,87% da população vacinada até agora). Apesar de mais da metade do povo brasileiro (116,8 milhões de pessoas) viver hoje a insegurança alimentar, o país é a 12ª economia do mundo (era 9ª quando Bolsonaro começou a, digamos assim, “governar”…) e tem uma grande estrutura de vacinação já pronta, que aplica 300 milhões de doses de vacina por ano, de forma pública e gratuita.

Só não estamos mais avançados na vacinação porque quem governa é Jair Bolsonaro, negacionista que faz agitação contra o isolamento social e o uso de máscara e defende “tratamento precoce” sem comprovação científica. De um lado, o governo não aceitou uma oferta de 70 milhões de doses feita pela Pfizer em agosto do ano passado, e que já estariam disponíveis por aqui em dezembro. De outro lado, o governo cede à pressão da mesma Pfizer para não comprar a Sputnik V com mais rapidez. A própria coronavac foi alvo de ataques bolsonaristas por vir da China, mas acabou se impondo graças à necessidade do governador de São Paulo, João Doria, de fazer demagogia com fins eleitorais para 2022. Não fosse essa disputa de facções direitistas o Brasil estaria sem nenhuma das várias opções de vacina disponíveis até hoje.

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Para completar o quadro desalentador, os ricos brasileiros estão querendo contornar o atraso bolsonarista da vacinação por meio de iniciativas individuais de compra da vacina, furando a fila baseada em critérios objetivos de prioridade em um contexto de escassez. Na noite de quarta-feira (7) a Câmara dos Deputados aprovou um Projeto de Lei que autoriza empresas a comprarem doses da vacina. O PT votou contra e denunciou que essa lei, que ainda passará pelo Senado, vai desorganizar o Plano Nacional de Imunização. O ex-ministro da Saúde do governo Bolsonaro Luiz Henrique Mandetta também rechaçou a proposta publicamente em sua conta no Twitter, dizendo que o projeto “não tem nenhum nexo, nem ético, nem do ponto de vista de saúde pública, nem do ponto [sic] vista econômico”.

O bilionário Carlos Martins, apoiador de Bolsonaro, fez lobby no Congresso pela aprovação desse projeto, e já está negociando a compra de vacinas no exterior. O objeto declarado é furar a fila, e revela o potencial corrosivo de uma elite antissocial que coloca seus interesses pessoais acima dos problemas nacionais, e mundiais, coletivos. Conhecer a lista de empresas que venham a furar a fila será didático para que o povo saiba quem são seus inimigos de classe.

Negociações bilaterais

Mês passado, Winnie Byanyima, diretora executiva do UNAIDS, publicou um artigo no Guardian denunciando que hoje “somos testemunhas de um apartheid de vacinas que só serve aos interesses de poderosas e lucrativas corporações farmacêuticas”. E relembra que: “Quanto mais tempo o vírus puder continuar em um contexto de imunidade desigual, maior a chance de mutações que podem tornar as vacinas menos eficazes ou ineficazes – tanto as que temos quanto as vacinas que algumas pessoas nos países ricos já receberam.” Portanto, a tentativa de resolver um problema da humanidade inteira apenas nos países ricos, ou apenas entre os eleitos por bilionários de países pobres, arrisca tornar esse problema insolúvel, com o possível desenvolvimento de variantes do vírus resistentes à vacina.

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O que está levando a humanidade a correr esse risco é que o interesse social geral está abaixo do interesse pelo lucro dos grandes capitalistas da indústria farmacêutica. Ainda em janeiro, a OMS pedia que os países parassem de fazer acordos bilaterais com as fabricantes de vacinas. O pedido foi em vão, e a distribuição mundial priorizando-se os grupos de risco e os profissionais de saúde ficou em segundo plano, com países ricos vacinando seus jovens antes que profissionais de saúde em países pobres comecem a receber a imunização.

O ex-presidente Lula chegou a fazer um apelo ao presidente dos EUA, Joe Biden, para que chamasse uma reunião do G20 para discutir esse problema. O tema da reunião teria que ser “vacina!, vacina! e vacina!”, disse Lula em entrevista à jornalista Christiane Amanpour, da CNN, argumentando que “a responsabilidade da comunidade internacional é tremenda”.

Barbárie capitalista

Durante a pandemia falou-se muito sobre um suposto “novo normal”. No entanto, como em um romance de José Saramago, o que vemos é o desdobramento do velho normal quando este é colocado sob circunstâncias extraordinárias. Apesar de quase 3 milhões de mortes no mundo, apesar do enorme impacto econômico provocado pelo alastramento da Covid e do risco para a humanidade inteira de se deixar o vírus continuar circulando nos países atrasados, a única coisa que importa para os capitalistas, que mandam no mundo, é o lucro. Dentro do capitalismo, em um mundo em que tudo é mercadoria, nem o apocalipse pandêmico será capaz de perfurar a casca das leis de mercado. Inclusive no caso de vacinas.

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Portanto, as necessidades sociais continuarão ficando em segundo plano, e continuará vigendo o normal de sempre. Esse sistema parasitário, em que alguns tornam-se bilionários enquanto milhões morrem e milhões são atirados à fome, está demonstrando mais uma vez, para o mundo inteiro, não ser capaz de encaminhar políticas globais a serviço da humanidade frente a seus desafios.

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