Basta aparecer um caso de abuso e violação de direitos, que os bolsonaristas “pró-vida” saem do bueiro com sua ideologia fascista defendendo o indefensável

por Beatriz Luna Buoso
Vamos entender melhor o caso, para vermos como o bolsonarismo agravou a situação da menina, vítima de estupro, que já vem de uma situação familiar muito triste. A vítima é uma criança de 10 anos, criada pelos avós em São Mateus, no Espírito Santo. A mãe da menina já é falecida e o pai está preso. Para manter a família, os avós vendem coco na praia de Guriri. Por esse motivo, muitas vezes o tio, autor do crime, aparecia na casa e ficava com a criança.
O tio já responde processos por vários crimes, e estava foragido da justiça desde o último natal, quando não retornou da “saidinha”. No dia 7 de agosto, acompanhada pela avó, a menina procurou um hospital se queixando de dores abdominais. Os médicos desconfiaram de uma gravidez, e a suspeita foi confirmada através de um exame mais detalhado.
O caso foi levado à polícia e a vítima foi ouvida. De acordo com seu depoimento, os abusos aconteciam há 4 anos, ou seja, quase metade de sua vida sofrendo violência sexual, e sem poder falar nada, pois era ameaçada pelo criminoso. A justiça criminal capixaba decretou a prisão preventiva do tio, e começaram as buscas, já que ele havia sumido desde o dia em que a menina foi ao hospital.
Longa espera
Com a gravidez confirmada, o Conselho Tutelar foi acionado e passou a conduzir o caso. Do dia da descoberta da gravidez, até sua vontade ser respeitada e o aborto ser realizado, foram 10 dias, passando por 4 hospitais, fazendo duas viagens longas e correndo risco de exposição.
Do centro de pediatria do hospital em que foi descoberta a gravidez, a criança passou para outro hospital, onde fez todos os exames. Depois foi encaminhada para um terceiro hospital, que negou fazer o procedimento, devido à idade gestacional da menina.
O diagnóstico feito por um exame de ultrassom apontou que era uma gestação de 22 semanas e quatro dias e o feto tinha um peso de 537 gramas. Após esse diagnóstico, a equipe médica tomou a decisão de não seguir com o processo no local, por não haver capacidade técnica.
“Baseado nos critérios do Ministério da Saúde, tomou-se a decisão de não realizar o abortamento, dado que, pelo protocolo para realização de abortamento humanizado —que existe desde 2005—, o aborto tem um limite de 20 a 22 semanas de gestação, e um peso fetal de até 500 gramas. Essa criança estava acima desse ponto de corte. Por isso, não tínhamos capacidade técnica para conduzir uma antecipação de parto, já que pelos dados não seria mais um abortamento”, afirmou Rita Checon, superintendente do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (HUCAM).
Informada da decisão, a Secretaria de Saúde precisou encaminhar a criança para um hospital especializado em medicina fetal, capaz de atender casos como o da vítima. Não sendo possível no estado em que reside, Espírito Santo, a menina foi encaminhada para o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM), em Recife. O hospital é ligado à Universidade de Pernambuco e é referência no aborto legal.
O bolsonarismo mostra a cara
A menina que vive sem os pais e passou metade da vida sendo estuprada pelo tio, sem poder falar nada a ninguém, pois sofria ameaças, foi recebida de que forma no hospital? A criança foi recebida pelo que tem de mais imundo e podre no nosso país. Pelos bolsonaristas e fundamentalistas religiosos. As informações que deveriam ser mantidas em sigilo vazaram, e fanáticos religiosos e grupos antiaborto se juntaram na frente do hospital para tentar impedir o procedimento.
A criança, que precisou chegar ao hospital no porta-malas do carro, foi chamada de “assassina” por aqueles que dizem defender a vida de um embrião, mas parecem querer assassinar o médico responsável pelo procedimento e uma criança de 10 anos! Tanto a divulgação do nome da criança quanto a organização em frente ao hospital partiu da Sara Winter, militante da extrema-direita muito próxima da ministra Damares. Através de um vídeo, que obteve mais de 66 mil visualizações, Sara divulgou de forma ilegal dados pessoais da menina de 10 anos e o local do hospital onde ela passaria pelo procedimento.
No vídeo, Sara usou o termo “aborteiro” para se referir ao médico, e orientou que os “fiéis” rezassem de joelhos na frente do hospital.
O grupinho do ódio que foi até o hospital, com o objetivo de invadir e impedir o procedimento, não sabia que daria de cara com um grupo de feministas do Recife, o qual devo destacar que tem todo meu respeito e admiração. As companheiras impediram a invasão e mostraram a importância do movimento feminista em nosso país, principalmente nos dias de hoje.
Sob um governo que considero totalmente inimigo das mulheres, episódios como esse mostram como é fundamental a organização das mulheres para defender e garantir nossos direitos e nossa proteção. Em meio ao tumulto na porta do hospital, a vontade da criança foi respeitada e o procedimento foi feito.
Sara Winter teve suas páginas em redes sociais retiradas do ar, e pode ter que pagar R$ 1,3 milhão pela exposição. “No vídeo veiculado, que obteve aproximadamente 66 mil visualizações, a requerida expõe a criança e a família dela e conclama os seguidores a se manifestarem, em frontal ofensa à legislação protetiva da criança e do adolescente”, afirma, em nota, o Ministério Público do Espírito Santo. Em caso de condenação, o que espero muito que aconteça, o dinheiro será revertido ao Fundo de Direitos da Criança e do adolescente de São Mateus (ES).
Nesse encontro entre bolsonaristas e fanáticos religiosos, as posições são inacreditáveis e revoltantes. A ministra Damares começou uma campanha para pressionar a menina a levar a gravidez adiante. Prometeu “ajudá-la” e enviou “emissários” à cidade capixaba.
Outra declaração polêmica foi a de Sonely Almeida, uma “cristã conservadora, seguidora ferrenha de Bolsonaro”. Em um comentário no Facebook, ela disse:
“Quatro anos sendo estuprada até se engravidar e não falar nada com ninguém? Será que ela é tão inocente assim? Me perdoa! A maioria das mulheres de hoje estão pior que cachorras no cio. Na minha comunidade tem crianças de dez anos que já estão com dois filhos nos braços. Estamos vivendo num mundo cruel. Onde perderam completamente o temor de Deus. Mais uma inocente que vai pagar pelos erros dos pais. Se o pai e a mãe cuidasse dela como deveria, certamente isso não estava acontecendo com ela”.
Através de um vídeo publicado em suas redes sociais, o pastor Silas Malafaia disse que “pior que o estupro, é o assassinato de um ser indefeso.”
Uma professora de educação básica do estado de São Paulo, Eliana Nuci de Oliveira, também manifestou todo seu ódio nas redes sociais:
“Ela já tinha vida sexual há quatro anos com esse homem. Deve ter sido bem paga”, afirmou a professora. Essas são as figuras “pró-vida”, que se revoltaram mais com o aborto do que com o próprio estuprador. Esses são os bolsonaristas, conservadores, fanáticos religiosos que defendem a moral a qualquer custo, independentemente da situação.
Aborto no Brasil
De acordo com o Código Penal brasileiro, desde 1940 o aborto é tratado como crime. Há algumas exceções. O aborto não é crime no caso de estupro, risco de vida da mãe e, permitido recentemente pelo STF, em caso de anencefalia do feto. Vale lembrar que, mesmo com a lei, as meninas e mulheres enfrentam inúmeros desafios para ter seu direito atendido, como é o caso da criança de 10 anos.
Nesse caso, a vítima se encaixava nas duas ressalvas do Código Penal, já que toda relação sexual e gravidez em menores de 14 anos é estupro presumido, e também há risco de vida por causa da idade da menina, que não tem um corpo preparado para uma gestação. Ou seja, é um caso que nem precisaria da investigação criminal e a criança ter passado por tudo que passou.
Avanço da discussão
Atos como este, de “desumanidade” e muito ódio, vêm se tornando cada vez mais comuns no Brasil desde a eleição de 2018, na qual Jair Bolsonaro foi eleito e desde a qual estamos vendo o avanço da extrema-direita no país. Reconheço que muitos votaram 17 por falta de informação, por não terem conhecimento da trajetória imunda de Jair Bolsonaro. Não falo desses. Falo aqui dos “bolsominions raiz”.
Aqueles que têm uma admiração enorme pelo presidente que tem como heróis torturadores, estupradores e pedófilos, e que afirmou que a deputada Maria do Rosário (PT-RS) não “merecia ser estuprada” porque ele a considera “muito feia”. Falo desses que aplaudem quando Jair Bolsonaro diz que ter filha mulher é uma “fraquejada”, que gay tem que levar um “couro” e que a PM precisa matar mais. São esses seguidores do governo, movidos pelo fanatismo moral, que saíram de suas casas em plena pandemia para intimidar uma criança que passou 4 anos sendo estuprada.
Em entrevista para a DW Brasil, a antropóloga e professora da faculdade de direito da Universidade de Brasília (UnB) Debora Diniz, fez uma fala muito relevante:
“A questão do aborto, que é uma questão de fanatismo moral, é uma das matérias centrais da eleição do bolsonarismo e desse furacão do ódio que foi movimentado pelas forças bolsonaristas para a eleição. Ele esteve silenciado nos primeiros 18 meses do governo Bolsonaro – nunca esteve no ministério da ministra Damares – porque teve uma série de outras questões da política, desde economia, Previdência, até a própria pandemia, na qual a bandeira do fanatismo moral não entrou. Tentou-se utilizá-la, mas houve um ponto de virada, e isso causou uma comoção ao revés.”
O episódio parece ter levantado um importante debate, que, como disse a antropóloga Débora Diniz, estava silenciado. Eu diria que silenciado mesmo nos governos petistas, já que a discussão não avança há 80 anos. É de extrema importância que a sociedade veja a questão do aborto como saúde pública, e não como um crime.
De qualquer forma o procedimento é feito e, sendo tratado como crime, é feito de forma precária, matando milhares de mulheres. Ou então, quando não é feito, crianças são abandonadas em abrigos ou vivem em situações difíceis em famílias sem estrutura alguma. A realidade é essa.
Para as mulheres com melhores condições, são realizados em clínicas um pouco mais seguras. Para as mulheres mais pobres, são feitos em clínicas clandestinas, sem qualquer garantia de segurança, levando muitas delas à morte. Segundo o Ministério Público, são realizados mais de 1 milhão de abortos clandestinos no Brasil todos os anos, 250 mil dessas mulheres acabam internadas e a cada 2 dias uma mulher perde a vida durante o procedimento feito de forma clandestina. É uma questão de saúde pública fundamental que não deve ser negligenciada, e que não cabe a fanáticos religiosos decidirem.
Nesse momento, sob o bolsonarismo, a extrema-direita faz pressão no Congresso e nos parlamentos estaduais para criminalizar o aborto em qualquer circunstância. Segundo levantamento do site Gênero e Número feito a partir de 1949, o número de projetos de lei contrários ao aborto bateu recorde em 2019. Os casos de violência contra a mulher também subiram muito com a carta branca do governo inimigo das mulheres, principalmente agora durante a pandemia. De acordo com os dados estatísticos do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do golpe de estado de 2016 pra cá, o número de vítimas de estupro aumentou em quase 50%.
O Brasil está muito atrasado nessa discussão, em que até países religiosos, como Portugal, já legalizaram o aborto. O tema pede urgência e deve ser incluído como uma das pautas prioritárias da esquerda, assim como a educação sexual nas escolas.
Aborto legal, água encanada, saúde e ensino gratuitos: índices civilizatórios mínimos. Bom saber que não foi uma recusa ideológica a do hospital capixaba, como muitos posts davam a entender: saber de um bastião conservador tão forte entre a classe médica seria um acréscimo desnecessário ao desânimo tão grande que trazem os dias que correm.
Gostei da menção à pífia atuação do PT na área, como em tantas outras: a pusilanimidade para encarar o conservadorismo de boa parte da população talvez tenha sido essencial para chegar ao poder, mas certamente deixou ali o ovo da serpente que eclodiria. Lembro de uma brava demonstração da Mulheres Católicas pelo Direito de Escolher, com sua contundente faixa ‘Até Maria foi Consultada’, se bem me lembro concomitante a uma amarelada da Manuela sobre a questão.
Interessante e grata a referencia ao papel do movimento feminista na defesa da criança. Geralmente só escuto a adjetivação “movimento burgues”, da parte do pessoal marxista.