O trabalho doméstico não remunerado feito pelas mulheres gera pelo menos 10,8 trilhões de dólares por ano do lucro para o capital

por Bibi Tavares
Este artigo não tem a mínima pretensão de combater o casamento, senão reforçar a denúncia de uma das formas mais traiçoeiras de exploração capitalista. Muitas pessoas tendem a acreditar que o trabalho doméstico é uma forma de demonstrar amor e cuidado pela família. Para o sistema capitalista, esse trabalho não remunerado significa apenas uma coisa: o trabalho de reprodução e manutenção da força de trabalho, sem os encargos trabalhistas. No capitalismo, existe somente uma coisa grátis e não é o almoço. Nas sábias palavras de Silvia Federici: “Eles chamam isso de amor, e nós, de trabalho não remunerado.”
Historicamente oprimidas e exploradas, as mulheres são vítimas seculares dos altos e baixos da economia. No XVII, mulheres eram queimadas vivas por utilizarem ervas para curar doenças ou incentivar métodos contraceptivos. Hoje, no século XXI, ainda são punidas e desafiadas a pagar com sua liberdade – e às vezes com a vida, como acontece em muitos abortos inseguros – cada tentativa de revogar o controle que o Estado tem sobre seus corpos, como a proibição do aborto.
A ordem do dia ainda se trata de lembrar às mulheres que seu papel principal é o de parir. A função reprodutiva virou a função de reproduzir mão de obra, e as mulheres, duas vezes funcionárias do capital. Depois de parir, cuidar dessa futura força de trabalho tomará uma vasta parte de sua vida. Um relatório da Oxfam de 2020, “Tempo de cuidar”, calcula que as mulheres e meninas gastam em torno de 12,5 bilhões de horas todos os dias dedicas aos cuidados domésticos. A base da pirâmide econômica conta com meninas e mulheres pobres, encarregadas dos cuidados de suas comunidades. Elas fazem um trabalho pelo qual o Estado deveria se responsabilizar, como cuidar de crianças, idosos e pessoas com deficiência.

Nós cuidamos por amor?
É possível dizer que na maioria das vezes, nós nos casamos por amor. Não necessariamente na igreja ou no civil, mas o ato de morar com alguém a longo prazo já abre portas difíceis de serem fechadas. Uma vez estando num relacionamento, recai sobre os ombros das mulheres uma série de “obrigações” e uma pressão pouco velada em relação à maternidade. Isso, ao mesmo tempo em que paira um julgamento moral sobre ter filhos em determinada idade, em contextos econômicos específicos, sobre aborto e planejamento familiar.
Dado o cenário materno, constantemente somos obrigadas a conciliar maternidade com a vida profissional e pessoal, algo muito diferente do que acontece com os homens. Mulheres são movidas a amarem seus filhos desde que descobrem sua existência. Homens são incentivados a pagar a pensão corretamente se não quiserem problemas judiciais. De repente, há uma vida completamente frágil e que depende da mãe para se alimentar, se vestir, se limpar e dormir. A licença-maternidade, por exemplo, dá às mães a oportunidade de participar ativa e pessoalmente dos primeiros seis meses do bebê. Aos pais, às vezes são dados alguns dias, talvez uma semana.
É difícil negar a existência de uma conexão muito forte entre mãe e filho. Ao mesmo tempo, é indiscutível que há uma intensa resistência em aceitar que mulheres não desenvolvem naturalmente sentimentos e habilidades maternas. De qualquer forma, a mãe é posta a cuidar e nutrir seu filho para que ele seja um trabalhador saudável, enquanto sonha qual profissão ele vai seguir. Grande parte dessas mulheres-mães são chefes de família, diretoras de suas próprias “fábricas”, que até 2018 já somavam 45% da população. Nos últimos cinco anos, pelo menos 10 milhões de mulheres no Brasil passaram a sustentar financeiramente a casa, ou por serem mães solo, ou por seus maridos estarem desempregados

Sua casa é sua fábrica, mas quem ganha é o capital
É nessa lógica traiçoeira que o capitalismo se esbalda. Segundo o relatório da Oxfam, o trabalho doméstico não remunerado das mulheres, de cuidado de crianças e idosos, de limpeza e manutenção da casa, gera pelo menos 10,8 trilhões de dólares por ano.
Cada vez que a mulher prepara seu filho pra escola, prepara as refeições, limpa a casa, leva o remédio pro seu avô, ajuda a vizinha com as crianças, ajuda sua avó doente a tomar banho, transa com seu marido, engravida e pari, o capitalismo embolsa umas centenas de dólares. Todas essas atividades formam as condições para que haja continuidade, com certa qualidade, da força de trabalho.

Uma pesquisa intitulada “Por ser menina no Brasil“, mostra que 65% das meninas são responsáveis por limpar a própria casa, ao passo que somente 11% dos meninos executam esse tipo de tarefa. Isso significa que a mulher e sua família trabalham para gerar mão de obra, que é o que move o capitalismo através da extração de mais-valia. Mesmo quando esse serviço doméstico é feito para fora, a remuneração é baixíssima. Quando se observa o desenvolvimento do capitalismo fazendo um recorte de gênero e classe, pode-se dizer que a história é bem mais cruel. Todo esse ciclo se trata da “organização capitalista da reprodução da força de trabalho”, é a estrutura mais bem montada dentro do capitalismo, sem que haja gastos, já que é posta como natural, feita “com amor”.
Devo abandonar minha casa e fugir para o mato?
Infelizmente, a luta anticapitalista não tem data para acabar, e no contexto atual de crise econômica, as questões sociais vão se acentuar ainda mais. Ainda assim, as mulheres encontram formas de se apoiarem umas nas outras, formando redes de apoio que possibilitam cada vez mais a existência de uma outra realidade.
A colaboração, cooperação e solidariedade têm unido mulheres que tentam resistir às formas de exploração capitalistas, dando à luz mães que desafiam, dentro de suas possibilidades, o modo de vida capitalista. Seja com economia solidaria ou fortalecendo aquele trabalho pequeno da sua amiga.
No Peru, com a crise dos anos 70, grupos de mulheres voluntárias criaram os chamados “comedores populares” nos bairros mais pobres de Lima. Nos anos seguintes, “los comedores populares” foram cruciais na sobrevivência de famílias pobres durante períodos de crise. Esse é apenas um dos exemplos que populações da América Latina foram obrigadas a criar para sobreviver às relações capitalistas, estimulando a solidariedade e laços afetivos, e criando novas formas de existência.
