A imagem do mercado esconde pessoas, vidas e rostos reais, sem qualquer beleza, uma vez que estão impregnados por egoísmo e ganância

por Alexandre Lessa
Não é improvável que alguém, acessando algum veículo de mídia de massa, acabe por se deparar com alguma referência sobre a importância do mercado ou como ele aprovou ou desaprovou determinada política pública. Jornalistas, analistas e demais especialistas demonstram sua preocupação com o mercado e com o poder expresso pela sua vontade, criando uma dependência direta entre ele e o destino de um país e seu povo. Entretanto, aqui, cabe uma questão, aquela de saber o que é o mercado.
Apesar de clássicos da economia, como Antoine Augustin Cournot e Alfred Marshall, definirem mercado como um lugar ou região em que compradores e vendedores encontram-se em uma relação livre e que os preços dos mesmos bens tendem à igualdade, é facilmente percebido que a mídia, boa parte da política, do empresariado e do setor financeiro não o apresentam dessa forma, muito menos aderem a uma definição de mercado como aquela de Marx, em que o mercado é visto como a totalidade de trocas dentro de uma economia capitalista. O mercado, como é apresentado ao grande público, ganha status de uma grande entidade que domina e decide nossas vidas, tendo, assim, vida própria e independente de nós, pobres mortais.
O nada que é tudo
Muitos economistas, especialmente aqueles que estão mais à direita do espectro social e econômico, sustentam essa mística do mercado. Adam Smith diz, por exemplo, que o indivíduo, pensando apenas em si e em seus ganhos, é levado “por uma mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções”. Assim, essa “mão invisível”, para Smith, levaria o mercado até o bem comum, através do egoísmo de cada indivíduo, passando antes por um caminho metafísico. Friedrich von Hayek, um dos baluartes da Escola Austríaca, do libertarianismo e da ideia de Estado mínimo, mantém o pensamento metafísico, entendendo o mercado como uma “ordem espontânea”.
Assim como as imagens de controle, presentes na obra da socióloga estadunidense Patricia Hill Collins, que são elementos operacionais da dominação através de figuras negativas relacionadas às mulheres negras (a mula, a jezebel, a mammy e a black lady), a imagem pública do mercado está intimamente conectada com as relações de poder, controle e agenciamento do desejo. Dessa forma, o mercado aparece como um dispositivo de controle implantado no imaginário dos indivíduos e da sociedade através dos caminhos da metafísica.
Citando Fernando Pessoa ao falar do mito, o mercado “é o nada que é tudo”, uma vez que não passa do egoísmo coletivo de uma classe. O mercado, enquanto tal, não existe. Essa inexistência esconde indivíduos que não têm o mínimo interesse no coletivo e no próximo, mas que têm poder suficiente para destruir a vida de toda uma coletividade em nome de uma lucratividade de que não precisam. A imagem do mercado esconde pessoas, vidas e rostos reais, sem qualquer beleza, uma vez que estão impregnados por egoísmo e ganância.
Desconstruindo o mercado
Essa imagem do mercado segue o caminho da idealização descrito por Marx na primeira tese sobre Feuerbach, deixando de lado a atividade sensível, concreta, em favor da forma de um objeto contemplativo e mistificado. Escondido por trás desse mito, há todo um trabalho ideológico de uma classe que disfarça e, ao mesmo tempo, apavora através da criação de um dispositivo de dominação que remete a uma esquizofrenia deleuziana em que não é possível reconhecer as próprias partes ou órgãos.
O mito do mercado, conforme forjado pela ideologia da classe dominante, esconde todo o trabalho concreto e material das classes ditas inferiores, criando um valor imaginário que, ultrapassando a interpretação de Marx, não está nem no trabalho nem no objeto que circula como mercadoria, extrapolando em um fetichismo ideológico que oprime e domina. Nesse ponto, a mercadoria ou o dinheiro sequer precisam existir, uma vez que há muito menos dinheiro impresso do que aquele que circula nas transações financeiras, assim como transações financeiras sobre coisas que não existem e que, em muitos casos, nunca irão existir.
A desconstrução da imagem do mercado, entretanto, não pode ser feita apenas de maneira racional. Assim como toda produção ideológica, a racionalidade abre os olhos daqueles que conseguem e querem entender. Há um imenso grupo, todavia, que não é afetado pela argumentação racional e, para tal grupo, é preciso elaborar uma desconstrução pela via irracional, retórica e emocional, algo que, aliás, já deveria ter sido pensado por estrategistas de esquerda para as produções ideológicas da direita e da extrema direita. Assim como o mercado, há outros falsos mitos que a esquerda precisa desconstituir para combater toda essa produção ideológica que, especialmente hoje, domina os corações e mentes de muitos brasileiros que escolhem lutar contra si mesmos.