Jasely Fernández: “Cuba está submetida a uma guerra não convencional”

Em entrevista, a pesquisadora cubana nos explica os protestos da última semana e reforça a urgência da revogação do bloqueio econômico imposto a seu país pelos Estados Unidos

Imagem: O Partisano
por Danilo Matoso

Na última semana, a imprensa corporativa internacional e líderes políticos de países centrais iniciaram mais uma batalha contra o regime político cubano. A Revolução Cubana resiste bravamente desde 1959, quando os guerrilheiros liderados por Fidel Castro e Che Guevara desceram a Sierra Maestra e botaram para correr o ditador capacho Fulgencio Batista que então transformava a ilha a menos de 200 quilômetros da costa da Flórida numa espécie Las Vegas do Caribe, à custa da miséria e da superexploração de seu povo. Enquanto outros países capitalistas vizinhos como Haiti ou a Jamaica sofrem com uma brutal desigualdade, Cuba zerou sua taxa de analfabetismo, e possui um sistema de saúde tão eficiente que os permite exportar tecnologia e médicos para todo o mundo.

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Se até a década de 1990 o regime comunista cubano pôde contar com o auxílio econômico da União Soviética, hoje a ilha vive do turismo dos próprios ocidentais – em sua maioria atraídos pela tenacidade política de seu povo. Os 11,3 milhões de cubanos sofrem, porém, com um bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos há 60 anos. Num país insular de pequenas dimensões e escassos recursos naturais, as consequências desse embargo são devastadoras. O governo protofascista de Donald Trump acirrou as sanções a Cuba, restringindo voos, limitando o acesso de estadunidenses, limitando as remessas financeiras e de produtos e perseguindo navios petroleiros que levassem combustível ao país. Com isso, aumentaram as vicissitudes porque passa sua população. Mesmo assim, desde o início da pandemia, Cuba vinha aparecendo positivamente como um exemplo nas políticas de saúde pública e desenvolvimento de vacinas e medicamentos auxiliares no tratamento da doença.

Por isso, ao mesmo tempo em que se esperava alguma nova ofensiva do grande capital global, não deixou de ser estranho que no último domingo tenham brotado notícias de supostas convulsões populares que demandavam mais vacinas. Para nos explicar o que está acontecendo, O Partisano convidou a cientista política cubana Jasely Fernández Garrido, professora no Centro de Investigaciones de Política Internacional, residente no Brasil há dois anos, a serviço do Consulado Geral de Cuba em São Paulo, onde trata de intercâmbios acadêmicos e culturais.

O Partisano O que acontece em Cuba agora? Em fevereiro, ouvimos dizer que Cuba tinha prontas suas próprias vacinas, e inclusive se dizia que os brasileiros poderiam vacinar-se lá, após a imunização do povo cubano – uma espécie de turismo da vacina. Nesse último final de semana, porém, começaram protestos nas ruas por falta de vacina…

Jasely Fernandez Garrido Primeiramente quero agradecer a oportunidade de compartilhar com vocês o que está acontecendo em Cuba. O que vocês fazem é muito importante para dizer ao mundo o que está acontecendo nos países que têm menos acesso a [meios de comunicação capazes de fazer frente] aos grandes monopólios midiáticos que respondem a grandes interesses econômicos da oligarquia. Eles às vezes minimizam muito fatos tão importantes como, por exemplo, que Cuba é o primeiro país da América Latina que já tem duas vacinas, Abdala e Soberana 02, que têm uma eficiência acima de 90% em imunização. Não se dá muita difusão a coisas como essa na grande imprensa, enquanto divulgam que “em Cuba há uma grande manifestação que pede vacinas para o povo”, quando na verdade não é isso.

O que aconteceu em Cuba? Em primeiro lugar, Cuba está sendo submetida nesse momento a uma guerra não convencional, que é a ingerência em um país com intenção política de dominação sem o uso da tecnologia bélica – armas, tanques, drones, bombardeios. Uma penetração física, política, econômica, cultural, de um país poderoso em outro em desigualdade de condições, com a finalidade de subjugá-lo e de expropriar seus bens hídricos, materiais, energéticos. Ela é construída não como forma principal de agressão, mas como ferramenta estratégica da política exterior norte-americana. É a isso que Cuba está submetida.

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Neste momento, Cuba está atravessando a pandemia – como todos os países do mundo – provocada pelo vírus Sars-Covid-19, que sofreu mutações em diferentes cepas e que provoca diferentes sintomas. Ao mesmo tempo, Cuba está atravessando um recrudescimento brutal do bloqueio econômico, comercial e financeiro, com mais de 243 medidas. Este bloqueio usou a pandemia como uma ferramenta a mais para provocar no povo cubano desespero e angústia. Em consequência das leis estabelecidas pelo bloqueio, impediu-se a entrada em Cuba de petróleo, medicamentos, seringas para vacinar nosso povo – porque não se leva a cabo uma campanha de vacinação só com vacinas; é preciso seringas, agulhas.

Em meio a tudo isso, há problemas sérios de desabastecimento em nosso país, há problemas com alimentação, com o transporte, com a iluminação, a eletricidade. E a população se sente angustiada, se sente deprimida. Esse sentimento de depressão e angústia, que a população sente, foi utilizado para que – a partir do exterior – se desenvolvesse uma campanha dirigida a orquestrar pequenas ações que foram escalando em diferentes cenários. Em primeiro lugar, o cenário das redes sociais, onde se desenha uma magnitude de conflito superior. Em segundo lugar, o cenário do território, que dá lugar ao que aconteceu nesse domingo.

E o que aconteceu nesse domingo? Em diferentes lugares de Cuba, se levaram a cabo atos produzidos por pequenos grupos, quase todos com menos de 300, 400 pessoas. Isso não dá lugar a um movimento político, nem dá lugar ao que se possa chamar de uma “desestabilização política”. E esses atos, em diferentes lugares, foram acompanhados de atos de vandalismo, com os quais o povo cubano se horrorizou, porque Cuba é muito tranquila. O povo cubano não está acostumado a ver um assalto de uma loja, a virar uma viatura da polícia de cabeça para baixo. Diante disso, que fez nosso presidente? “Bom, se o povo está assim, o que está acontecendo? Eu vou para lá”. E para lá foi Díaz-Canel, o presidente cubano, a um lugar chamado San Antonio de los Baños, para entender o que acontecia com o povo.

Rapidamente, viu-se que havia dois grupos. Um pequeno grupo muito agressivo, que estava encabeçando essa suposta manifestação, e que pedia “liberdade” etc.. E outro grupo que os seguia e que, quando chega Díaz-Canel, diz: “presidente, eu quero que a vacina acabe de chegar. Eu quero a Abdala aqui, a Soberana aqui, porque não acaba de chegar”. E o presidente lhes dizia: “a Abdala já vai chegar, não se preocupem”. Ou seja, vê-se que as massas foram manipuladas por uma pequena minoria que tinha como objetivo criar o caos, criar uma manifestação maior, para que se pudesse midiatizar o problema como um problema maior.

Junto a isso, houve muitas notícias falsas que deram a impressão – se você busca nas redes sociais e busca “Cuba” – de que há uma crise de governabilidade em Cuba terrível. Mas nada disso é verdade. Por exemplo, usaram uma imagem do Egito e disseram que era o Malecón de La Habana. Usaram uma imagem da Argentina, dos argentinos comemorando sua vitória na Copa [América] de Futebol, e disseram “essa é uma manifestação de multidões em Havana”. Usaram uma imagem de um menino de 13 anos venezuelano ferido na cabeça e disseram: “menor cubano ferido nas manifestações”. Usaram uma quantidade tremenda de notícias falsas. Por exemplo, “o ICRT – Instituto Cubano de Radio y Televisión – foi tomado pelos manifestantes”. Isso transformou o que ocorreu, que foi numa escala menor, em algo muito grande.

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Também usaram coisas que faziam com que cubanos fora da ilha se sentissem preocupados, que sentissem que tinham que fazer algo. Em primeiro lugar porque desenvolvem pontos que caracterizam a cultura do cubano, como a proteção ao menor, a proteção da população pelo Estado cubano – “como o Estado cubano está reprimindo? Isso não é possível! Fidel não lhes ensinou a reprimir”. E isso eu digo por que chegou a mim. Me mandaram mensagens dizendo: “eu sou cubana e seguia Fidel, mas Fidel não nos ensinou a reprimir. Como podem reprimir em Cuba?”. De fato, em Cuba não há repressão. Em Cuba há uma lei que se respeita. Se você é um delinquente que comete atos de vandalismo, como virar uma viatura, apedrejar uma loja, roubar uma loja, apedrejar os transformadores elétricos para que os cidadãos de bem não pudessem usufruir da energia elétrica ou apedrejar um hospital pediátrico, você é um delinquente, e não um cidadão. E os delinquentes devem ser tratados como delinquentes, para defender nossos cidadãos.

Então, diante dessa situação, o povo apoia o presidente cubano, e se lança às ruas em defesa de nossa Revolução, em apoio ao nosso governo. E, claro, com os comunistas cubanos encabeçando as fileiras, como disse nosso presidente. Porque Cuba é um país de bem, um povo de bem, e deve ser respeitado. Eu dizia que havia uma campanha nas redes sociais, na qual se promovia a hashtag “#SOSMatanza”, depois “#SOSCuba”, depois começaram a pedir “intervenção humanitária” e “canais humanitários”. Qual a consequência de uma “intervenção humanitária”? Todo o mundo sabe que é uma intervenção militar.

E tudo isso fez com que hoje nas redes sociais várias pessoas tenham postado, talvez até dentro de Cuba, “#SOS
Cuba” e “SOSIntervenciónHumanitaria”. No entanto, quando as pessoas perceberam o que significava “intervenção humanitária”, o que realmente estava acontecendo, vê-se que muitos usuários retiraram essas tags e comentaram: “eu não sabia, eu pensei que estivessem pedindo que deixassem entrar seringas, ou os medicamentos de que Cuba necessita”.

O.P. Você diz então que há uma campanha nas redes sociais contra Cuba e, claro, que se vê daqui. Os pontos focais das notícias falsas são as grandes agências de notícias, os monopólios internacionais de comunicação, El País, a imprensa estadunidense, AFP, EFE… E os três, quatro, grandes jornais brasileiros as reproduzem. Você acha que agora há uma tentativa de fazer em Cuba uma das chamadas “revoluções coloridas”, que na verdade são de direita? Como Cuba contra-ataca essa tentativa de dominar a população por meio das redes sociais, que na verdade servem aos grandes monopólios?

J.F. O primeiro que Cuba faz para contrabalançar estas campanhas e educar o seu povo. Um povo deve ter os instrumentos necessários para discernir o que é verdade e o que é mentira. Portanto o primeiro que Cuba faz é educar a população. Nesse momento, se está explicando nos noticiários nacionais de Cuba, em programas especiais, tudo o que é uma campanha midiática, o que é uma guerra não convencional, o que implica um “canal humanitário” e uma “intervenção humanitária”, porque o povo tem que saber. E para que, uma vez que o povo saiba, o povo possa decidir.

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As manifestações que saem nas redes sociais, as grandes manifestações, nós víamos aquilo e dizíamos: “olha, este é fulano, amigo meu, que estava lá defendendo a revolução”. Quer dizer: usaram a própria resposta revolucionária do povo em defesa da não intervenção estrangeira em assuntos internos de Cuba – porque estamos falando em intervenção estrangeira –, usaram [as imagens] do mesmo povo para dizer que era uma manifestação [contrária ao governo]. Quando se vê o vídeo, ouve-se um ruído de fundo, e depois uma voz que diz “pátria e vida, pátria e vida” – o que demonstra também uma manipulação do som dos vídeos. Então isso é o primeiro que Cuba faz: educar o seu povo, porque um povo educado é capaz de lutar por sua independência.

Acho que, com o que aconteceu domingo, já se demonstrou que em Cuba não é possível uma desestabilização política. Eles visavam que essas pequenas manifestações dessem lugar a grandes protestos sociais e que, como sempre, fosse “o povo” a derrotar a Revolução. Por isso se impôs o bloqueio econômico a Cuba como um mecanismo, uma ferramenta, para asfixiar o povo e este, a partir de sua dor, derrube a Revolução. Mas o povo saiu às ruas justamente pelo contrário, saiu para defendê-la. Eu acho que é um ato muito legítimo que demonstra como a Revolução Cubana está consolidada. Porque se em meio a uma crise tão grande como a que vivemos – uma crise econômica, uma crise financeira em que o povo está sendo afetado, como em todo o mundo, pela pandemia –, o povo ainda assim sai em defesa da Revolução é porque é uma Revolução extremamente legítima. Cuba tem um governo socialista e uma Revolução porque o povo cubano a deseja, porque o povo cubano a legitima.

E o cubano que está fora pode ficar tranquilo, porque em Cuba não se está reprimindo o povo. Estamos lutando para que o povo goze da tranquilidade que o povo merece, porque nosso povo é digno, valente e merece todo o respeito de nossos funcionários e de nosso governo, que representa os interesses de nosso povo. Por isso nosso povo saiu em defesa de nosso governo e de nossa revolução.

O.P. O que você acha que os militantes e brasileiros e em todo o mundo podem fazer para apoiar o governo revolucionário de Cuba e o desejo do povo cubano de que a revolução prossiga?

Eu agradeço profundamente à esquerda brasileira pela solidariedade a Cuba e a todos os que demonstraram seu apoio à defesa da soberania de nosso país. Cuba é um país solidário. Nós, os jovens que já nascemos com a revolução, vemos essa solidariedade como algo espontâneo e natural. Mas quando se está longe da pátria, e coisas como essa acontecem, sente-se a solidariedade dos amigos como vocês no coração. É algo emocionante, é grande. Então eu diria à esquerda brasileira “muito obrigado por confiar em Cuba, no governo cubano, e por ajudar-nos a defender o povo cubano”.

E pediríamos que retirem o bloqueio.

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Se Cuba não faz mal a ninguém, por que deveria sofrer um bloqueio? Retirem o bloqueio. Vamos jogar um jogo limpo. Chega de bloqueio a Cuba!

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