Impasse: a luta entre o impeachment e o golpe

Bolsonaro não quer só dar um golpe dentro do golpe, ele pretende acabar com a substância de toda instituição que seja minimamente democrática

Imagem: O Partisano
por Alexandre Lessa da Silva

Em seu nominalismo, Foucault nos diz que “o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”. E é justamente essa “situação estratégica”, concretizada através das relações de poder, que irrompe, nesse momento, no Estado brasileiro. Evidentemente, as relações de poder estão em toda parte, mas um recorte é necessário para descrever a atual situação brasileira. Nela, há um presidente que berra insanamente, ameaçando um golpe de Estado, enquanto instituições, como o STF (Supremo Tribunal Federal) e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), apregoam as eleições de 2022 e a normalidade institucional. Ao lado dessas instituições, a maior parte da população pede o impeachment do presidente, seguindo todo o rito necessário para fazê-lo. A situação foucaultiana se desenrola, mas o contorno do desenho ainda não está visível, gerando o máximo de imprevisibilidade.

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Antes de analisar a situação em si, é preciso contextualizá-la. O conceito de democracia é bem complexo e polêmico, mas, apesar disso, é certo que não pode ser usado para descrever a realidade brasileira pelo menos desde o impeachment de Dilma, em 2016. Atualmente, poucos não admitem que o impeachment foi um golpe, uma vez que até o próprio Temer chamou a deposição de Dilma de golpe. Aqui, deve ser lembrado que um impeachment é um ato jurídico e político, nessa ordem. Sem um crime de responsabilidade, como aconteceu no caso de Dilma, não há como dar início ao impeachment, a não ser através de um golpe. Por ser resultado de uma atitude golpista, o governo Michel Temer não teve legitimidade popular, não podendo ser chamado de democrático. Com as eleições de 2018, Bolsonaro foi eleito com a maioria dos votos no segundo turno, mas para que uma eleição seja realmente democrática, deve haver eleições limpas e justas, conforme todas as definições de democracia.

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Não há eleição justa se o seu principal oponente, e líder de todas as pesquisas, está preso injustamente, em função das ameaças de um comandante militar, ao que tudo indica. Portanto, de acordo com o critério apontado, Bolsonaro não pode ser chamado, legitimamente, de presidente, já que há um vício em sua eleição. Aliás, não há apenas essa falta nela: financiamento ilegal para impulsos de WhatsApp, nomeação do juiz responsável pela prisão de seu oponente para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, uso quase ilimitado de fake news, formação das chamadas “milícias digitais”, entre tantas outras acusações, levam a pelo menos um sério questionamento sobre a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.

Bolsonaro, portanto, não ameaça a nossa democracia, pois não a temos, mas a possibilidade de voltarmos a ter em 2022. O que temos, agora, meu caro leitor, é um verniz democrático, verniz esse que o atual comandante do Executivo ameaça tirar, junto com todas as esperanças democráticas para 2022.

A falta de democracia e a ameaça à possibilidade de sua existência através das próximas eleições é algo indiscutível, pelo menos do ponto de vista racional. Na França, por exemplo, já há uma coalizão de 18 organizações de solidariedade internacional para defender “os atores da sociedade civil brasileira”, em função da criminalização crescente dos movimentos sociais. Como também demonstra a France Culture, o atual governo é marcado por desmatamentos, invasões de terras indígenas e de camponeses tradicionais, falta de investimento nas áreas mais importantes para a população mais pobre, ataques à imprensa e aos movimentos sociais, o que demonstra uma enorme incompatibilidade com qualquer conceito de democracia.

Em artigo de 23 de julho do corrente ano, o Washington Post afirma que os brasileiros temem que Bolsonaro possa cumprir a promessa que fez quando era deputado e que continua fazendo: promover um golpe militar. Os Estados Unidos, em documento oficial, já constatam, através de analistas, que “houve uma erosão da democracia no Brasil sob o governo de Bolsonaro”. Asseveram, ainda, que Bolsonaro, desde que tomou posse, “continuou a comemorar a ditadura militar do Brasil, e seus filhos – que desempenham um papel influente em seu governo – questionaram a democracia e sugeriram que medidas autoritárias poderiam ser necessárias em certas circunstâncias”.

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Bolsonaro não quer só dar um golpe dentro do golpe, ele pretende acabar com a substância de toda instituição que seja minimamente democrática. Apesar disso, algumas instituições ainda lutam com o que Espinosa chamou de conatus sese conservandi em sua Ética (livro IV, corolário da proposição XXII). A força de conservação de sua própria essência é, para essas instituições, a defesa de um estado minimamente democrático. Entretanto, outras instituições se encaminham no sentido oposto, com pouca ou nenhuma preocupação com sua própria conservação, como ocorre com o Congresso Nacional.

Tudo isso acaba gerando um impasse entre um autoritarismo com desejos totalitários e a vontade de retorno da democracia. De um lado, temos todo um projeto antidemocrático sustentado, principalmente pelo Exército e concretizado através de Bolsonaro. Esse projeto, defendido pelas Forças Armadas e Auxiliares, conta com um apoio decrescente de uma parte da população, mas é rechaçado pela grande maioria. Entretanto, aqui, é preciso fazer uma distinção. O apoio ao governo Bolsonaro não significa apoio a um golpe dentro do golpe. No Congresso, por exemplo, Bolsonaro tem a maioria para evitar um impeachment, mas isso não significa que teria apoio para uma nova ruptura institucional, pelo contrário. De outro lado, temos a grande maioria da população querendo viver em um regime democrático, o STF e a maioria do Congresso contra um novo golpe, apesar de também querer evitar o impeachment.

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Dois atores poderão ser o fiel da balança nesse conflito de forças: a elite financeira e, principalmente, os Estados Unidos. No caso estadunidense, entretanto, seria um risco muito grande ajudar a promover uma visão autoritária de extrema direita do mesmo formato que o pretendido por Trump, uma vez que isso fortaleceria o discurso de Trump e seus seguidores. Repetir, aqui, de forma bem-sucedida, o que houve na invasão do Capitólio seria um convite para que a história se repetisse lá, e dessa vez como tragédia, não como comédia, invertendo Marx. Todavia, não há como afirmar, com certeza, quais são as intenções de Biden. No cálculo estadunidense, é possível que a volta de Lula represente um perigo maior que uma ditadura brasileira, o que é uma grande besteira.

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No momento, é possível afirmar, Bolsonaro não tem força suficiente para dar um novo golpe nem impedir as próximas eleições, mas a oposição e as instituições democráticas também não têm força para promover o impeachment ou assegurar, com o máximo de segurança, que o resultado das eleições de 2022 seja respeitado. O Brasil está diante de um impasse, mas a vantagem da oposição é que o caminho natural está direcionado para o seu lado, fazendo da tentativa de um golpe um ato de alto risco para todos aqueles que participarem.

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