Desde o golpe de 2016, a política de Saúde Mental no Brasil passou a retroceder. O hospital psiquiátrico voltou à cena, vulnerabilizando especialmente os usuários de Saúde Mental frente à pandemia de Covid-19

por Katia Caldas e Danilo Matoso
No Brasil, os serviços públicos de saúde mental foram por muito tempo negligenciados. A carência de recursos e de investimentos deixou a população cronicamente sem o apoio necessário nesta área. Em que pese tal deficiência, em todo caso, até 2016 o modelo de Saúde Mental vigente era voltado para a não discriminação e para a inclusão do usuário dos serviços na comunidade e família – uma conquista de décadas de Movimento de Luta Antimanicomial. Este Movimento procurou desinstitucionalizar a loucura, tornando o usuário de Saúde Mental também sujeito de direitos. Com o golpe de Estado e o governo Bolsonaro, tal política passou por um brutal retrocesso, voltando-se a incentivar a hospitalização e tornando os internos um grupo especialmente vulnerável à pandemia de Covid-19.
A luta antimanicomial e suas conquistas
Segundo Paulo Amarante, pioneiro da reforma psiquiátrica no Brasil e coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/ENSP/Fiocruz), a reforma psiquiátrica brasileira começou nos anos 70. Sua ação se deu por meio de denúncias, da formação de profissionais segundo essa nova visão e de filmes como “Em nome da razão”, de Helvécio Ratton.
O Movimento de Luta Antimanicomial surgiu em 18 de maio de 1987, quando da realização do II Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental, cujo tema foi “Por uma sociedade sem manicômios”. O Movimento partia do princípio de que todos têm direito fundamental à liberdade, direito a viver em sociedade e de receber cuidado e tratamento sem abrir mão do seu lugar de cidadão – e o usuário e sua família fariam parte ativa do Movimento. A partir de então, iniciou-se a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – hoje mais de 2.500 em todo o Brasil. “Foi a partir deles que começou a ser possível demonstrar que era viável tratar um paciente grave fora dos manicômios, em regime aberto, vinculado à família e ao trabalho, e envolvido em outras atividades”, explica Amarante.
Tal luta culminaria na promulgação da lei 10.216 em 2001, a Lei Paulo Delgado, que estabeleceu o direito ao tratamento em liberdade, por meio de serviços comunitários de saúde mental. Se à época havia em torno de 50 mil leitos em hospitais psiquiátrico no Brasil, em 2019 contavam-se 15.532 leitos, além de 59 Unidades de Acolhimento e 1.474 leitos SUS em hospitais gerais, de acordo com o Ministério da Saúde.
Retrocessos
Após o golpe, e sobretudo com o novo Regime Fiscal (a Emenda Constitucional do teto de gastos), congelaram-se os investimentos em Saúde e Assistência Social, ao que se somou a reforma da Previdência. Há um brutal desmonte de nossa Seguridade Social com um evidente viés: terceirizar e privatizar. O governo Temer promoveu um grande retrocesso no que se refere à RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), quando em dezembro de 2017 foi aprovada a reformulação da política de saúde mental. O hospital psiquiátrico voltou a fazer parte da rede de atendimento.
Paulo Amarante alertou ainda em 2018 que “esta política foi aprovada por intermédio de portarias, ou seja, contrária a todo o processo de formulação das políticas públicas de saúde no Brasil – desde a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que implica em conferências e em conselhos de saúde – foi uma política aprovada dentro de uma estratégia específica de um regime de exceção democrática que estamos vivendo. Este é um retrocesso muito grande e acredito que a sociedade precisa resistir”.
Em fevereiro de seu primeiro ano, o governo Bolsonaro editou uma nota técnica de 32 páginas reorientando as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental e retomando a política de hospitalização. A psicóloga e sanitarista Lumena Castro, em recente entrevista, explica que “o Brasil estava fechando manicômios e ampliando a rede de cuidado aberta, e o governo Bolsonaro vem inverter essa lógica. Ele recupera o manicômio para dentro da rede de cuidados e inverte o orçamento. Hoje o orçamento federal vai prioritariamente para serviços fechados, manicômios e comunidades terapêuticas, e vai diminuindo os cuidados de serviços abertos, como CAPS, Unidade Básica, consultórios de rua e os vários tipos de cuidados que a gente faz nos territórios”.
Vulnerabilidade
Hospitais psiquiátricos colocam seus funcionários e pacientes em situação de especial suscetibilidade a doenças infectocontagiosas e portanto também à pandemia de Covid-19. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde do Governo do Estado do Rio de Janeiro, “as enfermarias psiquiátricas não fornecem cuidado individualizado, mantendo basicamente a circulação dos usuários em quartos e alas coletivas, atendimentos grupais e alimentação em refeitório compartilhado. Neste sentido, o risco de contaminação por Covid-19 se torna ainda mais grave”.
Um exemplo da vulnerabilidade dessas instituições pôde ser atestado no último dia 17 de maio, quando sete pacientes testaram positivo no Hospital Psiquiátrico de Maringá, norte do Paraná. Na última sexta (29), o hospital já contava 85 casos confirmados. A pandemia, na verdade, torna mais evidentes os riscos sanitários a que a institucionalização da saúde mental submete a população internada.