Haverá um golpe militar no Brasil?

Condições para um golpe de estado no sentido clássico estão presentes atualmente no Brasil

Imagem: Bráulio Amado; Foto: Simon Dawson / Bloomberg / Getty
por Alexandre Lessa da Silva

Hoje, é quase um consenso entre especialistas em política que o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, foi, na verdade, um golpe. Certamente, não foi um golpe de Estado tradicional, no sentido que autores franceses, ingleses, estadunidense e outros usam a expressão coup d’État, uma vez que se tratou muito mais de um soft coup (golpe brando, golpe branco) do que qualquer outra coisa. O golpe brando não envolve a violência ou ameaça direta dela ou, ainda, a presença de militares, mas utiliza métodos mais refinados que levam ao ápice de uma guerra híbrida contra um determinado governo, conforme foi supostamente desenvolvido por Gene Sharp em sua colaboração com a CIA e a OTAN. No Brasil, contudo, a preocupação é que esse tipo de golpe parece não ser o final dessa guerra híbrida. Outro tipo de golpe, aquele tradicional, aparece fortemente no horizonte do país, o que faz a grande maioria dos brasileiros, assim como toda imprensa e acadêmicos do campo da política se perguntarem, mais uma vez, se haverá um novo golpe. Antes de tentar responder a essa questão, todavia, é necessário descrever o que é um golpe de Estado no sentido clássico do termo e quais são as condições para que ele ocorra.

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David Robertson, em seu dicionário de política, define golpe de Estado como “a derrubada repentina e violenta de um governo, quase que invariavelmente pelos militares ou com a ajuda deles” (1). Essa derrubada é uma “violação deliberada das formas constitucionais” (2), quebrando, portanto, as ordens política e jurídica, e é realizada por  “uma minoria conspiradora, o que o coloca em oposição a uma revolução popular de massa (embora os golpistas às vezes qualifiquem sua ação de ‘revolução’)”(3). Aqui, é importante perceber que um golpe não precisa – e não tem – o apoio da maioria da população. Quando João Goulart foi deposto, por exemplo, ele possuía o apoio de cerca de 70% da população brasileira, o que, aliás, é mais uma prova que o fato histórico em questão foi realmente um golpe, e não uma revolução como muitos defendem. Portanto, um “golpe não é assistido pela intervenção das massas ou por qualquer forma de combate em larga escala por forças militares” (4), como bem lembra Luttwak, exatamente o que ocorreu no Brasil de 1964.

Sharp e Jenkins afirmam que em determinados países, como a Suíça e a Noruega, um golpe á algo impensável. Isso ocorre em função do bom funcionamento dos procedimentos constitucionais democráticos, capazes de resolver pacificamente qualquer questão, somados a uma estrutura social e política funcional e eficiente. Portanto, estruturas sociais e políticas frágeis, como no caso brasileiro, e procedimentos constitucionais problemáticos, como também é o caso do Brasil, são condições que propiciam um golpe de Estado. A extrema direita sabe disso e é justamente por isso que enfraquece a toda hora o Judiciário, que fomenta os conflitos de classe, raça, gênero e vários outros; também esse é um dos motivos de não se importar com o controle da inflação ou com o desemprego, pois isso ajuda a dissolver o tecido social e mantém vivo o apetite dos militares, que por sinal é mais um dos fatores listados pelos autores.

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Luttwak assinala que um golpe não precisa da participação das massas ou de um combate em larga escala por parte dos militares. Por isso, o autor define um golpe como a infiltração de um pequeno segmento do que chamou de “aparato estatal”. Trocando esse “segmento estatal” por “revolucionários”, a definição de Luttwak lembra, e muito, aquela fornecida por Louis Auguste Blanqui, aquele que deu origem ao termo “blanquismo”. “Ele (Blanqui) pensou que um pequeno grupo conspiratório de revolucionários poderia organizar uma espécie de putsch e introduzir uma ditadura temporária…” (5).

A falta de diálogo, conforme existe no Brasil em função da intransigência do Poder Executivo, entre todos os atores políticos, é mais um fator facilitador para um golpe, conforme assevera Luttwak, assim como a falta de uma sociedade alfabetizada, bem alimentada e segura. Nesse ponto, é necessário acrescentar que a sociedade, para evitar um golpe, deve estar também bem informada, não desinformada e manipulada como ocorre em nosso país. Hoje, boa parte da população não compreende um texto simples, mas é capaz de entender uma mensagem golpista passada através de uma rede social. Essa mensagem não só desinforma, mas também persuade, fazendo uso do que há de pior na própria pessoa.

Autores como Luttwak, Sharp e Jenkins, entre tantos outros, apontam para o perigo da apatia da população. Para eles, uma população apática não é capaz de oferecer quase nenhuma resistência a tentativas golpistas. Infelizmente, no Brasil de 2022, ainda não há nenhum sinal de que o povo vá resistir aos arroubos golpistas da direita extrema. Não há grandes protestos, passeatas, nada grandioso, pelo menos até aqui, em defesa da democracia e do respeito à vontade do próprio povo.

Os golpes ocorrem com mais frequência em países instáveis, economicamente fracos e que tenham um histórico golpista (6). Não há como negar que a economia brasileira está combalida, com todos seus índices indicando o fracasso do projeto econômico, se é que existe, do atual governo. A sociedade está apática, com medo, fruto de tantas ameaças de golpe, um desgaste nada natural das instituições e aparelhos oficiais e um discurso focado na violência, seja ela pública ou proveniente do conhecido discurso do “nós contra eles.”. Como aconteceu em 1964, os golpistas aproveitam para criar a cultura da ameaça e do conflito em meio à população, o que gera um pesado clima no país e incertezas dentro da sociedade civil.

Como já avisava Jonathan Powell, “as características dos militares parecem ser muito mais importantes do que influências econômicas em golpes” (7). Assim, estratégias, como a melhoria salarial, o investimento na modernização das Forças Armadas e o aumento de seu prestígio podem ser um tiro que sai pela culatra, avisa o autor. De modo que todas essas medidas adotadas pelos governos petistas foram de alto risco e, pelo que demonstra o atual cenário nacional, deram um resultado totalmente oposto ao esperado.

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O cientista político e historiador especialista em política comparada Samuel Edward Finer ensina que as Forças Armadas têm três enormes vantagens sobre os civis: “uma superioridade marcante na organização, um status simbólico e um monopólio de armas” (8). Finer faz questão de destacar que mesmo o pior exército é melhor do que qualquer grupo civil organizado. Apesar disso, o professor inglês deixa bem claro que um ponto fraco dessas mesmas forças é sua incapacidade de governar e administrar uma comunidade que não seja “primitiva”, e outro é sua falta de legitimidade. Essa incapacidade é um princípio per se nota quando se observa o governo brasileiro. Quanto à legitimidade, tentam resolver com a figura do atual presidente, eleito por uma eleição no mínimo discutível, em função da prisão ilegal do principal candidato.

Para Finer, há quatro níveis para a movimentação dos militares no caminho para um coup d’État. O primeiro é legítimo para o autor em questão e consiste na influência, sobre as autoridades civis, utilizando a razão e a emoção. Avaliando bem, isso já ultrapassa o âmbito militar que, de nenhuma forma, deveria invadir o campo político. O segundo consiste em pressões e chantagem. Podemos notar o primeiro nível, principalmente, durante o governo Dilma, agindo para desestabilizar a presidenta, e o segundo é bem nítido através do famoso tuíte de um general endereçado ao STF, para que o último mantivesse preso o ex-presidente Lula. O terceiro consiste na remoção de um governante para o substituir por outro, como no caso de Dilma e Temer. O último varre o poder civil e instaura o militar (velado ou não). É importante ainda afirmar que o quarto nível é obtido através do uso da violência ou a ameaça dela.

Pelo que tudo indica, com a exceção da figura do atual presidente, a tentativa que está em curso é muito parecida com o tipo de golpe de origem espanhola e sul-americana chamado de “pronunciamento”. Conforme descreve Luttwak, o pronunciamento é um processo altamente ritualizado e composto das seguintes etapas: trabajos, etapa em que as opiniões da cúpula militar são ouvidas e formadas; compromissos, fase em que os compromissos são feitos e as recompensas são prometidas; a terceira fase é a chamada para a ação, e a última, o apelo às tropas para que sigam seus superiores. Um detalhe importante para o caso brasileiro é que essas tropas também incluem uma certa parcela da população que não pertence às Forças Armadas.

Disposição dos militares, cenários econômico e social propícios, instituições democráticas combalidas e todas as demais condições para um golpe de estado no sentido clássico estão presentes atualmente no Brasil. Apesar disso, a probabilidade maior é que o golpe dentro do golpe não aconteça, e não é pela resistência de um povo que luta pela sua liberdade ou pelos seus interesses, pois a população ainda está apática. O maior motivo para que isso não ocorra é aquele apontado por Luttwak em relação ao fracasso da Revolução Húngara de 1956: o centro de poder não está no país. Em outras palavras, o governo brasileiro atual não é forte o suficiente – aliás, nunca tivemos um governo forte o suficiente para isso – para contrariar as principais designações de Washington. A Europa já provou não ter forças para isso. As Forças Armadas brasileiras e seu governo de extrema direita seriam diferentes da Europa e conseguiriam enfrentar a vontade estadunidense? Obviamente, não.

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É claro que um golpe no Brasil afetaria negativamente, dentro de seu próprio país, a imagem de Joe Biden, e fortaleceria a figura de Donald Trump. Biden reconhece o perigo disso, uma vez que quebraria todo seu discurso no tocante à democracia e violaria a Carta Democrática Interamericana da OEA. Assim, o Brasil ficaria isolado internacionalmente e Biden com um grande problema nas mãos, pois fortaleceria a extrema direita no mundo.

Apesar disso e da experiência que tem em dobrar governos de centro-esquerda no mundo, nada garante que as coisas não possam mudar depois das eleições de meio de mandato e Biden trocar suas preferências. Por isso, seria muito importante, para qualquer democrata, que a oposição vença as próximas eleições presidenciais brasileiras de maneira esmagadora e que, ao mesmo tempo, a população demonstre sua vontade saindo às ruas. As cartas estão lançadas, mas ainda não caíram na mesa.


(1) ROBERTSON, David. The Routledge dictionary of politics. Londres, Nova York, 2004. Verbete ‘Coup d’Etat’.

(2) Barbé, Carlos. Golpe de estado, in BOBBIO, NORBERTO. Dicionário de política. Trad. Carmen C, Varriale et al. Brasília: UNB, 1998.

(3) SHARP, Gene; JENKINS, Bruce. L’anti-coup d’État. Trad. de Bernard Lazarevitch. Paris: L’Harmattan, 209. P.21.

(4) LUTTWAK, Edward N. Coup d’État: a practical handbook. Cambridge, Massachusetts, Londres: Harvard University Press, 2016. Ed. Eletrônica.

(5) WINCZEWSKI, Damian. Did Rosa Luxemburg Accuse Lenin of Blanquism? A Different Interpretation. In: Science & Society, vol.83, outubro de 2019. P.538.

(6) GASSEBNER, Martin; GUTMANN, Jerg; VOIGT, Stefan. When to expect a coup d’état? An extreme bounds analysis of coup determinants. In: Public Choice, dezembro de 2016.

(7) POWELL, Jonathan. Determinants of the attempting and outcome of coups d’état. In: ournal of Conflict Resolution. Dezembro de 2012.

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(8) FINER, S.E. The man on horseback: the role of the military in politics. Oxford: Pall Mall Press, 1969. P.6.

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