Nesta quarta-feira (01) acontece o #BrequeDosApps, uma mobilização de trabalhadores de aplicativos que, cansados da ausência de apoio, se auto organizaram pelos seus direitos

por Alexandre Flach
“Como nóis vai sustentar a nossa família ganhando dois reais? Me diz aí Rappi! Como que nóis vai ganhar dois reais de entrega?”
Este é o papo reto do entregador Guilherme com a Rappi, que no protesto ocorrido no início de junho, no MASP, em São Paulo, mandou a real para a sociedade sobre a tal sharing economy, sonho dourado de hipster do Vale do Silício, e que se transformou em pesadelo e escravidão na vida real de bilhões de trabalhadores pelo mundo, principalmente em países mais ifoodidos, como o Brasil. O papo do Guilherme é direto, mas a pergunta, claro, ficou sem reposta. E quando pergunta de trabalhador não tem resposta, a resposta já está dada: parar tudo.
Segundo a CUT, 98% das entregas de Ifood, UberEats, Loggi, James, Rappi entre outras empresas, simplesmente não serão realizadas nesta quarta-feira, 1º de julho da pandemia de 2020. A previsão é que uma das greves mais importantes de 2020 seja mesmo realizada por uma categoria sem sindicato, organizada na base de Whatsapp, Facebook e Youtube.
Se confirmar toda essa paralisação, será realmente uma greve gigante. Em 2018, já eram algo em torno de 3,6 milhões de companheiros de Guilherme batalhando nas ruas do Brasil, contando entre entregadores motorizados, o pessoal da bike e os motoristas de UBER. Só que depois da pandemia, este número explodiu e ninguém mais sabe quanto são os trabalhadores de aplicativos agora em atividade. Para se ter uma ideia, só em março, o número de candidatos à semi-escravidão dos aplicativos cresceu mais que o dobro em relação ao mês anterior. O Ifood sozinho captou 175 mil pessoas.
E como já era esperado, explodiu também a quantidade de grana envolvida no negócio. Ainda em março, o Ifood teve alta de 11% nos pedidos de restaurantes e 400% de supermercados e farmácias. Mas se esta “economy” é mesmo assim tão “sharing”, seria natural supor que a prosperidade também acabou sendo “partilhada” com aqueles que de fato levam essas entregas nas costas, não é mesmo? Nada disso.
Queda brutal de renda após a pandemia
Equilibrando motos e bicicletas, a maioria entre nove e quinze horas por dia, mais de 30% dos trabalhadores de aplicativos de entregas viram seus rendimentos caírem drasticamente após o início da pandemia.
Mesmo com um crescimento exponencial na quantidade de entregas, dados da Procuradoria Regional do Trabalho publicados na Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, mostram que hoje 71,9% dos entregadores recebem menos de R$520,00 por semana, enquanto, antes pandemia, eram apenas 47,4% dos trabalhadores nesta faixa de renda. Já o grupo dos que ganham abaixo dos R$260,00 por semana simplesmente dobrou.
E não adianta trabalhar mais. Setenta por cento dos que batalham entre treze e quatorze horas por dia perceberam uma nítida redução nos seus rendimentos. Já entre os que trabalham “menos”, entre sete e oito horas diárias, a queda foi grande, mas impactou menos gente. Foram 38,7% os trabalhadores de app que contabilizaram redução nos ganhos no período de quarentena.
Com tanta grana correndo, entregas multiplicando-se e renda em queda livre, será mesmo que chegou a hora de um #BrequeDosApps, para o trabalhador de aplicativo finalmente ganhar voz e dizer o que tá pegando, para todo mundo ouvir? Afinal, qual é a treta no trampo?
Reivindicações: Diz aí companheiro! O que vocês estão querendo?
Trabalhador se arrisca, mas não petisca
“Se a gente capotar, cair no meio da rua aí, a gente tem que arcar com o nosso prejuízo fora a nossa saúde, tendeu?”
Na motoca ou na bike o entregador tem que voar no meio do trânsito para não levar pontuação ruim no aplicativo, passando a mil nas frestas entre os carros, como se não houvesse amanhã, nem leis da física. E se arrastar as rodas numa poça de óleo e cair de boca no meio da rua, o que o asfalto comer fica por conta do bolso e da vida do trabalhador. Acidente de trabalho é coisa do passado. INSS já virou privilégio. Se o trabalhador é jovem, com saúde e cheio de sorte na vida, tudo bem. Mas se ele ficar doente ou cair da moto, as empresas de entrega viram as costas e fingem que não é com elas.
Enquanto isso, o pessoal vai morrendo. Segundo dados do governo de São Paulo, a capital paulista registrou um aumento de 50% no número de mortes entre os motoboys em março e abril deste ano, comparando com os mesmos meses de 2019. E isto só por acidente de trânsito. O Dória deixou fora da conta as mortes em assaltos e de quem pegou Covid-19 nas entregas. Desse jeito ficou fácil ganhar dinheiro: é o empregado que tem que assumir todo o risco do negócio, enquanto o pessoal do Vale do Silício fica de boas, vendo o dinheiro jorrando na conta.
“Autônomo” sem autonomia: a ditadura do algoritmo que a Justiça não vê
“A gente que trabalha na rua, a gente é autônomo, certo? A gente já trabalha na rua pra ter, como posso falar… uma flexibilidade. Um monte de nóis aqui tem família, quer dar uma atenção pra família em um sábado, em um domingo. Quer ficar em casa pra dar uma atenção. Hoje em dia, eles tão colocando essa questão de pontuação. Ou seja, você é obrigado a trabalhar sexta, sábado e domingo. Se você não trabalhar sexta, sábado e domingo, você não faz pontuação para trabalhar o resto da semana”.
Mas de “autônomo” você não tem nada, camarada. Na verdade, está mais para autômato de um algoritmo do que para alguém com qualquer flexibilidade na vida. A não ser que morrer de fome seja uma opção. O chicote do aplicativo é bem mais duro e rígido que o da CLT. Se o cara não trabalhar sete dias por semana, principalmente nos fins de semana, ganha um verdadeiro “balão” dos tempos digitais. Pode logar que vai ser punido sem dó. Fica horas ou dias sem corrida, parado e sem grana.
Ainda assim, na Justiça do Trabalho, o trabalhador de aplicativo não é reconhecido como empregado. É de lá dos tribunais que nasce essa lenda urbana de que entregador de aplicativo é apenas um trabalhador “autônomo”, cheio de flexibilidades. Deve ser porque o juiz trabalhista nunca trabalhou debaixo da vara dos apps, e por isso não consegue enxergar que subordinação alguém poderia ter a um simples aplicativo de internet!
Ora, para a grande maioria da turma da toga, o Ifood e seus semelhantes é só um programa a mais que ele baixa em seu Iphone de R$11 mil e usa conforme quer. O motoqueiro e o ciclista vêm no pacote mágico do compartilhamento de informações que o aplicativo permite: o juiz queria a comida, o restaurante queria vender, o motoqueiro queria entregar e o aplicativo, puro e inocente como só ele, apenas ligou os pontos, compartilhou as informações, e assim criou, num céu digital cor-de-rosa, todo um admirável novo mundo de oportunidades. Vejam só!
Para quem não acredita que a maioria dos juízes ainda insiste em viver nesses mundos paralelos, vejam como pensa a Justiça do Trabalho, em suas próprias palavras:
“Portanto, a presunção que daí decorre é de que o autor desempenhava seu trabalho com autonomia, pois tinha liberdade de estabelecer os dias e horários de trabalho, não possuía superiores hierárquicos, não se sujeitava a poder diretivo e fiscalizatório do reclamado, além de ser diretamente remunerado pelos usuários dos serviços que prestava.”
O aplicativo…
“…a rigor, comercializa apenas informações. Aliás, como se sabe, o motorista se utiliza do aplicativo de tecnologia digital disponibilizado no mercado pela empresa ré, que nessas condições atua como arregimentadora de clientes, organizando os serviços e procedendo ao controle dos pagamentos, cobrando por tais serviços de administração e captação, inexiste relação de emprego, razão pela qual há de ser mantida a improcedência do pedido direitos trabalhistas.”
Infelizmente trata-se de um processo real, podendo ser acessado e conferido: PJe 0010627-31.2017.5.03.0108 (RO), e a decisão é recente, de 12/11/2019. Vejam que esse negócio de aplicativo é tão bom que nem desembargador trabalhista consegue achar o patrão escondido por trás das virtualidades digitais da nossa vida pós-apocalíptica!
E enquanto a Justiça continua vendada ao mundo real e prefere acreditar nos unicórnios e suas startups de mentira, o trabalhador vai ter mesmo é que se preocupar em manter uma pontuação bem alta com o patrão digital. Sete dias por semana trabalhando de 10 a 15 horas por dia, senão toma uma suspensão das boas. E pode ser bloqueado por tempo indeterminado, ou mesmo demitido… ops, “banido” do aplicativo. Direito? Nenhum. Já que a Justiça é mesmo tão cega que não consegue ver a mais dura subordinação desde a Revolução Industrial acontecendo aos milhões, bem debaixo do seu nariz empinado, e que está levando uma multidão de brasileiros a trabalharem igual nossos bisavós pretos, antes da Lei Áurea.
Tem medo de pegar Covid-19? Block em você!
“Eu mesmo, esses dias, fui entregar o lanche pra um cliente que tinha Covid-19. Aí ele reclamou que eu não quis subir. Eu fiquei bloqueado por dois dias.”
Para espanto geral da nação, a Covid-19 passou bem longe de se tornar uma preocupação das empresas de entregas. Ao menos no que se refere à segurança de seus trabalhadores. Segundo informações do Ministério Público do Trabalho, apenas 40% dos entregadores recebeu algum tipo de apoio das empresas para diminuir os riscos de contaminação pela pandemia. E como seria natural, em 57% dos casos tudo se resumia a um apoio moral: o patrão aplicativo dava um tapinha nas costas do trabalhador com orientações bem sérias sobre os cuidados e perigos do coronavírus. Álcool em gel e máscaras? Sim! Tem que usar. Mas quem compra é o trabalhador mesmo. Com o dinheiro das entregas, lógico.
Por fim, o mais importante: aumentar o valor por km!
“Ó: dois reais, 6,3km! Nem na comunidade, na pizzaria que eu trabalhava, a gente ganha três reais numa entrega”. “Não dá pra ligar a moto, não dá pra pedalar, por quatro reais. Não dá.”
Nem no bico informal da favela o trabalhador é tão mal pago como nos aplicativos. Na verdade, o entregador que trabalhar só as 44 horas semanais jamais vai ganhar um salário mínimo no fim do mês. Até o Ministério Público do Trabalho acabou percebendo que o valor pago aos entregadores, que já era baixo, caiu ainda mais durante a pandemia.
Um dos organizadores da greve – que teve que começar a usar o codinome “Mineiro” depois de ter sido bloqueado em três aplicativos (Uber, Rappi e Ifood) por suas declarações sobre a realidade dos entregadores – disse que para tirar entre R$2500,00 a R$3000,00 livre por mês, ele precisa trabalhar das sete da manhã até à meia noite, rodando 400 km por dia nesta jornada de 17 horas. Ou seja, se considerar o limite mínimo de R$2500,00 ele recebe cerca de R$5,72 por hora, gerando apenas R$32,00 acima do valor nominal do salário mínimo para uma jornada normal de 44 horas semanais. Como os direitos trabalhistas – férias, décimo-terceiro, FGTS, aviso prévio e INSS – em média representam um acréscimo de 30 a 33% sobre o salário-base, temos como resultado que o Mineiro ganha aproximadamente 30% a menos do que o menor salário permitido em lei.
E isto sem considerar que em jornadas acima de oito horas diárias, a lei trabalhista determinaria um acréscimo de pelo menos 50% sobre o valor do salário; que mais de 10 horas por dia é proibido; e que mais de 12 horas gera direito a danos morais por representar uma verdadeira destruição da vida pessoal do trabalhador. Ah sim! Não vamos esquecer que as empresas ainda cobram por uma série de coisas, como o “box” (R$40,00 por aquele caixote que o entregador é obrigado a carregar nas costas) ou até mesmo para fazer uma simples transferência bancária, como a Rappi, que morde R$5,00 a R$8,00 por semana do entregador para fazer o “serviço”.
Ficam de fora da conta também as horas que o trabalhador perde parado, esperando pela boa vontade do algoritmo em fazer seu celular tocar, os bloqueios sem motivo aparente, as quedas inexplicáveis no valor das corridas, o tempo perdido em fornecedores e clientes, além dos prejuízos que sempre acontecem nas grandes e perigosas cidades onde a maioria trabalha, principalmente lá pelas altas horas das quebradas.
Paralisação
“Eu acho que o bagulho de parar a Paulista lá é só pra nóis se reunir mesmo. De lá nóis ir pros mercados, pros restaurantes, e breca tudo. Bagulho tem que parar os pico da Rappi, vamo parar os picos da Rappi, vamo parar os mercado, vamo parar os restaurante, vamo fazer os cara sentir o peso no bolso, igual eles tão fazendo nóis sentir, mano. Certo? Vamo brecar tudo!!”
O Mineiro informou que a maior parte da paralisação está sendo organizada pelo WhatsApp, através de 18 grupos criados em diferentes estados, e até pouco tempo eles tinham uma previsão bastante tímida: adesão de apenas 5000 entregadores. Mas com os apoios recebidos nos últimos dias, a expectativa saltou para 98% de trabalhadores desligarem seus aplicativos, além de adesão internacional: trabalhadores na Argentina, Austrália, China, Chile, Equador, México e Inglaterra disseram que estão juntos, no movimento.
Para reforçar a luta, pontos de concentração e agitação estão sendo organizados por todo o país, com a intenção de usar todos os meios necessários para impedir o funcionamento dos sistemas de entrega, inclusive piquetes mais nervosos, digamos assim. É que os organizadores já sabem que se não der prejuízo no bolso das empresas, não vai acontecer nada. Patrão é tudo igual: só entende a língua da grana. Sem mostrar força para tirar dinheiro do bolso do capitalista, trabalhador nenhum tem força, e isso o povo já aprendeu faz tempo.
Combatentes em categorias “não-organizadas”
Esta já é a segunda vez desde 2016 que uma categoria “selvagem” – assim chamadas as que não têm sindicatos ou associações de liderança claramente estruturadas – toma a frente da luta popular e parte para a ação, enquanto a relação aparentemente natural entre greve geral e isolamento não entra na pauta de discussão dos trabalhadores mais “organizados” e nem dos partidos políticos. E olha que parar a produção capitalista é a mais poderosa e tradicional arma de ação do povo, forma de luta caracteristicamente de esquerda e dramaticamente necessária neste momento.
Naturalmente, o PT e a CUT manifestaram “todo apoio” à greve dos entregadores. Sérgio Nobre, presidente da CUT, chega a dizer que “é prioridade a organização dos trabalhadores e trabalhadoras em plataformas e para aplicativos”, pois “não podemos ignorar o crescimento desse segmento que é da classe trabalhadora e que, portanto, tem o seu lugar dentro da Central Única dos Trabalhadores”. Nobre chega a dizer que “toda a estrutura” da CUT está colocada a serviço dos entregadores nesta paralisação.
Mas se for levar em conta o que diz uma das principais páginas do Facebook utilizadas para organização da categoria, parece que eles não querem papo, e sim, preferem ignorar as clássicas organizações de esquerda, particularmente os partidos políticos. Entre as normas de participação no grupo algumas postagens são terminantemente proibidas: pornografia, drogas e… política.
Será uma desconfiança natural da classe trabalhadora com organizações que não souberam se defender mesmo tomando uma série de socos no estômago desde o golpe de 2016? Que não estiveram à altura das lideranças de Dilma e Lula para lutar por eles pra valer? Será que ficou uma sensação de fraqueza nestas organizações também por não se mostrarem fortes o suficiente para proteger os direitos trabalhistas e previdenciários do povo? Ou serão efeitos colaterais de um longo período em que teria ocorrido a instrumentalização burguesa dos sindicatos, com as bênçãos do PT? Ou ainda, serão apenas sinais dos tempos, o esgotamento final do ciclo de conciliação de classes representados pelas organizações tradicionais da esquerda? Não se sabe. Mas não tem dúvida de que o casamento natural entre mobilização popular e partidos e organizações de esquerda não vai nada bem.
Alguns podem até defender que tudo não passa de simples reflexo da propaganda burguesa, guerra de narrativas, disputa de opiniões, seja através da imprensa convencional, seja por meio de redes sociais. Ou até que nada disso existe, e está tudo bem. Viver realmente nunca foi muito preciso, e mais uma greve selvagem que se anuncia demonstra que estamos frente a um futuro cada vez mais incerto.
Certa mesmo, só a luta de classes.