Nova extrema direita trabalha com micronarrativas limitadas e que não se sustentam, e não consegue formar um conjunto coerente e sistemático para que possa explicar a nossa realidade

por Alexandre Lessa da Silva
Jean-François Lyotard, o introdutor do termo “pós-moderno” (postmoderne) no campo da filosofia, criticou duramente aquilo que chamou de metanarrativas (métarécit) ou grandes narrativas (grands récits). Uma metanarrativa é um metadiscurso totalizante capaz de explicar e fundamentar, de maneira universal, todo conhecimento, história e cultura. O discurso iluminista e o marxismo são exemplos de grandes narrativas que buscam, de maneira universal, explicar e fundamentar os demais discursos produzidos pela humanidade. Lyotard entende como característica principal do período pós-moderno a decadência das grandes narrativas, uma vez que essas, na visão do filósofo, não são capazes de explicar as contradições desse novo mundo e a pluralidade das micronarrativas que, muitas vezes, entram em contradição entre si. Dessa forma, já não há espaço para a universalidade e verdade, no sentido absoluto, e o que há é uma relativização extrema pautada pela performance, criatividade e consensos provisórios e parciais.
Independente de saber se Lyotard está certo ou não, já que não é o objetivo desse texto, a nova extrema direita, a direita alternativa (alt-right), o neofascismo ou como queiram chamar, ainda está em busca da formação dessa grande narrativa, como o marxismo e o liberalismo conseguiram. Por isso, essa nova extrema direita trabalha com micronarrativas limitadas e que não se sustentam, o que, apesar de gerar um forte impacto em um primeiro momento, não consegue formar um conjunto coerente e sistemático para que possa explicar a nossa realidade. Dessa forma, busca, através de mitos e mentiras, sustentar posições que se chocam com informações muito mais confiáveis ou, nas palavras de Lyotard, que “performam” muito melhor que os pequenos relatos com mania de grandeza da extrema direita.
Analisando a ascensão dessa nova extrema direita, encontra-se uma tentativa da retomada dos padrões estabelecidos pelo fascismo clássico, incluindo o nazismo. Assim, líderes autoritários de extrema direita, como Bolsonaro, têm como um de seus alvos a chamada “ideologia de gênero”, repetindo o ataque que o nazismo fez ao feminismo, apenas com uma ênfase diferente. O discurso do “nós contra eles”, a fé depositada em um líder aparentemente forte, a exclusão de grupos sociais, a existência de um grupo de “iluminados”, o apelo à violência como algo necessário para lutar contra aqueles que ameaçam “os cidadãos de bem” e seu estilo devida, o passado mitológico daqueles que lideram e defendem os seus valores.
O discurso do ex-secretário Especial da Cultura do Governo Bolsonaro é um exemplo dessa busca por um discurso mítico e, portanto, a busca por uma metanarrativa que seja capaz de poder fundamentar o discurso neofascista. Nesse discurso, Roberto Alvim fala da necessidade uma cultura “enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes”. Pátria, família, povo e Deus são, para Alvim, esses mitos fundantes. Na busca por um discurso totalizante, Alvim apela para um discurso que é, praticamente, uma cópia do discurso de Goebbels. Assim, a busca por uma grande narrativa da nova extrema direita passa por microrrelatos míticos que buscam imitar o ideal nazista.
Outra busca por um passado mitológico que possa fundamentar os ideais de uma nação baseada nos valores da extrema direita é encontrada no Exército. A Primeira Batalha dos Guararapes (1648) foi escolhida como “marco fundador da Força Terrestre, o Exército Brasileiro”. Nela, “as três etnias que formaram a miscigenação nacional a partir de Guararapes são representadas pelas figuras dos três líderes da Batalha” e, aí, portanto, encontra-se o “santuário e berço da nacionalidade e do Exército Brasileiro”. “Marco fundador”, “santuário”, “berço”, todas essas palavras remetem a um discurso mítico, a uma lenda. Só há um problema nisso tudo, ainda não existia o Brasil como nação no período da Batalha dos Guararapes, pois isso só acontecerá em 1822. Portanto, segundo essa narrativa, o Exército do Brasil nasce antes do Brasil, o que é um absurdo para qualquer um que tenha um mínimo de racionalidade. Ao falsificar sua própria história, o Exército busca afastar-se de sua origem na Guerra do Paraguai e de todas as atrocidades praticadas nela. Ao mesmo tempo, por ser anterior ao país, apresenta-se como um pai protetor, capaz de defender seu povo e indicar o reto caminho que ele deve seguir. Não é à toa que Exército está por trás (ou pela frente) de todos os golpes ocorridos em nossa nação.
Todas essas narrativas, entretanto, não têm força suficiente para se conectarem de uma maneira coerente de tal forma que possam gerar uma grande narrativa, como o cristianismo ou marxismo, capaz de convencer ou persuadir de maneira categórica. Entretanto, não há como negar seu avanço e a possibilidade que um dia venham a tomar, de uma maneira muito mais poderosa do que aconteceu com Bolsonaro e Trump, entre outros, os cenários brasileiro e mundial. Não há nenhum grande teórico, de fato, que venha a enquadrar todas essas micronarrativas e consolidá-las numa grande teoria. Todavia, há sempre o perigo disso acontecer e o neofascismo empreender uma caminhada muito mais vitoriosa do que a atual. Portanto, é hora da esquerda aproveitar o momento oportuno e buscar enterrar o máximo possível esse tipo de discurso.