Em conversa com o Partisano, Dilma Rousseff deu uma aula sobre geopolítica e política externa, lembrando o saudoso ex-Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim

por Alexandre Lessa da Silva
Em uma entrevista exclusiva para O Partisano, a presidenta Dilma Rousseff abordou uma série de temas que demonstram um caminho, até certo ponto, percorrido e interrompido pelo neoliberalismo de Michel Temer e o que ela chamou de “ultradireita”, fazendo referência ao governo Bolsonaro e os demais representantes desse espectro político no mundo. Essa interrupção, conforme demonstrou a presidenta, não se deve somente a Temer e a ultradireita, mas também à direita tradicional e um grupo de setores sociais privilegiados que, somados a importantes instituições brasileiras e potências estrangeiras, foram responsáveis pela concretização do golpe. Este artigo, entretanto, é um recorte dessa entrevista, uma transcrição das suas falas sobre geopolítica e política externa, acompanhada de um esclarecimento dos tópicos abordados pela presidenta.
Sempre preocupada com o desmantelamento promovido por Temer e Bolsonaro do soft power brasileiro, Dilma aborda, com uma incrível fluência, sobre Mercosul (Mercado Comum do Sul), UNASUL (União de Nações Sul-Americanas), CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), multilateralismo, liderança regional, integração latino-americana, projeção geopolítica e muito mais.
Como foi observado por uma entrevistadora após o fim da conversa, Dilma não concedeu uma entrevista, deu “uma aula” sobre todos os temas abordados, não lhe faltando profundidade para detalhar cada um deles. Em função disso, a entrevista acabou se tornando algo que está muito longe de um discurso de campanha eleitoral, em que se busca a simplicidade para uma rápida passagem da mensagem. É, de fato, um discurso complexo, mas necessário para um bom entendimento da atual situação do Brasil no mundo, tudo que nós fomos, somos e, com sorte, poderemos ser, caso a esquerda, como todas as pesquisas indicam, volte a ocupar a Presidência da República, com uma renovação progressista do Congresso. Assim, com competência e habilidade, Dilma mostra o caminho que o Brasil deve tomar para voltar a ser um país respeitável internacionalmente.

Governos petistas: nasce uma política externa altiva e ativa
No que diz respeito à geopolítica, Dilma começa destacando como foi a política externa na época dos governos petistas:
“A gente desenvolveu uma política externa, como sintetizou Celso Amorim, altiva e ativa. O Brasil é, sem sombra de dúvida, um país que é líder regional; pelo tamanho do Brasil, pela importância da economia e sociedade brasileira no concerto das nações da América Latina. A nossa política era de integração regional e foi baseada numa visão em que nós respeitávamos, uma visão de cooperação, de compartilhamento e distribuição de renda.”
“Altiva e ativa”, assim foi a política externa levada a cabo pelos governos do PT. A afirmação da liderança regional pelo Brasil, nessa época, fica evidente durante o discurso da presidenta. Entretanto, essa liderança não estava sob a batuta de um “regionalismo aberto”, centrado no livre comércio dentro de um mundo globalizado, mas de um “regionalismo pós-hegemônico” ou “pós-liberal”, em que o comércio não aparece exatamente como prioritário, tendo mais importância as agendas sociais (combate à fome, desigualdade, distribuição de renda, equidade etc.) e o desenvolvimento econômico.
“Nós não chegamos inteiramente a fazer um processo de distribuição de riqueza, porque a progressividade dos impostos naquele momento não foi colocado; mas, foi um período que se reduziu a pobreza na América Latina, se superou, em muitos países, a fome. E eu queria destacar que também se construiu espaços latino-americanos de gestão. Nós reforçamos o Mercosul, sim. Reforçamos, fizemos uma excepcional parceria com a Argentina. Primeiro, a Inglaterra, depois, os Estados Unidos, tentaram nos afastar, tentaram incentivar a disputa entre nós.”

A extrema-pobreza volta a fazer sombra no Brasil
A pobreza, assim como a extrema-pobreza, sofreu uma grande queda nos países da América Latina, no período em que governos progressistas estavam em superioridades, conforme demonstra a CEPAL através de dados estatísticos, uma clara diferença com o retrocesso provocado por governos como o que existe hoje no Brasil.
Demonstrando que são incapazes de lidar com a pandemia, governos liberais e ultraliberais na América Latina conseguiram aumentar os índices de pobreza para níveis sem precedentes nas últimas décadas: são 209 milhões de pessoas, em 2020, quase um terço de toda população dessa parte da América. No Brasil, a extrema pobreza, em 2021, já é maior que no começo da década, 12,8% da população, em janeiro desse ano. A questão da utilização do sistema tributário para combater a desigualdade, através da progressividade dos impostos, teve pouco avanço, principalmente pela resistência das classes mais privilegiadas economicamente.
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Uma América Latina enfraquecida pós golpe
A antiga tática, posta em prática desde Filipe II da Macedônia e descrita por autores como Josefo e Maquiavel, de dividir para conquistar, não passou despercebida por Dilma. Assim como o procônsul Aulo Gabínio (I d.C.) dividiu a Judeia em cinco distritos, conforme narrado pelo historiador Flávio Josefo no primeiro livro de A guerra dos judeus, com o objetivo de enfraquecer o povo judeu, as grandes potências do mundo capitalista sabem que é importante uma América Latina dividida e fraca, já que isso torna mais fácil a imposição de seus interesses. Assim, Dilma constata que essas potências sempre buscaram provocar uma animosidade entre os dois vizinhos citados, com o objetivo de desagregar a região e manter forte a influência inglesa ou estadunidense.
A presidenta já havia citado a importância do Mercosul, bloco econômico formado atualmente pelos seguintes estados-membros: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela, esse último país, suspenso desde 2016, “coincidentemente”, o ano em que Dilma Rousseff sofreu o impeachment. José Serra (PSDB), ministro das Relações Exteriores de Michel Temer, já deixa claro, assim que assume, que não há espaço para esse tipo de pensamento, desprezando toda construção de uma forte unidade buscada pela esquerda e dando preferência a acordos bilaterais, enfraquecendo assim o bloco.

No ano passado, Ernesto Araújo anuncia a suspensão do Brasil na CELAC, com o Itamaraty afirmando que a comunidade não está em condições de atuar no “atual contexto de crise regional”. A Unasul (União de Nações Sul-Americanas), por sua vez, surge em 2008 com o objetivo “de construir, de maneira participativa e consensual, um espaço de articulação no âmbito cultural, social, econômico e político entre os países da América do Sul, bem como o fortalecimento e proteção da democracia”. Mais uma vez sabotando a integração da região, o governo Bolsonaro decreta a saída do Brasil dessa associação de países.
Relações históricas com a África
“Eu que nós temos de resgatar as nossas raízes históricas com a África, porque com a África nós temos raízes que são culturais, políticas e tem de ser econômicas e tem de ser também sociais, e que tem de nos levar a uma maior integração, o que estava também em andamento.”
Sendo o Brasil o país que mais recebeu pessoas capturadas na África para virarem escravos no mundo, não há como negar a força que esse continente tem na construção de nosso país e a dívida histórica que a sociedade brasileira tem com a África.
A partir do primeiro governo Lula, o Brasil começa a, de fato, valorizar suas relações com o continente africano: duplicação do número de embaixadas brasileiras no continente, criação da Cúpula América do Sul-África, retomada das atividades na Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas), investimento na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e, especialmente através da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ações políticas, comerciais e diplomáticas foram estabelecidas.

Com Michel Temer e sua visão neoliberal, as relações com a África se arrefeceram. Com a chegada de Bolsonaro, essas relações ainda conseguiram piorar, pautadas em um racismo estrutural e explícito patente da extrema-direita e defesa de interesses particulares, como no caso da igreja Universal, em detrimento dos interesses públicos.
Quanto ao grupo dos BRICS, um grupo de países formados por Brasil, Rússia, Índia, China e, posteriormente, em 2011, África do Sul, é preciso dizer que surgiu primeiro como categoria de análise econômica apenas, mas que depois acabou por se tornar um mecanismo de articulação política, econômica e de cooperação entre os países mais importantes fora do grupo comumente chamado de “desenvolvido”, sendo um passo importante na construção de uma visão multilateralista de poder, conforme expresso por Dilma. Uma das ações mais importantes do grupo foi a criação do Banco dos BRICS, conforme destaca a presidenta:
“Nós criamos o Banco dos BRICS, que tinha um funding de 100 bilhões de dólares. O Banco dos BRICS, hoje, é parte integrante daquele Belt and Road Initiative chinês, mas ele também era fundamentalmente para financiar grandes projetos de infraestrutura que, aqui no Brasil, seria o Corredor Bioceânico, ligando o Atlântico ao Pacífico.”
O projeto de construção do Corredor Bioceânico ainda está em andamento. Ligando os oceanos Atlântico e Pacífico, assim como também pretende o projeto da Ferrovia Bioceânica, o projeto rodoviário será um importante mecanismo de integração e desenvolvimento regional, caso seja concluído, uma vez que o projeto ferroviário análogo encontra-se parado por causa do governo Bolsonaro.

Enquanto isso, a China integra o Banco do BRICS à Nova Rota da Seda, também conhecida como Iniciativa Cinturão e Rota, o mais importante projeto de política externa chinesa e de crescimento. Esse projeto inclui ferrovias de alta velocidade cortando a Europa e a Ásia, estradas, dutos, conexões portuárias e uma alinça da China com pelo menos 65 países no mundo, incluindo nações africanas e latino-americanas. No meio de todo esse desenvolvimento, o governo Bolsonaro procura fazer o caminho inverso dos governos de Lula e Dilma, buscando o afastamento da China e se curvando totalmente aos Estados Unidos, fazendo uma trajetória insana para todos aqueles que têm um mínimo de racionalidade.
“A China não quer conter os Estados Unidos, quem quer conter a China é os Estados Unidos. O que eu acho que está havendo hoje é que está acirrando a contradição entre a China e os Estados Unidos. Já naquela época, essa contradição existia, não tenha dúvida. Nós não éramos atrelados aos Estados Unido como é o governo Bolsonaro e foi o governo Fernando Henrique. Nós tínhamos uma visão multipolar.”
Dilma também aponta para o problema cambial, e de extremamente importância como demonstra a desvalorização do Real perante o Dólar no governo Bolsonaro, superando até a moeda de Mianmar durante o golpe de Estado:
“Uma coisa que cabe grande destaque foi o que nós chamamos “Acordo Contingente de Reserva”, um fundo monetário dos BRICS para proteger os BRICS de qualquer problema cambial, posto que todos os BRICS, de uma forma ou de outra, exceto a China, tinham sofrido com problemas cambiais no passado. Nós queríamos formar cientistas, tendo como base também os BRICS, considerando a importância, tanto na China como na Rússia do setor educacional e também no caso de transferência de tecnologia. Então, esse processo todo foi interrompido.”
Os governos petistas já sabiam disso e, como demonstrou Dilma, buscaram evitar tal problema. Entretanto, o que mais chama atenção é a busca pelo desenvolvimento e integração através de uma política educacional e a transferência de tecnologia. Quanto a isso, a comparação com os governos que a sucederam chega a ser ridícula, uma vez que tais governos abandonaram por completo esses campos.
“Os Estados Unidos têm imensa dificuldade de fazer transferência de tecnologia, porque qualquer transferência de tecnologia tem de passar pelo Congresso, e o Congresso praticamente nunca autoriza. Então, tínhamos uma relação maior com a Europa, Japão, Coreia e com a China, do que com os Estados Unido”
Visitantes indesejados
“Fiquei extremamente preocupada quando vi o diretor da CIA vir ao Brasil e ter palestras com o Ministério da Defesa, a ABIN e o GSI, Gabinete de Segurança Institucional. Sempre que você vê o diretor da CIA ou daquela outra agência chamada NSA, aquela que grampeia as pessoas, os governos, as empresas, você pode saber que tem algo de mal, “algo de podre no reino da Dinamarca”, como diria o companheiro Hamlet.”
O interessante é que a presidenta utilizou a palavra “preocupada”, e não “surpresa”, pois não é algo de surpreendente nesse atual governo, uma vez que todos sabem da plena submissão que Bolsonaro tem em relação aos Estados Unidos. Por isso, a presença da CIA (Agência Central de Inteligência) ou da NSA (Agência de Segurança Nacional) em Brasília não é algo de se espantar, mas não é por isso que a preocupação não deva existir.
A entrevista de Dilma Rousseff não só constatou uma série de acertos da política externa de governos petistas que tinham, diferentemente do atual, um projeto para o país, como também apontou um caminho para o futuro do país. Outros temas, como a política interna e a misoginia existente no golpe, foram abordados pela presidenta. Entretanto, esses são temas que serão tratados em outros artigos d’O Partisano.
Você também pode assistir à entrevista na íntegra aqui: