Autoproclamada “maior democracia do mundo” e defensora da liberdade no planeta, a nação de Donald Trump escolhe seu presidente por meio de eleições indiretas

por Danilo Matoso
A duas semanas das eleições presidenciais, os Estados Unidos vivem sem dúvida um dos momentos políticos mais turbulentos de sua história. Mais de 8,5 milhões de estadunidenses contraíram Covid-19, resultando em mais de 225 mil mortes, em decorrência de uma política negacionista e errática do presidente Donald Trump, do Partido Republicano. A economia do país cambaleia, com a maior queda do Produto Interno Bruto de sua história; desde maio, o povo não sai das ruas, unido em torno aos protestos Black Lives Matter e chamando uma greve geral; milícias fascistas defensoras de Trump reagem e entram em conflitos armados com manifestantes, matando a tiros de fuzil alguns deles.
Trump, por sua vez, apaga o fogo com gasolina. Reforça a atuação das milícias armadas, diz que os neoliberais do Partido Democrata – cujo candidato à presidência é o relativamente conservador Joe Biden – são “radicais socialistas” (quem nos dera) e espalha todo tipo de tese conspiratória. Do bizarro QAnon à acusação de fraude nos votos pelos correios, tudo serve como pretexto para o presidente “botar o bode na sala” com a ameaça de não reconhecer uma eventual derrota eleitoral. Quem acompanha pelo menos de longe as eleições do país sabe que o sistema eleitoral norte-americano não é nada simples. Basta lembrar, por exemplo, que em 2000 e em 2016 os republicanos George W. Bush e Donald Trump chegaram ao poder sem a maioria dos votos da população. Afinal, a autointitulada “maior democracia do mundo”, que promove golpes de estado e guerras por toda a parte “em nome da democracia”, é realmente uma democracia?
Eleições indiretas e comparecimento
Diferentemente do presidente do Brasil, eleito por voto popular direto, o governante dos Estados Unidos é eleito indiretamente por um Colégio Eleitoral composto por 538 delegados, cujo número por estado é definido em função de sua população, dividida internamente por distritos que escolhem seus delegados com voto majoritário por maioria simples. Assim, por exemplo, a Califórnia – estado mais populoso do país – elege 55 delegados, enquanto o Alasca elege apenas 3. Ocorre que – com exceção do Maine e de Nebraska – os estados adotam o sistema winner-take-all [o ganhador leva tudo], em que o candidato com maioria simples de delegados fica com todos – no exemplo da Califórnia, isso significaria que, se 28 delegados de um partido são eleitos, os 55 votos do estado no Colégio Eleitoral vão para aquele partido.
Segundo o cientista político Lucio Rennó, pesquisador e professor no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB), “o Colégio Eleitoral nos Estados Unidos foi desenhado por motivos federalistas. Ele assegura que o candidato faça campanha e visite estados com populações menores, que não teriam qualquer relevância no resultado da eleição com voto estritamente popular. Foi uma decisão tomada em um momento histórico específico [a independência do país], para viabilizar um pacto favorável à união”. Na opinião do pesquisador, porém, “raramente esse sistema gerou distorções entre o voto popular e o voto dos delegados no Colégio Eleitoral”, devido à proporcionalidade dos delegados em relação à população de cada estado. Antes dos casos de Beorge W. Bush e de Donald Trump, isso ocorrera somente no século 19, com as eleições de John Quincy Adams (1824), Rutherford B. Hayes (1876) e Benjamin Harrison (1888). Em todo caso, Rennó pondera que tal disparidade “cria crises e gera perdas de legitimidade, o que pode ser prejudicial à democracia”.
Outra diferença importante entre o sistema norte-americano e o brasileiro é o voto facultativo, em que tradicionalmente entre 40% e 50% não comparecem. Grande parte das campanhas eleitorais conduzidas pelos Democratas nos Estados Unidos são, de fato, pelo voto – e não pelo candidato. Rennó explica que “há estudos que apontam uma probabilidade mais baixa de minorias votarem – latinos, negros, jovens – e que esses grupos tenderiam a votar mais nos Democratas”. Por outro lado, no Brasil – onde o voto é obrigatório –, a soma de abstenções, votos nulos e em branco chega tradicionalmente a um terço dos eleitores.
Bipartidarismo
Todo o sistema representativo dos Estados Unidos é baseado em voto majoritário de maioria simples para cada distrito, inclusive para a Câmara dos Representantes ou para o Senado. Segundo Rennó, “isso dificulta a emergência de muitos partidos, pois quem ganha leva tudo. É diferente de sistemas proporcionais, onde as cadeiras legislativas são distribuídas aos votos dos diferentes partidos”, como ocorre no Brasil. Por isso, na prática, embora haja dezenas de partidos nos Estados Unidos, a disputa fica concentrada entre um partido conservador (Republicano) e um partido liberal (Democratas) – como ocorria no Brasil nos tempos do Império.
Isso não impede os partidos “fora do jogo” de postularem suas candidaturas próprias à presidência da República. Em 2020, além de Biden e Trump, outros nove candidatos concorrem à Casa Branca. Um deles é o candidato do tipo “palhaço”: o mundialmente famoso rapper Kanye West, que concorre pelo Birthday Party [Partido do Aniversário, ou Festa de Aniversário], defendendo uma pauta conservadora antiabortista e religiosa. Por outro lado, também concorre a experiente socialista Gloria La Riva, pelo Partido Socialismo e Libertação (PSL), com um programa marxista-leninista e uma relativamente ampla capacidade de mobilização popular – conforme lembrado por Jones Manoel em entrevista recente a O Partisano. Nas últimas décadas, porém, somente nas eleições de 1992 – quando o candidato independente Ross Perot obteve 18,9% dos votos – houve alguma alternativa real à polarização entre Democratas e Republicanos, e não veio do campo popular.
A despeito dos clamores de Trump, o partido Democrata tem pouco ou nada de socialista, e socialistas não têm vez no cenário institucional estadunidense. O chamado de greve geral, por exemplo, não é conduzido pelos Democratas, mas pelo (PSL) de Gloria La Riva – que não logrou construir nenhuma representação na esfera federal. Isso não se deve ao acaso, ou a uma mera questão de opinião popular. O centenário Partido Comunista dos Estados Unidos foi brutalmente perseguido e praticamente extinto enquanto vigia o macartismo do pós-guerra – e em sua esteira o Partido dos Panteras Negras, que teve seus líderes presos e suas sedes desmontadas na década de 1960.
Em qualquer democracia capitalista, afinal, a porta de entrada para o poder institucional é ou bem o poder econômico ou bem o poder popular do grupo de apoio do candidato, e as instituições norte-americanas estão fechadas ao poder popular. No plano geral, mesmo que ainda com uma roupagem levemente democrática em seu território, o Estado norte-americano – nada democrata ou nada republicano – segue afinal fomentando golpes na América Latina.