A aplicação da LSN contra um deputado de extrema-direita, um fascista envolvido com as milícias, bolsonarista fanático, é um ponto fora da curva

por Pedro Fassoni Arruda
A atual Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) entrou em vigor no governo do ditador Figueiredo. O escopo da lei era claro: combater a “ameaça subversiva”, ou seja, as pessoas e grupos que lutavam contra a ditadura. O uso discricionário da lei permitiu que ela fosse aplicada até mesmo contra trabalhadores em greve, militantes do movimento negro e cidadãos que protestavam contra aumentos nas tarifas de transporte.
A LSN estava totalmente identificada com a doutrina de segurança nacional: um conjunto de valores e crenças, forjados no contexto da guerra fria e de um anticomunismo visceral, que propunham o combate e a eliminação das chamadas “OS”, ou organizações subversivas, no jargão dos militares.
Como os processos de abertura política e transição de governo foram comandados “pelo alto”, sob a tutela das Forças Armadas, todo o chamado “entulho autoritário” permaneceu intacto na Nova República. Não foi apenas a LSN que permaneceu em vigor: a destinação constitucional das Forças Armadas não sofreu a menor alteração, no que diz respeito à sua responsabilidade pela segurança interna. O trabalho de policiamento preventivo e ostensivo permaneceu nas mãos de uma polícia militarizada, criada à imagem e semelhança do Exército.
Também foi mantido o foro privilegiado para os militares: juízes e tribunais militares continuam sendo responsáveis pelo julgamento de seus próprios pares, segundo um Código Penal militar que pode ser aplicado inclusive para enquadrar a população civil. A lei de autoanistia continua em vigor, garantindo a impunidade para os torturadores e assassinos da ditadura. O Conselho de Segurança Nacional também serve de assessoramento para o presidente da República. As chamadas salvaguardas constitucionais (estado de emergência, estado de sítio) também servem para garantir a ordem e a tranquilidade dos donos de poder.
Aplicações da lei
A LSN, de acordo com Ricardo Antunes, é “um código de inspiração draconiana, contrafação verdadeira, no plano da superestrutura jurídico-política da realidade econômica aviltante a que estão sujeitos os trabalhadores assalariados. Elaborada para garantir a ‘paz social’, a LSN é um dos instrumentos acionados para o controle do movimento de massas” (Ricardo Antunes, Crise e Poder, 1985, p. 43).
A atual LSN (existiram outras antes desta) foi criada no final da ditadura, e permaneceu praticamente em desuso. Mas em abril de 1986, o sindicalista Vicentinho e a deputada Ruth Escobar foram condenados com base na lei, por terem difamado o ex-ditador Figueiredo e espalhado “fatos inverídicos capazes de abalar a confiança nas Forças Armadas”. A notícia da condenação causou surpresa e indignação, e muitos estranharam a aplicação de uma lei draconiana em pleno regime democrático (ou que assim se apresentava). No Congresso Constituinte, toda a bancada dos partidos de esquerda (PT, PDT, PCB, PCdoB e PSB) se juntou para remover essa e outras partes do entulho autoritário, sem sucesso.
Daniel Silveira
A aplicação da LSN contra um deputado de extrema-direita, um fascista envolvido com as milícias, bolsonarista fanático, apologista da ditadura e da tortura, representa um ponto fora da curva. Já aprendemos com Marx, Lênin e Pachukanis que o direito não se limita à letra da lei. O direito envolve também o processo de aplicação da lei. A sabedoria popular traduz esse aspecto na frase “O Código Penal é para o pobre, o Código Civil é para o rico”. Ou então na afirmação de que o Código Penal serve apenas para os três “Ps”: pobres, pretos e putas. Por certo, a LSN já deveria ter sido revogada há pelo menos 36 anos, e deveríamos estar discutindo abolicionismo penal e desencarceramento desde que a democracia foi restabelecida (ao menos formalmente).
O fato é que não temos o menor controle sobre o processo de aplicação da lei. Tudo o que nos resta (se as coisas permanecerem como estão) é torcer por decisões judiciais, como expectadores, sujeitos passivos de um processo cujo resultado depende do humor de quem opera o direito. Seguiremos comemorando pequenas decisões isoladas, esses pontos fora da curva, como alguém que não consegue enxergar uma imensa floresta porque tem uma árvore na frente.
Eu também sinto um pequeno prazer quando vejo um fascista provando do próprio veneno. Não acho que isso pode criar um precedente para a justiça aplicar a LSN contra militantes de esquerda, por dois motivos: em primeiro lugar, porque ela já foi aplicada, como foi dito antes. E em segundo, porque a justiça nunca precisou de antecedentes para criminalizar os setores democráticos, progressistas e populares.
Mas sinto que ainda falta muita vontade de entender o problema na sua totalidade. Escrever direito uma vez por linhas tortas pode ter como resultado a produção de um livro que exorcisa o pior da nossa história.