O SUS é o maior sistema público de saúde do mundo, possui, em números aproximados, mais de 37 mil Unidades Básicas de Saúde (Postos de saúde), cobrindo 64% da população brasileira

por Débora Verdi
Você já fez duras críticas ao atendimento de uma loja que você nunca frequentou? Você já chamou de ineficiente um serviço que você não sabe exatamente quanto realiza, nem quanto de investimento é necessário para que ele seja bem prestado?
Por que então achamos tão comum criticar seriamente o SUS em ações de saúde que não utilizamos? Por que chamamos facilmente o SUS de ineficiente, sem saber quanto ele faz e qual seria o investimento mínimo necessário para o funcionamento de um sistema para as mais diversas necessidades de saúde da população em todo o território nacional?
O SUS é o maior sistema público de saúde do mundo, possui, em números aproximados: mais de 37 mil Unidades Básicas de Saúde (Postos de saúde), cobrindo 64% da população brasileira, quase 45 mil ambulatórios especializados, mais de 3 mil Centros de Atenção Psicossocial-CAPS, mais de 5 mil unidades do SAMU, com cobertura de 82% da população e 6 mil hospitais. Realizou, no último ano, mais de 1 bilhão de consultas/atendimentos ambulatoriais e 11 milhões de internações hospitalares. Possui ainda o Programa Nacional de Imunizações, reconhecido mundialmente tanto pela produção de vacinas, quanto pela ampla oferta no SUS e pela capilaridade de acesso, já que em boa parte são oferecidos na rede básica. E o Sistema Nacional de Transplantes, que abarca ações como o credenciamento das equipes e hospitais para a realização de transplantes, controle da lista de demanda e de doadores, bem como a logística, inclusive interestadual, para a realização dos transplantes e monitoramento de desfechos, sendo que 96% dos transplantes no país são realizados pelo SUS.
Saindo do campo assistencial e por isso invisível à maioria das pessoas, mas com papel fundamental e que ganha maior destaque em contexto de pandemia, há a rede de vigilância em saúde (epidemiológica, ambiental, sanitária e saúde do trabalhador) que, por meio de normatizações e sistemas de informação em âmbito nacional, organiza respostas diante de surtos, epidemias, catástrofes.
E apenas para não deixar de mencionar, pois é certamente tema para outros textos, é inegável a capacidade do SUS de produção de conhecimento, desde as produções científicas mais típicas de bancada, até a produção cotidiana de novas formas de cuidar da saúde na imensa rede de serviços. Por fim, e atrelado a isso, necessário falar da coordenação do complexo industrial da saúde, que esforça-se por entregar o que pode, e que tanto seria importante nesse momento, mas que sofre diante não apenas da falta de reconhecimento histórico, mas do estrangulamento recente.
Se já se trata de imenso desafio financiar e operacionalizar um sistema desta magnitude em tempos normais, imagine em uma situação de pandemia…
30 anos de SUS (tentar)
A criação do Sistema Único de Saúde, instituído pela Constituição Federal (CF) e regulamentado dois anos após, por meio da Lei Orgânica da Saúde (8.080/1990), é sem dúvida um marco e uma vitória nas lutas por políticas sociais no país. Não apenas pelo que representa diretamente para as condições de saúde da população, em função de, pela primeira vez o acesso a serviços de saúde ser considerado “um direito de todos e um dever do Estado”, mas também pela conquista na luta pela cidadania que esse direito representou.
Sua inscrição constitucional foi fruto de grande mobilização, principalmente de trabalhadores e gestores já engajados com o tema. Isso ocorria tanto em função do conhecimento científico e prático sobre o tema por experiências vividas em diversas localidades do país, quanto por experiências internacionais apontando resultados sanitários incomparavelmente melhores em situações de oferta pública e integral de atenção à saúde.
Entretanto, a fala de necessidade de diminuição, de insustentabilidade do sistema é recorrente e surpreendentemente não apenas de atores políticos desvinculados ou supostamente não atendidos pelo SUS, mas muitas vezes dos próprios usuários. Um elemento nisso é muito claro: um Sistema Único de Saúde acessível e de qualidade não é nada desejável do ponto de vista do mercado, tanto diretamente, pelo espaço produzido para a oferta privada de serviços, quanto indiretamente pelos demais produtos e serviços (milagrosos) que se criam para uma população cada vez mais ciosa de consumir e cada vez mais adoecida. Essa faceta é a que, por meio de seus poderosos atores, inicialmente não permitiu que a oferta de atenção à saúde fosse oferta exclusiva do Estado e atua cotidianamente buscando ampliar a participação privada na saúde.
Em boa parte como consequência disso, mas também por questões culturais e sociais não muito claras, por mais que a população em geral coloque sempre a saúde em primeiro ou segundo lugar nas preocupações cotidianas, e por mais que avalie positivamente o SUS quando o utiliza, o sistema privado é sempre visto como mais resolutivo e portanto, mais desejável.
Esses fatores ajudam na explicação de que, durante os 30 anos de existência de SUS, ainda que com diferenças significativas entre os governos, nenhum tornou possível a totalidade de sua implementação. Por exemplo, não se bancou de forma radical a priorização da Atenção Básica, tanto no que se refere ao financiamento, quanto a modelos de atenção à saúde; não foram colocados em prática mecanismos para maior regulação da atuação do privado, mesmo quando contratado para servir ao SUS; não se investiu seriamente na pesquisa e indústria nacional da saúde, como fatores essenciais que são para o desenvolvimento econômico e social agregados, além de fundamentais para mitigação da dependência externa já existente e que se escancara no momento de pandemia.
O subfinanciamento do SUS é histórico e mais recentemente, com EC 95 e outras políticas de austeridade, já se fala em desfinanciamento do sistema – estimativa do Conselho Nacional de Saúde é de perda de 400 bilhões até 2036. Enquanto países com sistemas públicos robustos destinam cerca de 9% do PIB para a saúde, no Brasil, esse valor é de 4%. A propalada melhoria da gestão é necessária e importante, mas não é possível manter ou melhorar o SUS com diminuição de financiamento.
Além do mais, é notório que são os municípios que sofrerão a maior pressão para aumentos de gastos, entes responsáveis pela execução de boa parte das ações de saúde e os mais próximos do cidadão, diante da diminuição ainda maior da participação da União nos gastos em saúde (reduzida de 73% para 43% entre 1991 e 2017).
Nesse sentido, cortar orçamento ou mesmo propor a desvinculação das receitas para o SUS (como propostas que foram enviadas ao congresso pelo governo) em especial em momento de empobrecimento da população e portanto em aumento da dependência do sistema público é contrariar os próprios objetivos da República e direitos sociais previstos na Constituição Federal, quais sejam o combate à desigualdade e direito à saúde.
Como requisitos para mudança desse cenário, e considerando a história de construção do SUS, é fundamental uma retomada de um processo de democratização, tendo como fator importante a existência de um governo legítimo e de um legislativo minimamente imbuído da representação popular. Com isso, a possibilidade de entender que a saúde precisa de um orçamento que a sustente e que para garantir o SUS conforme previsto, ainda que se façam melhorias na gestão, é necessário aumentar em grande medida o orçamento destinado à área. Em paralelo, uma retomada das concepções de saúde como direito humano e desvinculado da noção de consumo, tanto pelo que isso atrela ao mercado e ao lucro, quanto pelo que isso gera de expectativas de melhorias infindáveis, levando a procedimentos e ações que geram mais danos que qualidade de vida. Portanto, além de palmas, o SUS precisa de reconhecimento pelo tanto que já realiza, mesmo diante de tantas restrições, e apoio para que não seja mais um adulto jovem morto em tempos de pandemia.