Passados 10 anos do julgamento, livros que questionam a versão da promotoria e da perícia estão proibidos até hoje. Condução do caso revela erros do sistema acusatório e papel nefasto na imprensa

por Diego Abrahão
Em seriados de investigação sempre ficamos ansiosos para ver a trama resolvida. Neles é comum os investigadores resolverem o caso passando por cima de uma burocracia e de obstáculos que se apresentam, mas a realidade costuma ser bem diferente. O julgamento do casal Nardoni é um desses casos, e todo seu processo de investigação nos faz levantar muito mais dúvidas do que certezas.
No dia 29 de março de 2008, uma menina de 5 anos foi jogada da janela de um edifício de classe média paulistana. A comoção tomou conta do país e a investigação e os desdobramentos são acompanhados diariamente pela imprensa. É preciso fazer justiça e a pressão dos veículos de comunicação em resolver o caso é muito grande. O próprio pai e a madrasta acabam virando os principais suspeitos.
O julgamento do casal ocorre no dia 22 de março de 2010, e eles são condenados no que foi considerado um dos casos policiais de maior cobertura e audiência já vistos. Pessoas foram pressionadas, livros proibidos e qualquer discordância da investigação e do resultado do julgamento era e é desmoralizada.
A discussão aqui não é o acontecimento em si, houve um homicídio e uma criança de 5 anos morreu. Mas é possível duvidar se os assassinos de fato foram o pai e a madrasta. As “provas” que serviram para acusá-los eram inconsistentes, ou seja, não serviam para colocar o casal na cadeia. Aqui levantamos alguns pontos de bastidores para que o leitor também tire suas próprias conclusões.
O primeiro policial
O policial militar Fernando Neves Braz foi o primeiro a chegar na cena do crime e a fazer a varredura no local e arredores. Foi exatamente ele que proferiu para a imprensa que não era possível ter existido uma terceira pessoa no local, contrariando a alegação do pai da vítima, Alexandre Nardoni.
Alguns dias depois do assassinato tudo parecia correr de forma habitual na investigação, até que o policial Fernando Neves Braz foi acusado de participar de um esquema de pedofilia que envolvia meninas de 6 a 9 anos. A descoberta quase terminou em um tiroteio na própria casa de Neves, que ameaçou os policiais que o escoltavam em seu apartamento. No meio da confusão, trancou-se em seu banheiro e se matou com um tiro.
O repentino suicídio de Neves deveria ter uma grande importância para a imprensa, já que além de uma menina ter sido assassinada, havia o envolvimento no caso de um policial ligado a uma rede de prostituição infantil. Isso deveria colocar em dúvida todo o relato de Neves. Mas para a imprensa todos esses detalhes que exigiriam uma investigação mais cuidadosa sobre o envolvimento do policial com pedofilia e sua rápida chegada ao edifício, acabou virando apenas uma nota de rodapé.
A imprensa
Um dos pilares do desenvolvimento do caso e da pressão sobre todos os outros órgãos foi a imprensa. Não que não fosse o papel dela noticiar, mas com a comoção social que o caso foi tomando e a audiência ascendendo, o papel dela fugiu dos limites da notícia e acabou virando um espetáculo pirotécnico, o que culminou em uma condenação antecipada do casal Nardoni pela sociedade.
Algo que chamava atenção foi a relação da imprensa com o Ministério Público. Cembranelli, o excêntrico promotor público que pegou o caso de Isabella Nardoni, trabalhava de forma muito íntima com a imprensa, emitindo seu juízo a respeito das provas, induzindo e conduzindo o desenvolvimento das investigações.
É claro que essa falta de imparcialidade atiçou ainda mais todo o sistema contra o casal Nardoni. Multidões queriam linchá-los e até mesmo os próprios advogados foram ameaçados. A imprensa também foi entusiasta e passou a noticiar que esse era um caso “CSI brasileiro” e um exemplo de investigação, mas diversas lacunas, falta de provas e até adulteração da cena do crime em reconstituições foram arranjadas sem serem questionadas, segundo o jornalista Rogério Pagnan, autor do livro “O pior dos crimes”, lançado em 2018.
Além disso, as reportagens e entrevistas emotivas excitavam ainda mais a cólera do povo, que passou a exigir a condenação imediata do casal Nardoni, mesmo que isso implicasse em um julgamento antecipado e sem provas, o que acabou lembrando muito o caso de Lindy Chamberlain na Austrália. Acontecimento que teve ampla repercussão e foi adaptado para o cinema sob o título “Um Grito no Escuro”.
A perícia
O centro de todo o julgamento foram os detalhes da perícia, que ostentava ter resolvido o caso com certa facilidade e baseada no método científico. Tudo parecia fazer sentido, o sangue no carro, pequenas gotas encontradas no chão do apartamento, uma fralda recém lavada para supostamente limpá-los entre outros detalhes. Só que a maioria dessas afirmações eram no mínimo muito contraditórias.
O sangue que fora encontrado no carro, que até hoje é usado como prova fundamental para explicar que a menina foi agredida antes de entrar no apartamento, não era de fato sangue, mas baba ou catarro e possivelmente nem era de Isabella, segundo o exame de DNA.
As tais gotículas de sangue que foram encontradas no chão do apartamento, não foram provadas como sangue e muito menos que era de Isabella. Os próprios reagentes que supostamente foram usados, ou não foram anexados ao processo, ou estavam vencidos. A reconstituição do crime em um vídeo 3D, também teve a disposição dos objetos alterada para encaixar melhor com a versão oficial da perícia.
Rogério Pagnan fala em seu livro sobre as diversas contradições do caso. No ano de 2013 Rogério teve acesso a um relatório sigiloso sobre a Polícia Científica de São Paulo, que mostrou que nenhum dos laboratórios envolvidos no caso Nardoni havia sido certificado por órgãos independentes, algo que quando ocorre reforça a idoneidade do laboratório.
A própria perita oficial do caso Nardoni, Rosangela Monteiro, também se mostrava uma pessoa bastante contraditória, ela se apresentava como mestre e doutora pela PUC, mas a própria universidade desmentiu tal afirmação segundo Pagnan. O que nos leva à seguinte pergunta: qual a formação dela e a capacidade técnica para trabalhar no caso?
A prisão
Pressionado por diversos interesses, o delegado Aldo Galiano Júnior, diretor do Departamento de Polícia Judiciária da Capital (Decap) na época, chamou a atenção com a prisão preventiva dos réus. O caso iria do 9º Distrito Policial para Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), com mais recursos e meios de investigar, mas antes da transferência o delegado deu ordem de prisão, o que causou um impedimento legal para a transferência.
Um dos aspectos mais importantes do Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição da República de 1988 manifesta-se na exigência de previsibilidade e segurança jurídica, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (artigo 5º, LIV). Em linhas gerais a prisão foi uma arbitrariedade, e só poderia ser cogitada se os acusados tivessem praticado outros crimes, coagido as testemunhas e manipulado as provas, o que não era o caso. Os direitos do casal foram atropelados e as explicações para isso foram estapafúrdias e sem nenhuma base legal.
“A única explicação da polícia para a prisão do casal foi dada pelo delegado Galiano apenas no dia seguinte, na quinta-feira, momentos depois de o casal se apresentar espontaneamente a um juiz no Fórum de Santana.
O policial assumiu o papel de porta-voz da polícia e mergulhou no mar de microfones, flashes e câmeras de TV em transmissões ao vivo. Falou sobre a prisão dos suspeitos, mas sem explicar exatamente os detalhes. Foi genérico, evasivo e, de certa forma, contraditório” *
Os livros proibidos
Tudo que foi narrado até aqui levanta dezenas de pontos contraditórios do caso. O problema é que as contradições não terminam aí, pois não se trata apenas de uma investigação e julgamento suspeitos, mas sim de um caso que não pode ser questionado. Prova disso são os livros censurados de dois profissionais que rejeitaram os laudos.
No primeiro livro, “Caso Isabella: verdade nova”, o médico Paulo Papandreu questiona a perícia e em sua tese sustenta que Isabella morreu em um acidente doméstico, inocentando o pai e a madrasta. A reação veio da mãe, Ana Carolina Oliveira, que entrou na justiça para impedir a venda do livro, o que de fato aconteceu.
O segundo livro, “A morte de Isabella Nardoni – Erros e Contradições Periciais”, de George Sanguinetti, também inocenta os réus e questiona a perícia original. Igual ao primeiro livro também teve sua circulação proibida e um pedido de indenização de R$ 100 mil pela mãe de Isabella. Em 2019, mesmo passados mais de 10 anos, o STJ ainda mantém proibida a publicação do livro.
Ainda que os livros fossem questionados, como foram pela família, eles jamais poderiam ter sido proibidos, isso fere a liberdade de expressão e o direito de qualquer um de manifestar livremente opiniões, ideias e pensamentos garantidos pela Constituição, principalmente no caso de dois especialistas que tinham opinião divergente.
Finalmente o caso Nardoni virou um show midiático ao qual a condenação do casal já era dada. Várias inconsistências não foram nem ao menos examinadas e debatidas mais a fundo com a sociedade. No geral as investigações e o próprio julgamento eram cheios de falhas e várias questões ficaram em aberto. Será que o casal deveria ter sido preso? Havia mais uma pessoa no local? Sem a pressão da imprensa as investigações teriam ido mais fundo? E por que os livros foram proibidos? Talvez essas e outras perguntas jamais sejam respondidas.
*Trecho de “O Pior Dos Crimes: A História do Assassinato de Isabella Nardoni”, de Rogério Pagnan