Comunistas tankies e liberais intankáveis

Alguns liberais não apenas se apresentam como esquerda. Eles também se arrogam o direito de prescrever aos socialistas a melhor linha política “de esquerda”

Imagem: O Partisano
por Danilo Matoso

Recentemente, militantes comunistas vêm com alguma frequência se deparando com a alcunha pejorativa tankie para designá-los. A pecha vem de liberais e talvez não merecesse maior consideração — como de resto qualquer denominação anticomunista — se, talvez por influência estadunidense, alguns deles não se considerassem de esquerda. Infelizmente, tankie aqui não tem origem “tankar”, equivalente a suportar, na gíria gamer. É algo pior.

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Um artigo publicado em 1º de março último na edição em inglês do The Intercept trazia em sua manchete uma exortação: “Não seja um tankie: como a esquerda deve responder à invasão da Rússia à Ucrânia”. Na visão do autor, Roane Carey, “a solidariedade com o oprimido — independente de raça, religião, nacionalidade, gênero etc. — deve ser a força motriz da política de esquerda, se elas possuem qualquer valor ético. Infelizmente, uma fração pequena, mas ruidosa que diz ser de esquerda e anti-imperialista tem apoiado ditaduras profundamente opressivas mundo afora”. O autor, que aparentemente se considera uma espécie de guardião da esquerda global, prossegue: “esses pseudoesquerdistas — às vezes chamados tankies […] também defendem a Rússia hoje”.

Que dizer do Intercept — esse veículo liberal, financiado pelo dono do eBay, que circulou por um bom tempo no Brasil como se fosse imprensa de esquerda? É bem verdade que as matérias do portal quando da Vazajato foram fundamentais para desacreditar Sérgio Moro. Mas é verdade também que o Intercept se uniu à Folha de S. Paulo e à Veja na empreitada. Bem, há já algum tempo eles mostram a que vêm: quer seja quando condenam a solidariedade internacional da esquerda brasileira à Venezuela ou a Cuba, que consideram ditaduras, quer seja quando fazem matérias abertamente anticomunistas. Que são liberais, não é novidade. Mas não deixa de ser curiosa a tática de prescrever o que a esquerda deve fazer ou deixar de fazer estando fora dela. Ou melhor: se colocarem como a “verdadeira esquerda” (liberal) frente a uma esquerda socialista supostamente ultrapassada.

Ortodoxia

O termo tankie não é um elogio. Ele remete a uma visão política estreita, uma espécie de conservadorismo saudosista da União Soviética, do stalinismo e de uma certa visão dogmática do marxismo. Desnecessário ponderar que rareiam esses tipos hoje, trinta anos após a queda do muro de Berlim. Na prática, a recuperação do uso do termo tankie é uma peça de propaganda anticomunista alcunhada e usada por liberais para fazer uma caricatura grosseira dos comunistas de hoje.

verbete sobre o termo tankie na Wikipedia apresenta a seguinte definição:

Tankie
é um termo pejorativo que originalmente se referia aos membros do Partido Comunista da Grã-Bretanha que seguiam a linha do Kremlin, concordando com o esmagamento da Revolução Húngara de 1956 e mais tarde da Primavera de Praga pelos tanques soviéticos; ou mais amplamente, aqueles que seguiram uma posição pró-soviética tradicional. Mais recentemente, tem visto um uso menos específico do termo, referindo-se a posições linha-dura anti-imperialistas ou marxista-leninistas da esquerda.
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Segundo o mesmo artigo, tankie remetia ao uso de tanques pelos soviéticos nas intervenções naqueles países do leste europeu, a partir de 1956 (data dos eventos na Hungria). A versão em inglês do mesmo verbete relata seu uso na Inglaterra teria continuado na década de 1980, quando da cisão entre os chamados Eurocomunistas e o grupo dito tradicionalista, pró-soviético — os tankies. No Partido Comunista Brasileiro daquele tempo, o “moderno” Roberto Freire, candidato à presidência pelo Partidão em 1989, era um Eurocomunista, enquanto Luís Carlos Prestes teria sido um tankie.

Mais recentemente, o termo voltaria à baila no social-democrata Labour Party também britânico, referindo-se à velha-guarda socialista. Evidentemente, passou a ser adotado pela direita. Em 2015, o conservador Boris Johnson se referiu pejorativamente a Jeremy Corbin e à ala esquerda do partido como tankies e trots [trotskistas]. Em geral, portanto, o termo se aplicaria exclusivamente à ortodoxia marxista-leninista alinhada ao bloco comunista da guerra fria — fosse ele stalinista, kruschevista ou maoista.

Ortodoxia e marxismo são palavras que não combinam. Afinal, se o método de Marx é o materialismo dialético, é necessária uma constante avaliação da realidade e uma reformulação de conceitos. O marxismo não pode ser ortodoxo ou dogmático, sob pena de deixar de ser marxismo. Por outro lado, os comunistas têm um lado na luta de classes: o do proletariado e da classe trabalhadora global, a antítese da burguesia e do imperialismo. Portanto, os comunistas, obvia e tradicionalmente, se posicionam contra as forças do imperialismo – principalmente em investidas armadas sobre estados nacionais.

Brucutus

No caso da guerra na Ucrânia, a maioria dos partidos comunistas brasileiros se manifestou contra o conflito em geral — pois na guerra são os trabalhadores que morrem — e contra a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em particular.

A nota do PCB, por exemplo, conclui que “a única solução para esse conflito, cuja escalada está longe de terminar, passa pela luta independente da classe trabalhadora mundial contra o imperialismo dos EUA, da OTAN e do sistema capitalista. Nenhuma burguesia de nenhuma nação trará aos explorados e oprimidos do mundo a paz. Primeiro, apontamos para a necessidade da classe trabalhadora ucraniana organizar-se para liquidar de uma vez o regime neofascista”.

Na visão de Roane Carey, de outros liberais, dos trotskistas morenistas do PSTU e de algumas correntes do Psol, quase todos os comunistas brasileiros – e uma boa parte dos social-democratas do PT e do PDT – seriam tankies.

Para o articulista do Intercept, os tankies seriam ingênuos incapazes de perceber que Vladimir Putin encabeça uma agenda nacionalista, burguesa e conservadora. Os tankies seriam brucutus primitivos que confundem a Rússia de hoje com a União Soviética de ontem e não percebem que o governo de Zelensky na verdade não é neonazista, já que ele mesmo é um judeu que teve parentes mortos no holocausto.

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Na verdade, a opinião de Carey, essa sim, é feita de simplificações grosseiras e estanques — para não falar de um certo senso comum liberal, alinhado com a narrativa hegemônica. Segundo essa linha de raciocínio engessada, Fernando Henrique Cardoso, sociólogo que lutou contra a ditadura militar, não poderia jamais ter conduzido um governo neoliberal. Num mundo ideal guiado por “valores” e não por uma feroz luta de classes por recursos e privilégios, os indivíduos seriam representações perfeitas de regimes políticos inteiros e se manteriam os mesmos por toda a vida. Segundo o mesmo argumento, um regime conservador voltado aos interesses nacionais não poderia ser defendido frente a um ataque imperialista. Enfim, o brucutu político não é o tankie, mas o liberal Roane Carey.

Roane Carey foi editor-chefe da revista novaiorquina progressista The Nation onde, segundo o jornalista Max Blumenthal, passou os últimos anos transformando o jornal em uma “fossa intervencionista liberal, empurrando o Russiagate, a guerra suja na Síria e uma Nova Guerra Fria, por meio de um propagandistas ficcionistas e medíocres que ele contratou”.

Carey aparenta não estar sozinho em sua opinião. Ele mesmo cita no artigo os analistas em cujo trabalho se baseia, como Gilbert Achcar, Dan La Botz ou Leila Al-Shami. Para esta última, os tankies seriam uma “esquerda pró-fascista” que parece “cega a qualquer forma de imperialismo de origem não Ocidental”. Ocorre que esses antecedentes são, no mínimo, controversos.

Segundo Max Blumenthal, “Achcar literalmente treinou militares britânicos num programa secreto contrainsurgente” na Escola de Estudos Africanos e Orientais em Londres (SOAS). Já Leila al-Shami seria um perfil falso de uma suposta ativista síria que nunca existiu, criada “com o único propósito de promover a guerra suja do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido como se fosse de esquerda”.

Rússia, Ucrânia e seus próprios comunistas

Para além do esporte intelectual das notas políticas sobre conflitos distantes, qual seria a posição da esquerda dos países diretamente envolvidos no conflito? Afinal, o que por aqui é uma mera questão escolástica, para eles é uma questão de vida ou morte.

O Partido Comunista da Federação Russa (PCFR) apoia a ação militar russa na Ucrânia, ressaltando que as autoridades em Kiev – qualificadas de neonazistas – “buscavam de modo mais ativo a admissão da Ucrânia a Otan. O território do país se tornava uma plataforma de lançamento para armas dos EUA e de seus aliados. A militarização avançava rapidamente”. O PCFR reiteradas vezes “levantou a questão do reconhecimento das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, que se desenvolviam de acordo com princípios de justiça social, e advertiu sobre as consequências potenciais de se ignorar fatos óbvios”.

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Por isso, conclui que “a necessidade de desmilitarizar e de desnazificar a Ucrânia de modo a frear a sua transformação num viveiro de ideologia nazista deve ser o principal objetivo da comunidade global, de modo a evitar a transformação do país num estado nazista, numa cabeça de ponte para a aliança imperialista dos EUA-Otan ameaçando os países eurasianos”, conclamando “todas as forças progressistas e políticas na Rússia e no mundo a usar os mecanismos da diplomacia popular a bem da secular amizade entre russos e ucranianos”.

Apesar disso, alguns veículos de imprensa de esquerda brasileira andaram contando uma versão diferente — por tradução ingênua de um veículo externo ou para legitimar as posições pacifistas dominantes por aqui. Em março, o Brasil de Fato noticiou que “Deputados do Partido Comunista da Rússia se posicionam contra guerra na Ucrânia”. O próprio artigo, porém explicava que, dos 57 assentos que o PCFR tem na Duma (a Câmara dos Deputados russa), correspondentes a 19% do parlamento, apenas 3 eram contra a invasão. Uma esmagadora minoria.

Pode-se argumentar, em todo caso, que o PCFR é composto justamente pelos antigos membros do Partido Comunista da União Soviética, os tankies originais — hoje governistas. É uma ressalva justa.

Sem assentos no parlamento, o Partido Comunista dos Trabalhadores Russos (PCTR) se coloca contra a solução armada para o impasse, classificando o conflito de “interimperialista”. Para eles, “morrer e matar pelos interesses dos patrões é estúpido”, ressaltando em todo caso que é a favor do reconhecimento da independência das repúblicas no Donbass, que considera o governo ucraniano nazista e que acredita que o conflito poderia justamente recrudescer sua repressão sobre o povo ucraniano. Estão mais próximos de um “fora todos” que de apoio ao governo de Zelensky.

O regime ucraniano já vinha perseguindo, prendendo e matando os comunistas desde o Euromaidan — a revolução colorida que colocou a extrema-direita no poder na Ucrânia em 2014. A essa altura do campeonato, é desnecessário relembrar episódios brutais como o massacre de Odessa.

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Vale lembrar em todo caso que, no final de março, o presidente Volodymyr Zelensky baniu todos os partidos de oposição, inclusive de esquerda moderada. Enfim: é difícil transcrever aqui a posição oficial da esquerda ucraniana porque ela está toda na ilegalidade. Suspeitamos, em todo caso, que não estejam cerrando fileiras com Zelensky, como pretendia Roane Carey.

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