No momento em que o socialista Rafael Correa se tornava presidente do Equador, frentes da CIA injetavam dinheiro em grupos indígenas e ambientalistas no país

por Benjamin Norton, para o Grayzone, tradução de Paula Ferdinan*
O povo do Equador se surpreendeu nas eleições presidenciais de 2021: o banqueiro de direita Guillermo Lasso, um dos oligarcas mais endinheirados e corruptos do país, que havia se lançado sem êxito em duas eleições anteriores, alcançou uma vitória estreita contra um jovem economista progressista, candidato da esquerda, Andrés Arauz.
Arauz havia prestado serviço como ministro de governo do presidente socialista Rafael Correa, líder da “Revolução Cidadã” que transformou o país durante seus mandatos de 2007 a 2017. O que a maioria das mídias não verbalizaram sobre a vitória surpreendente de Lasso foi que ela se deu unicamente graças ao apoio que recebeu, de forma direta e indireta, de grupos ambientalistas e indígenas que foram cooptados por mais de 15 anos pelo governo estadunidense e por suas redes de poder.
Os líderes dessas organizações oportunistas – uma pseudoesquerda – foram beneficiados pelos milhões de dólares de financiamento de entes da CIA como a Agência Internacional para o Desenvolvimento dos EUA (USAID) e o Fundo Nacional para a Democracia (NED). Juntos, formaram uma aliança conveniente com Lasso contra o movimento Correísta. Alguns, inclusive, respaldaram abertamente o banqueiro multimilionário omitindo a sua corrupção bem documentada, incluindo contas offshore e dezenas de milhões de dólares em imóveis no estado da Flórida. Outros, incluindo líderes que se orientam à direita dentro da poderosa confederação indígena equatoriana, a CONAIE, chamaram seus seguidores a votarem nulo no pleito do dia 11 de abril, em vez de apoiarem a Arauz.
A decisão da CONAIE de convocar o voto nulo talvez tenha sido o fator mais importante para fazer de Lasso o próximo presidente equatoriano. As eleições de 2021 viram um aumento massivo de votos nulos motivados politicamente, com 1.1 milhão de votos anulados a mais que nas eleições anteriores. O total de 1,76 milhões de votos nulos em grande medida superaram os 420 mil que Arauz não conseguiu em aporte para ganhar.
O papel que os líderes conservadores da CONAIE, do braço político da Confederação, a Pachakutik, e que as ONGS “verdes” desempenharam para conseguir que o banqueiro neoliberal, notoriamente corrupto, fosse eleito, não é exatamente um segredo. De fato, Yaku Pérez, o candidato presidencial pela Pachakutik, se gabou de haver derrotado Arauz imediatamente depois das eleições, twittando (em maiúsculas): “Pachakutik e o voto nulo enterram ao Correísmo”.
PACHAKUTIK Y EL VOTO NULO ENTIERRAN AL CORREISMO https://t.co/tuHiXc3ZPS vía @@agenciaprensaec
— Yaku Pérez Guartambel (@yakuperezg) April 13, 2021
O site The Grayzone documentou como Yaku Pérez conduziu uma campanha de direita e pró-estadunidense enquanto se propagandeavam como o rosto da “nova esquerda” no Equador, adotando um esquema de marketing no modelo do Partido Democrata americano, que combinava políticas econômicas neoliberais e apoio ao imperialismo junto com políticas identitárias e ambientalistas liberais.
Pérez revelou, após o primeiro turno, que tinha o apoio da embaixada dos EUA. Ele também tem um histórico de exibir suas reuniões amigáveis com o embaixador de Washington no Equador, Michael J. Fitzpatrick. Não surpreende portanto que entre os simpatizantes da CONAIE e de Pachakutik que efetivamente votaram nulo, a maioria acabou apoiando Lasso.
Uma observação dos resultados oficiais publicados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do país demonstra que apenas a metade das pessoas que votaram em Pérez no primeiro turno, em fevereiro, acabaram votando nulo na segunda, enquanto que aproximadamente 40% dos seguidores de Pérez votaram em Lasso. Apenas cerca de 7% dos partidários de Pérez votaram por Arauz, segundo estimativa aproximada concedida ao The Grayzone por um especialista eleitoral.
Mas em muito do que disseram os formadores de opinião sobre a surpreendente derrota sofrida por Arauz, que praticamente liderou todas as pesquisas antes do segundo turno, os nomes de Yaku Pérez e Pachakutik mal foram mencionados. A omissão é particularmente prevalente entre analistas que falam inglês.
Eduardo Enríquez Arévalo, acadêmico especializado em política equatoriana da Universidad Andina Simón Bolívar, explicou, em entrevista ao The Grayzone que “em geral, pode-se dizer que Pachakutik passou por um processo de transição para a direita, ou, pelo menos, de se tornar cada vez mais próximo da direita desde 2010 ”.
A Pachakutik e a CONAIE também estão profundamente inseridas no complexo industrial de organizações sem fins lucrativos. Líderes proeminentes e ativistas desses grupos trabalham em ONGs bem financiadas, algumas sob o patrocínio de governos estrangeiros. A deriva de Pachakutik para a direita, então, é em parte um fenômeno orgânico, mas também tem sido fortemente alimentado por enormes somas de dinheiro fluindo para o Equador das fundações e governos dos Estados Unidos e da Europa. A triste realidade é que tanto Pérez como a Pachakutik estão no centro de um projeto americano de desestabilização, que dura mais de 15 anos e é pouco conhecido fora do Equador.
Documentos governamentais tornados públicos demonstram como, na véspera da eleição histórica que levou à vitória de Correa em 2006, Washington começou a alcançar líderes indígenas e ambientais transferindo milhões de dólares para nutrir esses grupos como parte de uma campanha para dividir a esquerda do país. Os telegramas do Departamento de Estado divulgados pelo Wikileaks mostram claramente que a embaixada dos Estados Unidos estava recrutando líderes oportunistas da CONAIE e da Pachakutik para minar Correa e seu movimento.
Os documentos mostram que figuras da CONAIE e Pachakutik agiam como informantes da embaixada, fornecendo informações regularmente a um oficial político dos Estados Unidos. Alguns líderes de direita até contataram o embaixador e realizaram reuniões amigáveis garantindo a Washington o seu apoio.

Frentes da CIA como USAID e NED também lançaram programas para construir e financiar uma oposição anticorreísta. Essas iniciativas multimilionárias focaram em particular em organizações ambientais e indígenas. Na década de 1980, durante a guerra terrorista de Washington contra o governo sandinista da Nicarágua, a USAID trabalhou em estreita colaboração com a CIA, canalizando dinheiro para esquadrões da morte da extrema direita. A agência também tem sido parte integrante do financiamento da tentativa de golpe em curso na Venezuela, levantando mais de centenas de milhões de dólares para o governo paralelo e não eleito de Juan Guaidó.
Uma revisão dos contratos da USAID revela que uma empresa chamada Chemonics era seu principal parceiro “privado” no Equador. Um dos maiores beneficiários da ajuda dos EUA com fins lucrativos, com US $2,5 bilhões em patrocínio da USAID entre 2018 e 2019, a Chemonics está intimamente ligada a agências de inteligência, operando como um serviço de inteligência privado. Seu endinheirado fundador disse que criou a empresa para “ter minha própria CIA”.
A Chemonics esteve envolvida em uma série de operações bastante escandalosas de mudança de regime dos EUA sobre os governos de esquerda na América Latina, visando a desestabilização dos presidentes Evo Morales da Bolívia e Hugo Chávez da Venezuela. A empresa desempenhou um papel semelhante na guerra suja dos Estados Unidos contra a Síria. O editor da Grayzone, Max Blumenthal, documentou como a USAID usou a Chemonics para canalizar dezenas de milhões de dólares para os Capacetes Brancos, um grupo de lobby para mudanças de regime em estreita colaboração com militantes Salafistas-Yihadistas, incluindo a Al-Qaeda, como parte de uma operação de inteligência ocidental para derrubar o governo em Damasco.
Como principal parceira da USAID no Equador, a Chemonics recebeu um contrato de US $11 milhões somente em 2013, ultrapassando substancialmente outros contratantes, com o objetivo de financiar iniciativas de “proteção ambiental”. Quando as operações de mudança de regime do “Escritório de Iniciativas de Transição” da USAID na Venezuela e na Bolívia foram reveladas, o governo de Correa congelou as relações com a USAID, em dezembro de 2013, e depois expulsou a agência em 2014. Porém, a USAID renovou suas atividades no Equador, alcançando uma influência máxima em 2018, quando o sucessor de Correa, Lenín Moreno, deu uma guinada brusca para a direita e se aliou a Washington.

Esses grupos ambientalistas apoiados por Washington organizaram campanhas de longo alcance e geralmente violentas, para se opor aos ambiciosos projetos de infraestrutura de Correa, que buscavam desenvolver regiões pobres e rurais, bem como integrar o país. Em nome do “anti-extrativismo” – uma palavra da moda que se tornou popular entre as mesmas redes artificiais da pseudoesquerda na América do Norte – essas ONGs no Equador também tentaram impedir o governo de orientação socialista de Correa de usar o petróleo abundante e recursos minerais para financiar a educação, saúde e programas sociais voltados para a redução da pobreza.
Naquela época, a mídia local mais cética apontava que os projetos de “proteção ambiental” conduzidos pela USAID e Chemonics no país acabaram ocorrendo em áreas onde se encontra a maior parte dos recursos naturais, levando os agricultores a expressarem preocupações sobre os motivos velados e o envolvimento antidemocrático dos Estados Unidos.
O fato de vários desses projetos de infraestrutura envolverem contatos com empresas estatais chinesas motivou ainda mais Washington a se aproximar deles. Corrêa trabalhou em estreita colaboração com a China durante seu governo, tornando-se um dos aliados mais importantes de Pequim na América Latina. A oposição anticorreísta, por outro lado, é intransigentemente pró-americana e prometeu distanciar o Equador de Pequim, alegando hiperbolicamente que: “o discurso correísta de um país independente fica na entrada dos bancos chineses“.
Muito dessa oposição pseudoambientalista de esquerda e indigenista ao correísmo condenou severamente a China enquanto se acomodava a Washington. Yaku Pérez, o candidato de Pachakutik, fez seu nome se opondo a projetos de desenvolvimento chineses no Equador e foi avidamente promovido por uma fundação britânica dedicada a monitorar as atividades de Pequim na América Latina. Ao mesmo tempo, Pérez insistiu que “não pensaria duas vezes” antes de assinar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos.
Em complemento às dezenas de milhões de dólares que a USAID gastou no Equador para ajudar a construir essa oposição de pseudoesquerda, houve doações do NED (National Endowment for Democracy), outra frente da CIA. O NED financiou vários dos principais políticos anticorreístas, focalizando principalmente grupos indígenas, ambientalistas e de mulheres, junto com a mídia de oposição.

Um caso exemplar e primordial de organização de tubo de ensaio apoiada pelos Estados Unidos no Equador é a Fundação Pachamama. Com a ajuda de doações anuais do NED que datam de anos atrás, a fundação tem atacado implacavelmente Correa, chamando-o de “extrativista” autoritário, enquanto constantemente promove Yaku Pérez como um nobre defensor do meio ambiente.

Por seu papel de grupo de oposição financiado pelos Estados Unidos com a orientação de desestabilizar seu governo eleito, Corrêa fechou a Fundação Pachamama em 2013. Mas o presidente Lenín Moreno a reabriu em 2017, ano em que traiu abertamente seu antigo aliado e passou a suprimir agressivamente o movimento de Correa.

O Instituto Democrático Nacional (NDI), que é financiado pelo NED e vagamente ligado ao Partido Democrata, também foi um apoiador ativo da oposição anti-Correísta. Tinha um site próprio voltado para o país, vangloriando-se das atividades do instituto no local (esta página foi removida posteriormente). Líderes do partido Pachakutik foram treinados diretamente pelo NDI, junto com outros grupos de direita na América Latina, incluindo o Primero Justicia da Venezuela e o Partido de Ação Nacional Mexicana (PAN). O NDI também publicou extensos guias práticos para a oposição equatoriana, ajudando-os a fazer lobby contra as reformas de Correa e buscando replicar o sistema político dos EUA em seu país.

A estratégia de Washington de recrutar líderes indígenas para se opor ao Correísmo ecoa uma operação liderada pela CIA na Nicarágua na década de 1980, na qual a agência de espionagem cultivou líderes descontentes da comunidade miskito para desestabilizar o governo sandinista.
Da mesma forma, o governo de extrema direita do presidente brasileiro Jair Bolsonaro ganhou o apoio de comunidades indígenas que vivem na fronteira com a Venezuela e os usou para ajudar a lançar ataques contra soldados venezuelanos. Enquanto isso, no México, o governo dos Estados Unidos financiou ONGs ambientais e indígenas para se opor aos projetos de infraestrutura do presidente AMLO, como o Trem Maia (tren Maya), que visa desenvolver as regiões empobrecidas do sul do país.
Isso não significa que os governos de esquerda do Equador, Nicarágua, Venezuela ou México tenham relações perfeitas com seus povos indígenas, ou que essas comunidades às vezes não tenham enfermidades justificáveis. Mas Washington e seus aliados de direita no continente, incluindo racistas confessos como Bolsonaro, não se abstiveram de demonstrar sua disposição em explorar e confundir as comunidades indígenas para promover seus interesses geopolíticos.
Washington assim conciliava sua estratégia de usar os povos indígenas para provocar uma cunha contra Correa, ao mesmo tempo em que trabalhava ativamente contra os direitos dos povos indígenas em nível internacional. Um telegrama desclassificado do Departamento de Estado publicado pelo Wikileaks mostra que o embaixador dos Estados Unidos no Equador condenou e fez lobby contra a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, alegando que era “fundamentalmente falha”. (Por sua vez, o governo de Correa apoiou a declaração da ONU).
Para os burocratas imperialistas designados para a América do Sul, e dedicados a reverter a onda de mudança desta época, armar as minorias de identidade contra os movimentos populares tornou-se praticamente um hábito.
As mesmas táticas foram aperfeiçoadas em casa. O Partido Democrata e líderes neoliberais como Hillary Clinton dominaram a arte de usar acusações infundadas de racismo e sexismo para minar figuras social-democratas como Bernie Sanders, enquanto o Partido Republicano usou dinheiro corporativo para cultivar um punhado de vozes latinas e negras, promovendo-as para desorganizar coalizões de direitos civis e promover políticas regressivas. (Um exemplo particular e notório dessa tática é o juiz da Suprema Corte Clarence Thomas, que foi discípulo de Jay Parker, um ex-lobista registrado para o Transkei Bantustan África do Sul na época do apartheid.)
A própria CIA abraçou essa estratégia abertamente, promovendo o feminismo “interseccional” e a retórica liberal anti-racista e LGBTQ em seus anúncios de alistamento.
Actual quotes from this new CIA recruitment ad:
“I am a woman of color”
“I am a cisgender millennial”
“I have been diagnosed with generalized anxiety disorder”
“I am intersectional”
I think it’s safe to say the contemporary American left has failed.pic.twitter.com/ruUzWSeIur
— Aisha Ahmad (@aishaismad) May 2, 2021
É uma velha tática imperialista: dividir para conquistar. E os Estados Unidos a aperfeiçoaram na América Latina: uma das regiões mais pobres do mundo, onde a fortuna que Washington gasta para fazer avançar seus interesses vai longe.
Em abril de 2021, o programa do governo dos EUA que já chega a 15 anos no Equador finalmente alcançou seu primeiro grande sucesso com a eleição de Guillermo Lasso, um membro da seita católica extremista do Opus Dei, cujas políticas neoliberais são o legado dos Chicago Boys (apoiados pela CIA), que semeou o caos na economia chilena durante a ditadura de ferro do general Augusto Pinochet.
Um exame de como a oposição anti-Correísta dividiu com sucesso a esquerda local é bastante instrutivo, porque essas táticas foram refinadas e exportadas nas operações de Washington por toda a América Latina e por todo o planeta.
Esta é a primeira parte de um artigo que será publicado em duas partes.
*Tradução feita a partir da versão em espanhol de Diego Sequera.