Como a indústria assassinou cinco bairros de Maceió

Colapso das minas de sal-gema da Braskem é a maior tragédia urbana em andamento hoje, amputando cinco bairros da cidade e deslocando 60 mil pessoas forçadas a vender suas casas

por Danilo Matoso

Era o início da tarde de um sábado em Maceió, 3 de março de 2018, num verão em que as chuvas já haviam castigado especialmente a região. Ouviu-se um estrondo próximo às margens da lagoa Mundaú. A terra tremeu fortemente por alguns segundos 2,5 graus na escala Richter. Em pelo menos cinco bairros da capital alagoana, tudo estalava enquanto se abriam fendas nas paredes e no chão das edificações. Instantaneamente surgiram pequenas crateras e grotas nas ruas e calçadas. O povo, apavorado, corria para as ruas sem saber o que fazer.

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Iniciava-se ali uma história bastante real, mas que não perde em nada para enredos apocalípticos de ficção. Cerca de 60 mil pessoas que habitavam os bairros Mutange, Bom Parto, Pinheiro e uma parte do Farol teriam suas vidas profundamente marcadas a partir daquele momento. Buscava-se identificar a causa do estranho e localizado terremoto, numa região em que como em quase todo o território brasileiros os movimentos tectônicos não afetam a vida da superfície.

A área já vinha sofrendo com fissuras recorrentes nas edificações havia pelo menos uma década. Alguns engenheiros e geólogos que lidavam com o problema já suspeitavam que a instabilidade do solo tinha pouco a ver com a composição superficial do terreno. O veredito final só viria com o relatório do Serviço Geológico do Brasil (SGB-CPRM) em abril de 2019, um ano depois do evento: um número ainda indeterminado de minas de sal-gema sob aqueles bairros haviam desmoronado a quase mil metros de profundidade.

Aquela enorme região da cidade estava condenada.

Celeiro cultural

Quando os holandeses ocuparam a região na primeira metade do século 17, o local de Maceió era apenas uma fazenda preterida pelos invasores em favor de localidades como Porto Calvo, Penedo ou a próxima Santa Madalena da Alagoa do Sul hoje Marechal Deodoro. Frans Post teria chegado a ilustrar para Barléu até o quilombo dos Palmares. Georg Markgraf mapeou uma “Mondaí”, ou “Alagoa de Norte”. A urbanização do local, iniciada pelo Jaraguá, se daria somente em 1815, data de fundação da cidade e emancipação de Santa Madalena.

A região nas imediações da lagoa teve crescimento com a chegada da via-férrea na segunda metade do século 19. Na antiga localidade do Bebedouro erigiram-se casarões ecléticos, uma praça, o Colégio do Bom Conselho uma Matriz de Santo Antônio com azulejos portugueses. Ali, desenvolveram-se muitas das festas tradicionais. Para o morador Josias Oliveira, “Bebedouro era um celeiro de folguedos populares”.

O Bom Parto surgiu depois como bairro operário em volta da antiga Fábrica Alexandria, entre o bebedouro e o centro. Algumas décadas mais tarde, o Centro Sportivo Alagoano (CSA) construiu seu estádio de futebol no bairro vizinho do Mutange, mais próximo da orla como costuma ocorrer com esses equipamentos.

Como se vê é uma região com história e pela qual a população alagoana tem enorme afeto. Ali a cidade ganhou parte de seu caráter e ali a população viveu e construiu uma parte importante de sua história.

O sal da terra

A orla plana da lagoa, porém, não atraiu apenas amantes do esporte bretão e foliões. Em 1943, durante uma prospecção mineral em busca de petróleo, descobriu-se a 1.000 metros de profundidade abaixo do solo uma grande jazida de sal-gema. Esse mineral, parecido com o sal marinho, é decorrente da precipitação do sal em antigas bacias marítimas sedimentares formadas há cerca de 120 milhões de anos.

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Por ser homogêneo, concentrado e encontrável em maiores quantidades, é usado na indústria química na produção de cloro, soda cáustica, ácido clorídrico, bicarbonato de sódio, em produtos farmacêuticos, indústrias de papel, celulose e vidro, além de produtos de higiene como sabão, detergente e pasta de dente, bem como do ubíquo plástico Policloreto de Vinila, o PVC.

Num ato típico do chamado desenvolvimentismo daquele tempo, em 15 de junho de 1970, o decreto 66.718 assinado pelo ditador militar Emílio Médici, outorgou à Salgema Mineração Ltda. a concessão para lavrar sal-gema naquela área que não apenas era território urbano como também possuía elementos que merecem especial cuidado ambiental. O polígono é enorme, com cerca de 1.900 hectares. Até aqui, a empresa explorou uma área de 83 hectares. O restante, ainda inexplorado, avança sob os bairros afetados e sob a lagoa.

A partir de 1975, a empresa perfurou nada menos que 35 poços de sal na região. De lá para cá, foi rebatizada em 1996 de Trikem que, em 2002, uniu-se a outras empresas do setor na criação da gigante petroquímica Braskem que tem entre seus acionistas e parceiros a Petrobras e a Odebrecht, por exemplo. O mineral do local era usado na produção de tricloroetano na indústria de Pontal da Barra, além da fábrica de PVC de Marechal Deodoro e a indústria do Polo de Camaçari, na Bahia.

Desnecessário dizer que a escala do capital envolvido ganhou centralidade no jogo de forças local. A Salgema imbricou-se de tal modo na política local que foi capaz de passar por cima de todos os órgãos ambientais para obter licenças para as suas operações além dos subsídios estatais ubíquos no Brasil do Milagre Econômico da ditadura militar.

A exploração dos poços é feita com perfuratrizes que injetam água aquecida, promovendo a dissolução subterrânea do sal petrificado e tornando possível o bombeamento da salmoura até a superfície. Segundo o engenheiro, geólogo e professor Abel Galindo Marques, as minas da região formam bulbos de 80 a 100 metros de altura e 60 a 120 metros de diâmetro. O especialista, que teve acesso aos cálculos sobre a resistência das rochas no local, afirma que “o diâmetro admissível para as minas seria de 53 metros e o diâmetro de ruptura, 70 metros, mas eles fizeram minas com 100 metros ou mais de diâmetro, e muito próximas. Algumas se juntaram em buracos onde caberia o estádio do Maracanã”.

A maior tragédia urbana em andamento no Brasil

O estrondo ouvido pelos moradores em março de 2018 foi nada menos que o desabamento desses salões gigantescos nas profundezas da lavra. O terremoto foi o afundamento imediato do solo sobretudo nas áreas próximas à lagoa, chegando a deslocamentos de até dois metros. Abel relata que o terreno “continua afundando em torno de 25 centímetros por ano. A previsão, segundo alguns relatórios, é de que possa afundar mais 3 ou 4 metros nas próximas décadas”. Segundo o especialista, um instituto italiano calculou que, a partir deste ano podem ocorrer colapsos de grande escala na superfície: “crateras de 50 a 80 metros de diâmetro podem aparecer”, com cerca de oito metros de profundidade.

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Após negar por um ano a relação entre as minas e os desabamentos, com o relatório do SGB-CPRM, a Braskem precisou reconhecer que fora a causadora do desastre. Em janeiro de 2020, a empresa realizou um acordo com o Ministério Público Federal (MPF) que levaria ao desenvolvimento de um Programa de Compensação Financeira e Apoio à Relocação dos moradores, que na verdade já vinham sendo obrigados a deixar suas casas e locais de trabalho desde 2018. Segundo os moradores, o MPF não consultou a comunidade sobre os termos do tal acordo, supostamente “bilateral”.

A arquiteta e urbanista Josemée Gomes de Lima traduz a transação: “em outras palavras, a Braskem recebeu a chancela do MPF e da Justiça para ter o monopólio de oferta e compra dos imóveis das vítimas do dano por ela causado no valor que entender ser devido. Ao fim, tornando-se dona de ao menos 4 bairros inteiros e parcela do quinto bairro”. Pior ainda, para receber a compensação financeira, “a vítima precisa se comprometer contratualmente a não denunciar a empresa criminalmente”. Coincidentemente, a área desocupada corresponde justamente à área de concessão de lavra da mineradora feita em 1970. O processo todo vai resultar ainda numa conveniente desapropriação que de outra forma teria sido impossível.

Num país que sofre há 400 anos com os flagelos da miséria, da desigualdade, da exploração colonial, da escravidão, das ditaduras; num presente pandêmico, em que testemunhamos de rompimentos de barragens, queimadas desenfreadas, banhos de agrotóxicos; em cidades que segregam, chacinam e oprimem sua população de todas as formas; pode-se dizer que Josemée não exagera nem um pouco ao classificar o que ocorre em Maceió como “a maior tragédia urbana em andamento no Brasil”.

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Paisagem distópica

À medida que deixam suas casas, os antigos moradores levam tudo o que pode ser reaproveitado. Os bairros afetados, com as casas sem telhas, descarnadas, rachadas, em meio a montes de escombros viraram verdadeiros cenários de guerra. Uma cidade fantasma com o solo em falso prestes a ceder sob as paredes. Uma distopia bastante real.

Abandonada, lar de insetos, foco de dengue e chikungunya, abrigo de crime e violência a região, tornou-se uma zona hostil a qualquer um que nem sequer sonhe em renegociar os termos de compensação financeira da Braskem. Os bairros centenários morreram e mataram as histórias de seus moradores.

Não se fala de morte apenas em sentido figurado. O sofrimento psíquico da população se somou às condições insalubres e de fato estão levando a óbito sobretudo os idosos inclusive por suicídio.

São famílias, comunidades inteiras, forçadas a deixar o território em que viveram por gerações. Essa tragédia não afeta somente os moradores dos bairros. Cortou-se a linha do trem, sobrecarregaram-se outros eixos de circulação urbana, inflacionou-se o mercado imobiliário. Maceió teve uma importante parte de seu patrimônio material e imaterial amputado pela indústria.

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A população tenta resistir se organizando, com movimentos como o SOS Pinheiro, que mobiliza a população em atos políticos, o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB) ou o belo e comovente Projeto Ruptura, com exposições fotográficas por toda a cidade. Elas retratam também grafites nos muros das ruínas aparentam ser os últimos gritos de uma comunidade em desespero. E suas vozes vêm sendo sufocadas. A imprensa corporativa ou se omite ou noticia o problema quase como um acidente natural.

Nesse panorama agressivo, surgiu para os moradores recentemente a opção de acionar a empresa em outros países em que ela tem sede, mas onde ainda não cooptou todas as instituições, como em Alagoas. No último dia 17 de maio, um grupo de famílias realizou uma audiência pública junto ao Poder Judiciário da Holanda, a mesma que mapeou e ocupou a região há 300 anos, de certo modo dando início ao que hoje se vive ali.

Fotógrafos do Projeto Ruptura colam cartazes em Maceió

É bem verdade que outros cada vez mais se unem à causa. Com o apoio de diversas entidades sindicais, o cineasta Carlos Pronzato realizou em 2021 o documentário A Braskem passou por aqui: a catástrofe de Maceió, denunciando o crime. O Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo de Alagoas (CAU/AL) realizou em maio último o Seminário Arquitetura e Urbanismo como vetor de Reavivamento Espacial, visando a sensibilizar profissionais de todo o país. Mas é verdade também que ainda é pouco para fazer frente à indústria. É necessário multiplicar essas ações.

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A Braskem, ali, incorpora e dá rosto ao sistema: impessoal, implacável, desumana, indiferente aos clamores da população cuja força de trabalho ela mesma explora. O Estado se assume, aqui, como o tradicional “balcão de negócios da burguesia”, vestindo a camisa dos moradores, mas jogando no time da empresa. No horizonte daquele povo, só há mais luta. A luta que ao fim e ao cabo é aquela de todos nós: a dos trabalhadores contra o capital.

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