A tentativa de “pink washing” tucano nos atos contra Bolsonaro fracassou no último sábado. Após investimento na empreitada, os jornalões choram pelos cantos de suas colunas

por Danilo Matoso
As editorias políticas de alguns jornais corporativos viveram uma frustração nesse último final de semana. Esperavam que as manifestações do último sábado (3) pelo impeachment de Jair Bolsonaro fossem não apenas maiores, mas maiores pela direita. Na noite daquele mesmo dia, o UOL – da Folha de S. Paulo – chegou a estampar em sua capa: “Protesto contra Bolsonaro reúne PT e PSDB na avenida Paulista”. Não foi bem o que ocorreu. Embora com grande número de manifestantes vestidos de preto ou outras cores com menos conotações partidárias, os protestos realizados em todos os estados do país, centenas de municípios, com milhões de pessoas, continuaram dominados pelo campo da esquerda e suas cores tradicionais – vermelho e amarelo. Aos liberais, restou lamentar a renitente falta de perspectiva eleitoral de suas lideranças.
A semana parecia alvissareira para a direita que se descolou de Bolsonaro. Na quarta, foi entregue o chamado “Superpedido” de impeachment na Câmara dos Deputados, reunindo os argumentos de 123 pedidos anteriores, apontando 23 crimes de responsabilidade e assinado por 45 lideranças de um espectro político que vai de Joice Hasselman (antiga correligionária do presidente da República no PSL) até Edmilson Silva Costa, secretário-geral do PCB, passando por praticamente todos os partidos do Parlamento, além de uma ampla gama de centrais sindicais e movimentos populares entre eles. Todos unidos por um consenso: Bolsonaro deve ser retirado da Presidência da República. Com uma pauta tão clara e unificada, a direita começou a se mexer.
Na quinta (1º), o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), declarou sua homossexualidade numa entrevista: “Eu sou gay. E sou um governador gay, e não um gay governador” – o que quer que isso queira dizer. Para dissipar qualquer dúvida quanto à conveniência política de sua declaração, reforçou: “… tanto quanto Obama nos Estados Unidos não foi um negro presidente, foi um presidente negro. E tenho orgulho disso” – ah, bom. Leite é um dos pré-candidatos à Presidência da República pelos tucanos. Além de ocorrer às vésperas do terceiro ato nacional pela deposição de Bolsonaro e no dia seguinte à apresentação do “Superpedido” de impeachment, a saída do armário ocorreu alguns dias após o 28 de junho, dia internacional do orgulho LGBTQI+, após um mês de mobilizações pelos direitos dessa comunidade.
Lavagem rosa
Seria a pink washing [lavagem rosa] do PSDB. Ao assumir a pauta LGBTQI+, francamente oposta à posição política de Bolsonaro, os tucanos apagariam o seu passado bolsonarista. Quem acompanhou a pauta política das últimas décadas sabe, porém, que foram o jornalismo de guerra da imprensa corporativa e a histeria udenista do PSDB – negando-se a aceitar o resultado eleitoral de 2014, por exemplo – que construíram o clima propício ao crescimento do fascismo no Brasil. Pior ainda: Eduardo Leite e o PSDB apoiaram a candidatura de Jair Bolsonaro no segundo turno – e o governador gaúcho chegou a afirmar que o fazia por convicção, e não por conveniência.
Abraçando a pauta LGBT, o PSDB poderia novamente se assumir como “progressista” e, quem sabe, comparecer até mesmo nos atos de rua contra Bolsonaro. Por que não? A imprensa corporativa pareceu abraçar essa esperança. Entre sexta e sábado, a Folha de S. Paulo – órgão de imprensa oficial tucano – chegou a postar três matérias sobre Eduardo Leite dentro da categoria “Eleições 2022”. A primeira com a manchete inequívoca: “Declaração de Eduardo Leite sobre ser gay lança dúvida sobre agenda LGBT e efeito eleitoral”.
Além disso, após um mês de mobilizações, os vendedores ambulantes dos centros das grandes metrópoles tinham uma grande ponta de estoque de bandeiras arco-íris, fartamente exposta e vendida nas ruas naquele sábado de protestos. Com bandeirões da causa LGBTQI+ estendidos no chão por encomenda do grupo político Acredito, de Jorge Paulo Lemman, seria como se todos os manifestantes da causa LGBTQI+ estivessem na rua em apoio a Eduardo Leite, e não em defesa de um grupo historicamente oprimido.
A realidade foi bem diferente. Primeiro porque a direita liberal praticamente não tem militância de rua organizada. Em mobilizações, contam com a sensibilização via TV Globo, as assessorias parlamentares, os comissionados plantados no serviço público etc.. Não houve tempo para mobilizar esse aparato. Na prática, o PSDB não apareceu organizado em praticamente nenhum grande ato contra Bolsonaro no sábado, a não ser por um pequeno grupo… LGBTQI+ em São Paulo – pertencente ao grupo Diversidade Tucana. Foi uma presença mirrada, que ainda gerou certa animosidade.
Atire a primeira pedra
Como se sabe, os grandes jornais deixam matérias prontas nos dias úteis, de modo a reduzir o pessoal de plantão no final de semana. Parece ter sido o caso da Folha, que fez questão de mencionar uma suposta presença do PSDB nas ruas e, como já mencionado aqui, chegou a publicar, no sábado de noite, uma narrativa de paridade entre os milhares de manifestantes de esquerda e os 20 tucanos na paulista. Para tornar clara sua empreitada, a Folha faz questão ainda de esclarecer no próprio sábado que o “grupo de presidenciáveis do manifesto que apontou 3ª via se esfacela três meses após lançamento” – Ciro Gomes (PDT), Dória (PSDB), Mandetta (DEM), Amoêdo (Novo) e Eduardo Leite.
A ilusão durou pouco. Sem qualquer presença nas ruas, restou à nossa imprensa corporativa lamentar o fracasso de sua investida. Primeiro foi Igor Gielow, que resmungou na Folha já no fim da tarde: “Protesto expressivo em SP tem DNA de esquerda e pró-Lula, apesar de alguns tucanos pingados”. Se não podia ser de direita, não seria de ninguém. Embora praticamente todos os atos tenham crescido em volume em relação aos anteriores, para o colunista, aquela fora a “edição mais fraca desde sua estreia em 29 de maio”. Na edição impressa de domingo, O Globo – do Rio de Janeiro – fez questão de estampar sua matéria sobre os atos com uma foto da bandeira do PSDB na avenida Paulista, mas se queixou: “protestos ganharam adesão de pequenos grupos fora da esquerda”.
Na mesma toada, o El País também fez muxoxo: “protestos contra Bolsonaro repetem êxito, mas não extrapolam bolha da esquerda”. A frustração era justificada: “havia a expectativa de que o ato ganhasse força com a presença de novos atores mais à direita, em especial por causa da adesão à defesa de impeachment por parte de ex-bolsonaristas”, revelaram as colunistas Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Mariana Assis. Elas relatam em detalhe o malogro do pink washing: “com uma enorme bandeira de arco-íris no chão, os tucanos colocaram sobre ela bandeirolas em homenagem ao prefeito de São Paulo Bruno Covas, morto em maio, vítima de câncer. A reportagem do El País conversava com o presidente do grupo, Danilo Augusto, quando uma jovem de preto passou e gritou ‘ainda bem que esse bosta morreu’, num gesto agressivo que irritou quem a ouviu. Houve um tucano que se preparou para devolver a provocação, mas recuou com auxílio de colegas. Uma pedra, jogada em direção a eles atingiu a reportagem do El País, inclusive”.
Em parte, a queixa é justa: nada justifica a violência pessoal – sobretudo num ato organizado por várias entidades e partidos. Por outro lado, há que se convir que, somente numa fantasia liberaloide, seria possível a participação de um grupo de tucanos num movimento de massas de esquerda . Eles são os pontas-de-lança do golpe de estado que derrubou ilegalmente Dilma Rousseff em 2016, capitães da privatização, defensores do teto de gastos, artífices da criminalização do PT e de muitas lideranças populares. São, enfim, os responsáveis “por tudo isso que está aí”. É desejável, é claro, que outros setores da direita participem de atos de rua pela deposição de Bolsonaro – não apenas por uma questão de apoio popular mas também pelo necessário número de votos no Congresso. Há, porém, outras maneiras de fazê-lo, em dias ou ao menos em locais diferentes. Não é difícil.
A frustração dos colunistas, porém, revela que nossa burguesia liberal e a imprensa venal a seu serviço não admite nem admitirá publicamente ser corresponsável pela ascensão do fascismo no Brasil e pela eleição de Bolsonaro. Numa espécie de golpe de mão argumentativo, insistem numa narrativa sem pé nem cabeça – adotada também por Ciro Gomes, é bem verdade – segundo a qual o PT teria sido o responsável pela eleição do capitão, por não ter aberto mão de sua candidatura. Ou seja: temos um psicopata hoje no poder por culpa de quem sempre se opôs a ele e tudo que ele representa, e não por única e exclusiva responsabilidade daqueles que nele votaram, que o apoiaram ou que se omitiram. Talvez, perdidos em sua própria narrativa, eles acreditem que devam ser recebidos nos atos com um tapete vermelho estendido na avenida.
Em todo caso, o MBL (Movimento Brasil Livre) e o Vem pra Rua – extrema-direita fascista surgida nas manifestações de 2013 – finalmente parece ter se mancado, e em reunião na última segunda decidiram que realizarão seu próprio ato contra Bolsonaro. Já têm cobertura garantida. A mesma que, certamente, agora passará a faltar aos atos de esquerda – como de resto sempre aconteceu.