Até a liberdade de expressão tem limites

Bolsonaristas reivindicam, quando convém, a liberdade de expressão como direito absoluto, no entanto nem os pensadores tradicionais da direita concordariam

Imagem: Mark Long
por Alexandre Lessa da Silva

Não passa um dia que alguém da direita extrema não profira algo criminoso e que, para se defender, não utilize como argumento o direito à liberdade de expressão ou o direito a ter qualquer opinião que seja. Muitas pessoas da esquerda entendem que isso não passa de cortina de fumaça, uma vez que problemas sérios do país, como a fome, a inflação e o desemprego, são deixados de lado para debater outros que não julgam tão preocupantes. Em função de tudo isso, resolvi escrever um texto utilizando o arcabouço teórico da própria direita, em especial da direita conservadora, para provar algo evidente, que a liberdade de expressão tem seus limites.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

Antes de começar a empreitada, é necessário responder às questões acima.

A cortina de fumaça é sempre um problema, pois se você não responde, o absurdo colocado por ela pode passar como verdade ou como uma opinião defendida pela maioria, o que também é prejudicial para as posições progressistas. Um bom exemplo disso, é a declaração homofóbica e recente  de um jogador de vôlei que foi despedido do Minas Tênis Clube. É evidente que a homofobia precisa ser combatida, evitando assim um retrocesso. Mas, e se for uma cortina de fumaça? Mesmo assim, temos que combatê-la e, ao mesmo tempo, transformar esse combate em algo positivo para a esquerda, até mesmo porque a maioria já discorda da intolerância desse jogador. A essa altura do campeonato, as cortinas de fumaça poderão exercer um papel inverso para a extrema direita, é só saber trabalhar. Assim, combater a homofobia, o racismo, a misoginia e assim por diante é um dever da esquerda. A estratégia é deslocar os casos particulares para um debate geral que, por sua vez, deverá orbitar temas centrais para a grande discussão política eleitoral, como as questões econômicas e, mais especificamente, de classes.

Outro fator importante é a diferença entre opinião e sua manifestação. Agostinho, Aquino e tantos outros filósofos do Medievo já observaram que a justiça humana só julga o que pode ser observado, nunca o íntimo dos indivíduos. Para eles, só a justiça divina seria capaz de chegar à consciência de cada um de nós para poder julgar. Portanto, a justiça humana tem seus limites e não pode julgar aquilo que não tem nenhuma materialidade. Assim, o sujeito pode ter a opinião que quiser que não poderá sofrer nenhuma sanção por ela. O problema é a exteriorização dessa opinião. A partir do momento que a opinião é transmitida, por qualquer meio constatável, ela ganha sua materialidade e o que é, agora, um enunciado, pode ser considerado um crime pela nossa legislação, como ocorre com as palavras de Maurício Souza, o jogador de vôlei.

Esclarecidas as questões preliminares, é importante explicar o que é um valor absoluto. Um valor é absoluto quando não há limitações para ele, isto é, quando é válido por si só e independente dos outros. Um valor absoluto, definido dessa forma, não pode ser relativizado através de outros valores, nem pode, portanto, ser limitado pelo Estado ou qualquer outra instituição. Dessa maneira, não há como defender a liberdade de expressão como um valor absoluto. Isaiah Berlin, por exemplo, ao descrever seus dois tipos de liberdade, a liberdade positiva e a negativa, tende sempre para o lado da liberdade negativa, aquela definida pela inexistência da interferência de outros e inexistência de coerção. A liberdade positiva, por sua vez, é aquela da autonomia do sujeito e de suas escolhas, incluindo a escolha de quem governará a sociedade. Apesar dessa valorização de um máximo de liberdade, Berlin não deixa de avisar, em seu ensaio sobre o assunto, que “não podemos permanecer absolutamente livres”.

Leia também:  “Webcomunismo”, “webmacartismo”: uma polêmica sem diálogo

John Stuart Mill, outro ícone do liberalismo e um dos autores mais usados para a defesa da liberdade de expressão no campo da direita, afirma que “embora a sociedade não esteja fundamentada num contrato… o fato de se viver em sociedade faz com que seja indispensável que cada um seja obrigado a observar uma certa linha de conduta em relação aos demais” (1). Logicamente, essas palavras de Mill têm como consequência que a liberdade, no interior de qualquer sociedade, tem seus limites. O autor inglês também aborda a questão do abuso de direitos e, consequentemente, da liberdade. Sobre isso, afirma:

“Já atos injuriosos para com os outros requerem um tratamento bem diferente. Abusar dos direitos deles; infligir a eles qualquer perda ou dano injustificáveis pelos direitos do próprio infrator; falsidade ou duplicidade ao tratar com eles; uso injusto ou não generoso de vantagens que se tenham sobre eles; até mesmo a abstenção egoísta de defendê-los contra qualquer dano — são questões passíveis de reprovação moral e, em casos mais graves, de retaliação e punição” (2).

Portanto, Mill reconhece que todo abuso deve ser recriminado e, nos casos mais graves, punido através da lei.

Se o campo político da argumentação for deslocado do liberalismo político para o conservadorismo, também não há defesa para uma liberdade de expressão absoluta. Edmund Burke, uma das principais bases do conservadorismo, deixa isso bem evidente:

“… de todos os termos frouxos do mundo, a liberdade é a mais indefinida. Não é uma liberdade solitária, desconectada, individual, egoísta, como se todo homem fosse regular toda a sua conduta por sua própria vontade. A liberdade que eu quero dizer é liberdade social. É aquele estado de coisas em que a liberdade é garantida pela igualdade de restrição” (3).

Russell Kirk, escritor estadunidense conhecido como um dos pilares do pensamento conservador na América do Norte, também não fornece apoio para a defesa de uma liberdade sem limites. Em seu livro ‘Conditions of Freedom’, Kirk apresenta sua posição a respeito do tema: 

Leia também:  Yuval Harari: a mentira a serviço de uma ordem em colapso

“Todo direito é casado com um dever; toda liberdade possui uma responsabilidade correspondente; e não pode haver liberdade genuína a menos que haja também uma ordem genuína no domínio moral e no social”(4).

Deixando de lado o campo teórico e entrando no mundo legal, constatar-se-á a impossibilidade da defesa de uma liberdade de expressão como valor absoluto, como demonstrado abaixo.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 19, afirma:

“Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.”

O artigo não fala em mentiras ou crimes, mas em informações, opiniões e ideias, evidentemente quando declaradas. Além disso, a Declaração deixa evidente, em seu preâmbulo, que a dignidade de todo ser humano é a base da liberdade (5). Assim, atacar a dignidade humana é atacar a própria liberdade, pois é uma ofensa ao seu fundamento.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, incorporado na legislação brasileira através do Decreto 592 de 6 de julho de 1992, diz que “toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião” (art.18, parágrafo 1). Em seu artigo 19, parágrafo segundo, o Pacto assevera que “Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão (6). Entretanto, o parágrafo seguinte deixa bem evidente que essa liberdade não é absoluta:

“3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei…”

Como a extrema direita tem un fetiche com os Estados Unidos, é bom não deixar de citar a base de sua legislação. A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos traz o seguinte texto:

“O Congresso não deverá fazer nenhuma lei a respeito do estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringir a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”.

Apesar da Primeira Emenda defender, como mostrado, a liberdade de expressão, o direito estadunidense não considera tal valor como absoluto, no sentido exposto por este artigo. A Suprema Corte já apresentou uma série de limites a esse valor, como nos casos de falsas declarações de fato, obscenidade, pornografia infantil e outras. O discurso de ódio também é, em muitos casos, limitado e punido nos Estados Unidos. Desde o caso Chaplinsky versus New Hampshire de 1942 até, pelo menos, Matal versus Tam de 2017, a Suprema Corte vem tomando decisões que limitam o discurso do ódio.

A Constituição atual do Brasil, em seu artigo quinto, parágrafo 4, diz que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. No parágrafo em questão, já se percebe uma limitação, referente ao anonimato. Todavia, a Constituição vai mais longe, e, no parágrafo seguinte demonstra isso: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.

Leia também:  Parceria com neonazistas na Ucrânia: uma história inconveniente

Como foi demonstrado, não há como fundamentar legal ou teoricamente, mesmo usando apenas autores de direita ou um direito como o estadunidense, como feito neste texto, o discurso de ódio e as mentiras (fake news) produzidos pela extrema direita no Brasil e no mundo. Entretanto, a liberdade de expressão, apesar de não ser absoluta, deve ser defendida no âmbito de seus limites legais e de acordo com o valor da justiça. Perseguir, seja da maneira que for, alguém em função do uso de sua liberdade de expressão pura e simples, aquela que expressa uma opinião ou postura do indivíduo, deve ser vedado a qualquer autoridade, uma vez que devemos ser livres, mas lembrando sempre que os outros também são livres e possuem dentro de si a dignidade que é inerente a todo ser humano.

A extrema direita bolsonarista diz que é censurada, mas cometer um crime não é liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, pratica a censura e viola a liberdade de expressão, como no caso da Secretaria de Cultura que publicou uma portaria proibindo a linguagem neutra nos projetos da Lei Rouanet. Saber os limites é simples, mas a direita extrema quer confundir e, ao mesmo tempo, reivindicar que os limites da liberdade de expressão são dados por seu próprio discurso criminoso, tentando calar toda diferença. Todo esse discurso bolsonarista é loucura, mas “embora seja loucura, há nela certo método”.


(1) MILL, Stuart John. Sobre a liberdade e A sujeição das mulheres. Trad. Paulo Giger. São Paulo: Companhia das Letras/ Penguin, 2017. Ed. Eletrônica.

(2) Ibid.

(3) Carta (To Mons. Dupont ) in KRAMNICK, Isaac (ed). The portable Edmund Burke. Nova Iorque, Penguin, 1999. Ed. Eletrônica.

(4) KIRK, Russell. Conditions of freedom. Nova Iorque: Commonweal, 1956. P. 371.

(5) “Preâmbulo: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

(6) O texto completo é: “2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha”.

Deixe uma resposta