As esquerdas, a superficialidade e a urgência do marxismo

por Vitor Ferreira

Aparenta ser muito contraditório o fato que estejam se iniciando ou reiniciando movimentos de juventude pelo Brasil e pelo mundo baseados no “velho marxismo” em luta pela “velha revolução socialista em direção ao comunismo”, como uma “nova solução” ao caos e à barbárie liberal-burguesa que nos guiou até aqui e financiou/deu espaço ao crescimento do nazifascismo atual. Mas como e por que uma teoria do século XIX pode ser a base para pensarmos a realidade nos dias de hoje? Como e por que o projeto de transição socialista para o comunismo derrotado no século XX com o fim da União Soviética pode ser a alternativa de projeto a este capitalismo morto-vivo? Essa reflexão tentará responder a essas questões de forma bem simples e clara, mostrando quais são as verdadeiras contradições postas atualmente e que precisam ser assimiladas e superadas pelas esquerdas.

O horizonte marxista

Antes de responder às perguntas falemos rapidamente da ciência marxiana e marxista, a obra marxiana-engelsiana quando vista superficialmente até pode parecer apenas um acúmulo de debates de uma época passada, uma documentação histórica de um tempo passado ou um reflexo do pensamento do século XIX. Mas aqueles e aquelas que se debruçam sobre o método científico fundado por Marx e Engels, o materialismo histórico e dialético que guiou todas as revoluções socialistas e anticoloniais do século XX, portanto que só pode ser concretizado de verdade a partir da práxis revolucionária, conseguem romper com o empiricismo, ir além da aparência dos fenômenos e da realidade, e entender como enxergar os movimentos do nosso tempo e propor a verdadeira mudança. O marxismo é o desenvolvimento do pensamento e obra marxiana-engelsiana, é a continuidade ampliada do legado de Marx e Engels por pensadores e pensadoras, por trabalhadores e trabalhadoras, por revolucionários e revolucionárias sem nenhum tipo de ortodoxia que não seja a do método, o caminho revolucionário e o horizonte comunista da emancipação humana.

Atualidade de Marx

Vamos agora à primeira pergunta, como e por que uma teoria do século XIX pode ser a base para pensarmos a realidade nos dias de hoje? Simples e objetivamente porque vivemos na sociedade burguesa sob regime capitalista, a mesma que foi dissecada por Marx e pelos marxistas, que apenas avançou tecnologicamente, nas formas de dominação e de desenvolvimento do capital. O materialismo histórico e dialético nos dá a base concreta de como chegamos até aqui, que tipo de sociedade é essa na qual vivemos, quais as bases do funcionamento dessa sociedade, quais interesses e como esses interesses são favorecidos, e nos mostra que a divisão de classes está posta e que a luta de classes é real. 

Agora tentarei exemplificar rapidamente como uma parte considerável das esquerdas desnutridas da teoria do proletariado, desmunidas da ciência marxista, não consegue ter profundidade nas análises conjunturais e por isso não consegue e não conseguirá dar a linha política de superação da atual situação.

A “onda conservadora”

O setor majoritário das esquerdas, os chamados “progressistas”, falam em “onda conservadora”, “onda neofascista”, “onda neonazista”, que teria surgido com Donald Trump e o Brexit e se ramificado mundo afora. No nosso caso Bolsonaro seria um desses frutos e essas ondas seriam então o motivo de estarmos na beira do precipício.

Dificilmente se vê alguma explicação do que causou essa onda ou quando se vê são explicações rasas de que o povo sempre foi assim e agora só se aflorou o que sempre foi, ou que o povo está votando nas eleições como forma de protesto, que a culpa é da classe média ou mais contraditório que é falta de consciência de classe, das mesmas esquerdas que tiveram e ainda tem como projeto político a conciliação de classes.

Em resposta a esse tipo de pensamento raso de vários e várias dirigentes políticos de peso, é preciso levantar um debate mais sério. É inegável que tais “ondas” são movimentos reais da atualidade, mas esses movimentos não podem ser explicados por si só, não deve ser simplesmente jogado no ar como se simplesmente parte do mundo resolvesse do nada por si só aflorar um sentimento conservador, ou que parte do mundo por si só tivesse desenvolvido internamente sentimentos e posicionamentos racistas, machistas, homofóbicos, xenofóbicos, neonazistas e neofascistas.

Luta de classes

Essas ondas e movimentos concretos são expressões de anos de despolitização, de anos de abandono dos trabalhos de base, da redução do horizonte de luta apenas para o campo eleitoral burguês, de anos de conciliação de classes, da falta de estudos sérios e comprometidos em mudar a realidade, na qual a concretude desse abandono, dessa redução, dessa falta de ação e estudo é a derrota na luta de classes!

A derrota foi no campo da subjetividade, do pensamento, do sentimento e da ideologia dos trabalhadores e trabalhadoras, a derrota foi na objetividade dos movimentos, dos sindicatos, dos partidos de esquerda e o avanço do nazifascismo conservador que nunca deixou de disputar diariamente as mentes, corações e corpos dos trabalhadores e trabalhadoras, que investiu no movimento neopentecostal, investiu na produção cultural de massas, investiu em diversos aparelhos políticos de formação ideológica e alimentou o ódio dando falsos inimigos à classe trabalhadora. Vivemos claramente uma ofensiva burguesa desde a crise que se iniciou em 2008, o processo de crise econômica mundial foi o ponto de partida dessas ondas, foi o que gerou essas ondas, assim como no mar não é a água que simplesmente decide se mexer e formar ondas, na vida real os movimentos também têm pontos de ignição, os seus porquê,s e tudo é histórica e socialmente produzido e determinado.

Derrota do bolsonarismo

Ainda é possível pensar num segundo exemplo mais recente no Brasil de análise completamente superficial que boa parte das esquerdas vêm reproduzindo encabeçadas por seus dirigentes sobre as eleições municipais, a ilusão de que o campo progressista saiu mais forte se resume ao fato de que alguns partidos conseguiram eleger alguns parlamentares (o que sempre será importante), conseguiram fazer algumas filiações (o que não necessariamente diz respeito à militância) e o bolsonarismo parece ter sido derrotado. Infantilmente resume-se o bolsonarismo à figura de Bolsonaro que, claro, é o símbolo maior da atual ofensiva burguesa, do nazifascismo e do imperialismo, mas mais uma vez se simplifica esse movimento personificando-se tudo na figura do mesmo e encarando este movimento como algo realizado por si só. Claro que este é um genocida que precisamos derrotar o mais rápido possível em todos os campos possíveis, mas é preciso ir além na análise, o projeto que este psicopata representa não é um projeto que parte apenas dele, que apenas ele representa e que dependa apenas dele, este projeto é um projeto de dominação de classe, de base econômica, que se utiliza de diferentes formas, aparelhos e representantes para tocar essa ofensiva.

Não entender que o campo de fato vitorioso nas eleições é o campo da “centro-direita”, que de centro não tem absolutamente nada e que caminha de mãos dadas com o fascismo, é um erro. Este campo que possui exatamente o mesmo projeto econômico do bolsonarismo conseguiu assumir o lugar de “oposição” ou de “alternativa do bolsonarismo” apenas por ter uma superfície mais moderada sem sequer ter qualquer diferença nas políticas de austeridade, de privatização/entreguismo e de manter todas as contra-reformas feitas. 

O aumento de alguns números no campo progressista precisa ser acompanhado de mais velocidade do país e do mundo, precisa ser acompanhado da urgência que vivemos, precisa ser acompanhado de mais projetos propositivos do que reativos, precisa de mais velocidade na capacidade de mobilização, de mais capacidade e velocidade de radicalização das classes trabalhadoras, precisa entender e enfrentar de forma mais eficaz a pandemia catastrófica, precisa entender a velocidade em que o planeta está chegando no seu limite de esgotamento, necessita entender e expor de forma mais rápida as contradições entre capital e trabalho, as contradições entre escravidão assalariada e a liberdade, as contradições entre burguesia e trabalhadores e as contradições entre capitalismo e humanidade.

Fiasco da conciliação

Agora tratemos da segunda questão, como o projeto de transição socialista para o comunismo derrotado no século XX com o fim da União Soviética pode ser a alternativa de projeto a este capitalismo morto-vivo? Novamente de forma simples e objetiva responderei dizendo que esse movimento é o único movimento possível de vitória concreta da classe trabalhadora sobre a burguesia. É uma resposta ao fracasso do campo progressista em mudar verdadeiramente a realidade dos povos trabalhadores com a pífia “estratégia” de conciliação de classes e pequenas reformas, apenas uma ruptura revolucionária pode de fato dar um outro rumo à história dos povos trabalhadores. Não existe outro exemplo na história do mundo que possa ser alternativa, apenas a sociedade socialista pode abrir as portas para outros tipos de relações entre seres humanos e com o planeta.

O campo progressista na América Latina conseguiu conquistas simbólicas importantes, obteve mais de uma década de crescimento de consumo das classes trabalhadoras, de certa estabilidade política até a grande crise surgir nos grandes centros capitalistas. E aí a ofensiva burguesa aliada ao imperialismo não perdoa, para manter a ordem capitalista vale tudo! Desde financiar golpes em diversos países pelo mundo, estimular o caos e instabilidade em diversas regiões, financiar nazifascistas, aumentar os bloqueios econômicos covardes, roubar material de saúde na pandemia, deixar que milhões morram sem tomar qualquer atitude real enquanto sistema no mundo, no máximo tomando algumas medidas locais.

A lógica do capital e da sociedade burguesa não foi superada e nem chegou perto de ser, não há reforma suficiente dentro do sistema que mude isso e nem há tempo suficiente para embarcar novamente nesse comodismo de não enfrentar diretamente aqueles que nos matam todos os dias, aqueles que no auge da sociopatia e da psicopatia dizimam populações em busca de lucro sem pensar nem meia vez.  O campo da esquerda recuou drasticamente pós a derrubada da União Soviética, a obra marxiana-engelsiana juntamente às obras dos pensadores e pensadoras marxistas foram quase que abandonadas, as lutas sociais-reformistas de diminuição da desigualdade (que não é a mesma coisa que a luta pelo fim da produção da desigualdade) passou a ser a maior bandeira do chamado campo progressista, evitou-se a radicalidade enganando-se que a chacina não viria quando a mesma nunca cessou e estamos pagando o preço desde então.

A contradição essencial permanece a mesma

A contradição central da atualidade continua sendo a mesma desde o século XIX, a mesma que derrubou a União Soviética no século XX, a luta de classes entre trabalhadores e burguesias de forma nacional e internacional, essas lutas tiveram diversas expressões reais em toda a América Latina e no mundo nesses últimos 12 anos, e a tendência é que não haja um esfriamento tão cedo, pois sem superar a crise da década passada aliada à crise pandêmica da atualidade é muito provável que entre os próximos 5 anos uma nova crise econômica venha a eclodir, isso sem nem considerar as prováveis catástrofes ambientais que devem acontecer devido a essa dinâmica doentia do capital e as tensões entre EUA x China, que agora, gostando ou não, é o maior contraponto de enfrentamento à lógica capitalista dominante.

O comunismo é a juventude do mundo, e assim será até a vitória completa das classes trabalhadoras, nacional e internacional. O marxismo é a maior arma para rompermos de vez com a exploração do homem pelo homem e abandonarmos de vez a pré-história da humanidade, mas é preciso lutar, é preciso organização, é preciso radicalidade, é preciso profundidade e é preciso velocidade das esquerdas, pois, como diria Gramsci, “o velho está morrendo”, “os sintomas mórbidos” estão completamente à solta e em atividade enquanto o novo, e nesse caso de novo, não vem.

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