Ano letivo se recupera, vidas não

Não é possível voltar às aulas enquanto uma série de critérios mínimos não for atendida, isso coloca educadores e alunos em risco, além de outras milhões de pessoas

Imagem: reprodução
por Beatriz Luna Buoso

Depois de quatro meses com as escolas fechadas por conta da pandemia mundial, entrou em debate agora o retorno às aulas presenciais no Brasil. Sim, em pleno pico da doença, com o país registrando mais de 1.000 mortes por dia. Governadores, prefeitos e empresários debatem contra profissionais da área da educação, médicos, pesquisadores e pais de alunos.

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Os primeiros citados são aqueles que sempre se declararam contra o isolamento e distanciamento social, os que defendem a imunidade de rebanho e agora usam o escroto argumento de que a maioria da população irá contrair o vírus e, sendo assim, seriam irrelevantes todas as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde).
Já o segundo grupo citado teme pela vida das crianças e de idosos e doentes crônicos que convivem com os estudantes.

O cenário é preocupante e vários setores da saúde, educação e sindicatos já estão se mobilizando contra o retorno das aulas enquanto a crise sanitária não estiver controlada no país. “Ano letivo se recupera, vidas não”. Sem a vacina, a situação continua difícil no mundo todo, mesmo nos países que se encontram em estágios mais avançados de flexibilização. Países como França e Coreia do Sul, que reabriram as escolas recentemente, tiveram que fechar dias depois, por conta de novos focos da doença. Muitos pais também estão decididos a não mandarem seus filhos para as escolas enquanto não houver vacina, como no caso do Reino Unido. O país abriu as escolas, mas menos da metade dos alunos apareceram.

O que dizem os pesquisadores sobre o retorno das aulas

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) divulgou uma nota técnica como alerta para as consequências gravíssimas que a reabertura das escolas podem trazer para a população, já que a pandemia está longe de ser controlada no Brasil.

Segundo a nota, fechar as escolas foi uma medida adotada no mundo todo, sob orientação de importantes órgãos internacionais, para combater a Covid-19. A volta às aulas agora significaria jogar fora todo o esforço feito durante esses 4 meses para conter o vírus, aumentando o número de infectados e mortos.

O estudo apontou que não só os alunos estarão expostos, como todos os profissionais da escola e as pessoas que residem junto com a criança. “O debate sobre o fim da quarentena, sem o devido controle da pandemia e pensado no contexto das escolas, em termos de retomada das aulas presenciais, coloca não apenas o risco de aumento da contaminação, mas expõe, também, a falta de condições de milhões de famílias para fazerem o remanejamento do cuidado de seus(uas) filhos(as).”, diz o texto.

De acordo com informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 123 milhões de adultos possuem pelo menos um jovem de idade escolar (até 17 anos) na residência. Dentro desse número, 98 milhões residem com crianças de até 12 anos, faixa etária que segundo nosso Código Penal não pode ser deixada sem a presença de um adulto. Estamos falando de 98 milhões de trabalhadores, pais de crianças, que por uma série de irresponsabilidades do nosso governo frente à pandemia, já vêm encontrando dificuldades de cumprir a quarentena, ficando mais expostos ao vírus. Ou seja, embora muito se tenha falado sobre o baixo contágio entre crianças menores de 12 anos, a discussão vai muito além.

Um estudo feito pela Universidade de Granada, na Espanha, mostrou que se duas crianças vindas de família com dois adultos e 1,5 filho ― considerando que há 10 alunos com um irmão na sala de aula e outros 10 são filhos únicos ―, no primeiro dia de aula cada aluno será exposto a 74 pessoas. Isso ocorrerá exclusivamente se não houver contato com alguém fora da sala de aula e da casa da família. No segundo dia, 808 contatos cruzados e em 3 dias, 1500. “Considerando exclusivamente as relações sem distanciamento nem máscara da própria classe e as das classes de irmãos e irmãs”, explica Alberto Aragón, coordenador do projeto.

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Para termos uma noção melhor de números, falando da população brasileira, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), baseando-se nos números citados acima pela PNAD-C e IBGE – adultos, idosos e doentes crônicos que residem com a criança – calculou que a reabertura das escolas agora pode colocar em risco a vida de 9,3 milhões de brasileiros, ou seja, 4,4% da população total do país. Os estados que têm mais pessoas de grupos de risco residindo com crianças em idade escolar teriam cenários mais preocupantes. São Paulo estaria em primeiro lugar, com 2 milhões de pessoas de grupos de risco residindo com estudantes. Na sequência estaria Minas Gerais, com 1 milhão de pessoas nessa situação, em seguida Rio de Janeiro com 600 mil e Bahia com 570 mil.

Então mesmo que esse grupo mais suscetível à Covid-19 continue mantendo o isolamento, seria um esforço vão, já que as crianças e jovens indo para a escola os colocariam em potenciais situações de contágio dentro do próprio ambiente doméstico. Embora saibamos que a maior parte das escolas teria muita dificuldade em implementar todas as medidas necessárias, o problema também está no trajeto do aluno até a unidade escolar, com exposição nas ruas, no transporte público e até na convivência com outras pessoas pelo caminho.

O epidemiologista Diego Xavier, que participou da pesquisa, alerta: “Nós estimamos, no estudo, que se apenas 10% dessa população de adultos com fatores de risco e idosos que vivem com crianças em idade escolar vierem a precisar de cuidados intensivos, isso representará cerca de 900 mil pessoas na fila das UTIs. Além disso, se aplicarmos a taxa de letalidade brasileira nesse cenário, estaremos falando de algo como 35 mil novos óbitos, somente entre esses grupos de risco”.

Comunidade escolar e sindicalistas na luta em defesa da vida

Enquanto presidente, governadores, prefeitos e empresários insistem em discutir a reabertura das escolas, num momento em que o país tem marcado mais de mil mortes por dia, profissionais da área da saúde, da educação, pais de alunos e sindicatos lutam para preservar as vidas.

O grupo vem fazendo pressão contra o retorno das aulas presenciais, escancarando o óbvio: reveillon e até carnaval de 2021 já foram cancelados devido à pandemia, por que a vida dos alunos, familiares e trabalhadores da educação devem ser colocadas em risco? Se ao se reabrir a economia aumentou-se o número de casos e mortes em todas as cidades, por que reabrir as escolas? Os empresários que estão preocupados com seus lucros irão assumir a responsabilidade pelas 123,5 milhões de pessoas que provavelmente irão se infectar e pelo chegarão até morrer?

Em São Paulo, o governador tucano João Doria anunciou o retorno gradual das aulas a partir de setembro. O anúncio mobilizou trabalhadores da educação, da saúde, movimentos sociais e apoiadores a seguirem numa carreata organizada pela Apeoesp até o Palácio dos Bandeirantes no último dia 29. A polícia impediu que os manifestantes chegassem até a porta.

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Para ceder às pressões dos empresários, Doria vem alterando os critérios para retomar as atividades econômicas do Estado. O critério para a mudança de fase e a volta da “normalidade” era de ter 60% de taxa de ocupação das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Sendo muito negligente, Doria aumentou para 75%. No Rio de Janeiro, os trabalhadores da educação entraram com uma liminar e foram vitoriosos, impedindo que as escolas privadas reabrissem no dia 3 de agosto, conforme o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) havia decretado. Os educadores também já aprovaram uma greve na semana passada, e irão votar para uma paralisação, caso Crivella insista no retorno das aulas presenciais sem o controle da pandemia.

“O Seep e o Sinpro-Rio estão atuando em três frentes, mobilizando a categoria, negociando com o patronato e acionando judicialmente para impedir que vidas sejam ceifadas. Mas os governos também não desistem da ideia da volta às escolas, nem que for gradualmente e começando pelos trabalhadores e trabalhadoras da educação e não iremos permitir que mais vidas sejam ceifadas”, afirma a professora, coordenadora do Seep, Delegada Sindical no Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro e Região (Sinpro-Rio) e vice-presidenta da CUT Rio de Janeiro, Maria Eduarda Quiroga Pereira Fernandes.

No Paraná, o governador Ratinho Júnior (PSD) anunciou pela TV Globo local que reabriria as escolas em setembro. No mesmo dia, o estado bateu recorde de mortes por Covid-19 e numa reunião do Comitê de Volta às Aulas, que reúne diversas representações, inclusive a Secretaria de Estado da Educação (Seed), ficou decidido que não tem mais previsão de retorno das aulas da rede estadual.

“A direção do Sindicato acompanha o debate nacional que traz indicativo de greve geral da educação caso estados e municípios decretem a volta das aulas sem as condições necessárias”, diz trecho da nota da APP Sindicato.
Em Minas Gerais, Zema (Partido Novo) conseguiu ser ainda pior. O governador está desde março discutindo a reabertura das escolas do estado, e assim como Doria, Zema vem alterando os critérios para a retomada das atividades econômicas e escolares, pensando, claro, nos grupos empresariais. O Sindicato Único dos Trabalhadores da Educação de Minas Gerais (SindUte) conseguiu uma liminar que impediu a retomada das aulas presenciais e segue em alerta para qualquer movimentação do governo a respeito.

Cancelamento do ano letivo

Diante dos estudos e notas técnicas apresentados nesta matéria vimos que de forma alguma as escolas devem reabrir agora. Mas qual seria a hora certa? Num estudo feito entre cientistas e comunidade acadêmica, a Fiocruz elencou 11 critérios fundamentais que garantem a reabertura das escolas com segurança:

  • A transmissão da doença deve estar controlada. O município deve ter pelo menos 30% de leitos disponíveis. Diminuição constante do número de hospitalizações e internações em UTI de casos confirmados e prováveis pelo menos nas últimas duas semanas. Diminuição do número de mortes entre casos confirmados e prováveis pelo menos nas últimas três semanas. O sistema de saúde deve estar pronto para detectar, testar, isolar e tratar pacientes e rastrear contatos.
  • Medidas preventivas devem ser adotadas nas escolas – apresentar um plano detalhado de medidas sanitárias, higienização e garantia de distanciamento entre as pessoas, de 2 metros, no ambiente escolar e salas de aula. Adotar medidas individuais com uso de máscaras para todos os alunos, trabalhadores e profissionais da educação, não sendo indicado para crianças abaixo de 2 anos e observando o aprendizado para o uso nas crianças entre 2 e 10 anos.
  • Controle dos transportes públicos e escolares para garantir o distanciamento social.
  • Controle do risco de importação de doença, vinda de outros lugares.
  • Comunidades escolares devem ser capacitadas, engajadas e empoderadas para se adaptar às novas regras. Os pais, sempre que possível, por meio de suas organizações, trabalhadores da educação e professores devem estar participando no planejamento do retorno.
  • Atenção para estudantes especiais.
  • Atenção para o bem-estar psicológico e socioemocional para toda a comunidade. Ao reabrir as escolas, os professores precisam lidar com os riscos à saúde e com o aumento da carga de trabalho para ensinar de maneiras novas e desafiadoras. As autoridades precisam garantir que os professores e toda a equipe recebam apoio psicossocial contínuo para alcançar seu bem-estar socioemocional. Isso será especialmente crítico para os professores encarregados de fornecer o mesmo apoio aos alunos e famílias.
  • Inclusão de professores e suas organizações representativas nas discussões sobre o retorno à escola. As organizações devem estar envolvidas para identificar os principais objetivos da educação, reorganizar os currículos e alinhar a avaliação com base no calendário escolar revisado. Devem ainda ser consultados sobre questões relacionadas à reorganização da sala de aula.
  • Trabalhadores da educação e professores acima de 60 anos ou com comorbidades devem permanecer no isolamento social.
  • Garantir melhores condições de trabalho para toda a comunidade escolar. O retorno às atividades escolares pode revelar lacunas nos recursos humanos e criar horários e rotinas de trabalho difíceis. Os professores e suas organizações representativas devem ser incluídos no diálogo sobre o desenvolvimento de estratégias de recrutamento rápido, respeitando as qualificações profissionais mínimas e protegendo os direitos e as condições de trabalho dos professores.
  • Ampliar e manter recursos financeiros. Para garantir a continuidade da aprendizagem, as autoridades educacionais precisarão investir em professores e trabalhadores de apoio à educação, não apenas para manter os salários, mas também para fornecer capacitação essencial e apoio psicossocial. É importante que os governos resistam a práticas que possam prejudicar a atividade didática e a qualidade da educação, como aumentar as horas de ensino ou recrutar professores não capacitados.
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Não são critérios simples e como podemos ver, o Brasil está bem longe de cumpri-los. A realidade da maioria das escolas brasileiras passa bem longe desses pontos citados. Uma alternativa, também fracassada, para esse período, foi o ensino remoto, o famoso homeschooling. Como temos visto, não tem dado certo colocar os pais como professores, os professores como youtubers, e, principalmente, faltam recursos para a maioria dos estudantes acompanharem as aulas.

O ensino remoto tem custos, já que exige acesso a internet. O Brasil tem hoje quase 30 milhões de desempregados, mais de 50 milhões de pessoas vivendo na linha da pobreza. O ensino domiciliar escancara essa desigualdade e exclui totalmente os estudantes periféricos. É feito sem planejamento do poder público, sem considerar as condições financeiras das famílias, o ambiente em que o aluno vive, as dificuldades de adaptação e de acompanhamento por parte dos pais.

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Se o governo quer realmente focar na aprendizagem dos estudantes, deve garantir que os professores e alunos tenham condições que garantam o acesso ao ensino remoto. Sem essa garantia, deve ser atendido o pedido da maioria da comunidade escolar: cancela o ano letivo! Ano letivo se recupera, vidas não!

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