Qualquer tentativa de “análise” da relação entre liberalismo e democracia deve sempre levar em consideração a luta de classes, para não disfarçar os verdadeiros compromissos dos liberais

por Pedro Fassoni Arruda
O texto abaixo é a sexta parte da série Sobre o liberalismo.
1. Podemos identificar vários tipos de liberalismo, além da tradicional divisão entre liberalismo político e liberalismo econômico. Os primeiros liberais eram defensores da escravidão e entendiam que só a classe de proprietários poderia contar com os direitos de cidadania. Esse era praticamente um consenso entre os teóricos do liberalismo até o final do século XVIII, mas ainda tinha uma grande influência nos círculos liberais até pelo menos meados do século XIX. O Estado Imperial brasileiro era um Estado liberal, assim como o estadunidense (numa época em que a escravidão já tinha sido abolida na maior parte do mundo).
2. Havia um liberalismo conservador, representado por figuras como o francês Alexis de Tocqueville. O inglês John Stuart Mill costuma ser considerado um liberal mais “progressista”, apesar de ser um defensor do colonialismo e contrário à concessão dos direitos de cidadania para a maior parte da população (ele defendia critérios censitários e capacitários para o alistamento eleitoral, por exemplo). No final do século XIX e no começo do século XX, o inglês John A. Hobson escreveu uma obra muito importante (“Estudos sobre o imperialismo”), na qual ele criticava o esbulho colonial e a rapina imperialista. Neste livro, Hobson (um membro da ala esquerda do Partido Liberal britânico) defendeu um “autêntico liberalismo”, apontando as contradições existentes entre a teoria liberal e as práticas antiliberais das grandes potências econômicas. Hobson dizia que o dinheiro gasto com as guerras poderia ser utilizado dentro da própria metrópole, para aliviar o sofrimento da sua classe operária; poucos conhecem a obra de Hobson, mas ele defendeu políticas distributivas muito tempo antes de John Maynard Keynes se tornar a principal referência mundial do pensamento reformista.
3. Keynes é um exemplo de mistura de liberalismo político com crítica dos fundamentos do liberalismo econômico. A “revolução teórica keynesiana” levou alguns economistas a considerá-lo um herege, por questionar os velhos dogmas de seus colegas economistas. Keynes mostrou de forma muito competente aquilo que depois se tornaria praticamente um consenso: o “livre funcionamento da economia de mercado” não é capaz, por si só, de promover a alocação mais eficiente dos recursos econômicos, nem de garantir um equilíbrio entre a oferta e a demanda. Os chamados “remédios anti-cíclicos” apresentados por Keynes baseiam-se na ideia de que o ESTADO pode e deve corrigir as distorções provocadas pelo mercado.
4. Apesar disso, Keynes continuava se reivindicando liberal (importante dizer que nos países anglo-saxões o liberalismo está comumente associado ao liberalismo político, diferente do Brasil e outros lugares). Suas ideias foram bem aceitas pela centro-esquerda reformista nos EUA, onde a sua expressão mais bem acabada foi o New Deal do Presidente Franklin Roosevelt. Mas esse conjunto de soluções também foi abraçado com entusiasmo pelos socialdemocratas da Alemanha, pelos trabalhistas britânicos, pelos socialistas franceses e por muitos outros partidos que não estavam vinculados à tradição liberal do pensamento e queriam construir aquilo que ficou conhecido como “Estado de bem-estar social”.
5. Na sua obra “Ensaios sobre a persuasão”, Keynes publicou um artigo com a sugestiva pergunta: “Eu sou um liberal?”. Depois de responder afirmativamente, o economista explicou por que ele jamais se filiou ao Partido Trabalhista britânico, diante do fato que era esse o partido que mais fervorosamente defendia as suas ideias. A resposta de Keynes foi mais ou menos essa: “Eu não me filio ao Partido Trabalhista porque esse é um partido de classe, da classe trabalhadora. Mas essa não é a minha classe. Eu tenho lado, e diante dos conflitos de classe, eu ficarei sempre do lado da culta e educada burguesia”.
6. Eu considero importante que todos levem em consideração a sinceridade de Keynes. Isso serve para mostrar os limites do liberalismo. Pode ser um ponto de partida para o reconhecimento de uma das mais importantes lições que a História pode nos oferecer: sempre que as pressões “de baixo para cima” crescem e ameaçam os privilégios dos proprietários, os liberais apresentam a tese da “ingovernabilidade democrática” para dizer que não é possível contemplar todos os setores da sociedade (até mesmo Norberto Bobbio reconheceu isso num dos capítulos do seu clássico “Liberalismo e democracia”).
7. Uma coisa que eu acho interessante é a maneira como os liberais se defendem desse tipo de crítica, como a minha, que parte de uma perspectiva marxista. Já li textos de professores universitários dizendo que nós “misturamos tudo”, e confundimos os diferentes tipos de liberalismo. Nada mais falso! Nestes últimos 170 anos, tudo o que a tradição marxista fez foi seguir a máxima de “fazer análises concretas de situações completas”. Há um importante mapeamento dos diferentes tipos de liberalismo, feito justamente para EXPLICAR essas variantes, sem deixar de apontar, é claro, os seus denominadores comuns. Domenico Losurdo fez um esforço monumental para explicar a história do liberalismo, percorreu as obras de TODOS os seus grandes representantes, publicou várias obras sobre o assunto que somam milhares de páginas, e uma pessoa ainda tem a coragem de dizer que tudo isso não passa de um mero compilado de crônicas anedóticas! Esse tipo de “análise” revela a pobreza dos argumentos de seus críticos…
8. Qualquer tentativa de “análise” da relação entre liberalismo e democracia deve sempre levar em consideração a luta de classes. Essas estórias que isolam o pensamento da prática política eram até bonitinhas, no tempo do idealismo filosófico alemão da primeira metade do século XIX. Hoje servem apenas para disfarçar os verdadeiros compromissos desse tipo de personagem.