Por que frações católicas na Irlanda e América Latina tornaram-se verdadeiras vanguardas progressistas, e na Nicarágua chegaram a participar de um processo revolucionário?

por Matheus Dato
Felizmente, há nos dias de hoje uma compreensão relativamente generalizada a respeito das relações entre socialismo e religião e acerca da religião como superestrutura. Obras que possuem o escopo explícito de tratar sobre o assunto, como as reflexões de V. Lenin e James Connolly, são relativamente acessíveis aos estudiosos do marxismo e graças aos esforços constantes de teóricos nacionais, o mar de confusões e interpretações forçosamente errôneas da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel começa a ser serenamente levantado para dar lugar à crítica histórica concreta de Marx ao fazer-pensar religioso.
Entretanto, há uma realidade subjacente nesta conjuntura aparentemente favorável que insiste em surgir como um problema: a incompreensão, não somente filosófica, das problemáticas levadas a cabo pelas religiões.
Nenhum estudioso das ciências humanas e sobretudo aquele filiado à ciência histórica do materialismo histórico-dialético tem o direito de se esquecer de uma questão fundamental – o fato de que, embora sendo um fenômeno superestrutural e determinado em última instância pelas relações materiais de produção, a religião possui uma coerência interna que varia consideravelmente e resguarda, como em toda manifestação da superestrutura, relativa autonomia. A tese central do materialismo histórico jamais foi um mecanicismo frio e determinista, propondo-se a desvendar de maneira quase médica as leis eternas e imutáveis da luta de classes. O marxismo, ao contrário, sempre concedeu um lugar privilegiado à análise concreta como sua maior contribuição, pautada na própria dinamicidade da realidade, dialética e repleta de contradições inerentes.
Por isso, causa estranheza que em pleno ocidente, local histórico em que as mudanças sociais sempre são acompanhadas pelo aumento da religiosidade ou pela perda desta, haja tão poucos marxistas empenhados em estudar a fundo as problemáticas que motivaram as grandes religiões a pautarem seu costume, sua estrutura interna de poder e sua teologia.
Em virtude de uma necessidade circunstancial, a problemática a ser explorada nesse pequeno texto será a do cristianismo, religião fundamento do pensamento e moral ocidentais. Para além disso, entender a necessidade de investigação da problemática de qualquer coisa, é também definir o próprio conceito de “problemática”; em Louis Althusser, por exemplo, verificamos a definição da problemática como sendo a questão fundamental de uma investigação sistemática de determinado fato do real, ao redor da qual se estruturam os demais elementos do pensamento.
Se pretendemos, portanto, investigar a problemática da religião, precisamos tratar de uma religião em concreto, descobrir a sua questão fundamental e submetê-la ao método da crítica. Por conveniência temporal, geográfica e, sobretudo, histórica, a religião por excelência do Ocidente é o cristianismo.
O cristianismo, surgido a partir da existência salvífica, milagre e pregação de Jesus de Nazaré, representa um rompimento profundo com a problemática religiosa do lugar em que se origina, a Palestina dos anos 50 d.C.
Não se trata de um acaso que toda a práxis apostólica do cristianismo primitivo narre as tensões da comunidade cristã com a autoridade judaica de seu tempo, rotineiramente personificada no Sinédrio. A mensagem dos primeiros seguidores e líderes da Igreja Cristã era a negação explícita da problemática do judaísmo consubstanciada na Lei guardada pelos doutores de Israel, qual seja, o indivíduo como fundamento de todas as coisas.
Esta problemática residia na compreensão do povo judeu de que a supremacia da existência se encontrava no indivíduo. Não em qualquer indivíduo, mas especialmente naquele escolhido, que compõe o povo de Israel, a descendência abençoada. A Aliança estabelecida com Noé é precisamente a promessa de que aos seus filhos seriam garantidos os mesmos termos dados por Deus após o dilúvio, pelos séculos sem fim.
A fé cristã, especialmente após a produção de Paulo de Tarso, rasga o véu da exclusividade da aliança de Israel com Deus ao proclamar que não há judeu nem grego, escravo nem livre em Cristo. É precisamente neste momento que o cristianismo inscreve a sua questão fundamental como uma questão social e comunitária. A salvação, conceito próprio da fé cristã, é portanto uma dádiva dada gratuitamente por Deus aos homens, mediante o sacrifício de Jesus Cristo e que não compete de maneira alguma ao indivíduo isolado mas sim a uma comunidade universal (kathólikos, no grego) visivelmente estabelecida na Igreja.
É desta maneira que o cristianismo é capaz de se obrigar, enquanto sistema e enquanto civilização, com o bem comum da humanidade. Este é o sentido de Tomás de Aquino ao apontar em sua Summa Theologica a noção típica de que a verdadeira justiça é dependente do bem comum. Não pode ser outra a conclusão senão perceber que a coerência interna do cristianismo diferencia-se radicalmente de qualquer outra religião anterior a si. As condições materiais que permitiram que tal visão prosperasse são inúmeras e amplíssimas, mas pode-se destacar aqui que a crise da propriedade aristocrática vigente no Império Romano, a crise política nas províncias romanas do Oriente, a degeneração particular da autoridade judaica na Palestina do início de nossa era e a tendência universalizante do modelo imperial emolduraram as determinações necessárias para o surgimento de um fenômeno tal como a fé cristã, especialmente aquela anterior à Reforma Protestante de 1517.
Toda esta investigação aparentemente teológica e demasiadamente abstrata nos serve absolutamente para pensar uma série de questões importantíssimas à militância: em primeiro lugar, por que um fenômeno de dominação religiosa fundamental como o papel da Igreja Católica durante o Medievo foi capaz de manter estável o conflito de classes e de frações de classes pelo longo período da propriedade feudal na Europa? Por que o fenômeno do fascismo utiliza-se da retórica religiosa e da hierarquia eclesiástica em seu projeto, antes mesmo de chegar ao poder? E, talvez ainda mais importante, por que frações da Igreja Católica na Irlanda e América Latina constituíram-se como verdadeiras vanguardas progressistas, chegando mesmo a participar de um projeto revolucionário ativo, como na Nicarágua?
A resposta desta pergunta reside precisamente na ideia aqui explorada, de que a fé cristã não é simplesmente uma superestrutura qualquer, manuseada ao sabor dos tempos. É uma hierarquia multimilenar, uma racionalidade particular e complexa que vislumbra a sociedade humana como o seu sujeito e ao mesmo tempo seu objeto, ainda que orientado em sua totalidade ao Mistério Divino. Uma superestrutura como essa não se desfaz simplesmente tomando o poder e destituindo as suas propriedades, e nem sequer pode ser manipulada ao sabor das forças hegemônicas: exige uma disputa que esteja de acordo com a sua própria coerência interna, ainda que munida da crítica científica do marxismo.
É por esta razão, inclusive, que a Teologia da Libertação foi capaz de levar uma crítica às estruturas eclesiásticas muito mais eficiente do que aquela feita pelo mero ateísmo de goela, que tanto irritou Marx nas publicações da Gazeta Renana, nos idos de 1842. É também por este motivo que a crítica do velho Karl Marx teve êxito em explicar o fenômeno religioso e traçar as condições abstratas de seu desaparecimento – esta crítica foi à raiz do problema.
Precisamos, enquanto esquerda latinoamericana e revolucionária, deixar de lado as manias de Feuerbach, que, apesar de seus grandes méritos, ao procurar desvendar “a essência do cristianismo” não foi capaz de ir além de uma aplicação rudimentar do método de Hegel à religião, mistificando e empobrecendo o problema.
Disputar as bases religiosas em um processo de fascistização como o brasileiro significa, em grande medida, explorar problemas teóricos dos quais nem mesmo os fiéis e devotos espalhados pelo país possuem consciência. É um trabalho árduo, pesado, que exige do militante aquilo que se exige de todos os que lutam pelo socialismo: a paciência, o estudo e a prática consciente.
Critiquemos, portanto, a religião e lutemos para fazer avançar a consciência do povo rumo a uma compreensão científica do mundo, mas o façamos de maneira coerente e cautelosa.
Excelente texto camarada Matheus Dato. Concordo plenamente com você; temos, enquanto esquerda, subestimado o papel da religião na conjuntura. Escreva mais sobre o tema.