Se pararmos para pensar no argumento de um médico que acredita que tem um conhecimento causal profundo de um medicamento, é o mesmo argumento de um curandeiro

por Alexandre Lessa da Silva
O básico do básico de epistemologia, entendida como filosofia da ciência, ensina que há uma diferença entre ciência, ou conhecimento científico, e técnica. Essa divisão tem sua raiz na Metafísica e nos Tópicos de Aristóteles, apesar de ainda não haver separação, em função da própria cultura helênica da época, entre técnica e arte. Durante muito tempo, não houve tal separação e, por isso, o status especial que as artes têm só foi surgir muito tempo depois. Apesar disso, Aristóteles separa nitidamente o conhecimento teórico, prático e poético ou produtivo. Assim, as ciências teóricas são aquelas que buscam os princípios e as causas ou, ainda, aquelas que são formadas pela contemplação. As ciências práticas são aquelas voltadas para a ação humana, como a ética e a política. Finalmente, as ciências produtivas visam a produção de um objeto, seja esse objeto um quadro, um barco ou a saúde.
Deixando as artes de lado, pode-se facilmente ver que a técnica tem uma função prática, não no sentido aristotélico, mas no sentido de aplicação. Dessa forma, cabe ao técnico saber aplicar corretamente um determinado conhecimento para gerar um certo efeito. Desse modo, um carpinteiro ou engenheiro poderão aplicar o conhecimento que têm sobre matemática ou física para atingir um determinado resultado. Portanto, um técnico pode utilizar o conhecimento científico para atingir seu objetivo, mas ele mesmo não é produtor de conhecimento científico, um cientista.
Voltando a Aristóteles, ele afirma que o conhecimento teórico, e o científico por consequência, é um conhecimento dos princípios, das causas primeiras. Assim, um cientista deve pesquisar e conhecer os princípios e as causas de seu objeto de estudo, coisa que um técnico simplesmente não precisa, ele tem que saber usar. Dessa maneira, um cientista é aquele que realmente conhece o funcionamento detalhado de algo, até para poder repassar esse conhecimento, ou ao menos parte dele, ao técnico. Por isso, há uma prioridade do cientista sobre o técnico, uma vez que seu conhecimento é anterior ao dele e mais profundo, pois conhece os princípios de algo.
O médico, como muitos já devem ter percebido, é um técnico. Sua atividade busca a produção de um efeito, a saúde, e seu dia a dia é marcado pelo uso do conhecimento científico e das pesquisas de uma série de cientistas, no caso de bons médicos. Portanto, deve o médico saber usar o conhecimento que é repassado a ele, não cabendo a esse profissional querer saber mais que um cientista da área sobre o funcionamento e a ação de um determinado medicamento, uma vez que não tem conhecimento para tal.
É até interessante, se pararmos para pensar no argumento de um médico que acredita que tem um conhecimento causal profundo de um medicamento, observar que seria o mesmo argumento de um curandeiro, por exemplo. Um curandeiro poderia responder a um médico, detentor de um conhecimento muito mais apurado, que determinadas ervas funcionam porque já viu o efeito delas em muitas pessoas, o que não seria aceito pelo médico como um argumento válido. Infelizmente, muitos médicos, acreditando na suposta divindade de seus conhecimentos, acabam por fazer a mesma coisa, receitando cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina a seus pacientes, contrariando, assim, toda a comunidade científica.
Contra a posição defendida aqui, muitos dirão que há médicos que pesquisam, ao que responderei que são bem poucos. Também há de se perceber que nem toda pesquisa pode ser chamada, rigorosamente, de científica. Além do mais, aqueles que realmente pesquisam de forma científica ultrapassam os limites da técnica médica, transformando-se em cientistas, e não simplesmente médicos.
É importante frisar, todavia, que não há demérito nenhum em pertencer a uma área técnica, uma vez que sem ela não teríamos casas, computadores e mesmo saúde, dentre tantas outras coisas. Assim, o trabalho de um arquiteto, engenheiro ou médico são essenciais para nossa vida, mas não é por isso que profissionais dessas áreas têm um conhecimento divino.
Esclarecido esse ponto filosófico básico, é hora de entrar no campo político. O Conselho Federal de Medicina deu um parecer, em abril de 2020, dando autonomia aos médicos para prescreverem os remédios do chamado “kit COVID”, como os já citados anteriormente. Para o Conselho, portanto, o médico tem autonomia para aplicar remédios que são ineficazes, e o pior, que possivelmente prejudicam a saúde dos pacientes, segundo determinados relatos. Ora, dizer que um médico tem autonomia é dizer que ele pode criar as leis que segue, segundo Kant. Dessa forma, o Conselho está dizendo que o médico tem poder de escolha que está acima de seu conhecimento, o que inevitavelmente leva ao erro e, em muitos casos, até à morte. Não é correto, especialmente nos campos científico e técnico, que alguém opine sobre o que não sabe, muito menos opinar, escolher e tomar decisões contra aqueles que realmente sabem. Levando em conta a decisão do Conselho, ninguém deveria ser processado por prática ilegal da medicina, pois o próprio Conselho defendeu a prática ilegal da ciência. Não é possível que um médico aja segundo suas próprias crenças não fundamentadas ou orientações ideológicas, uma vez que isso poderia gerar a falta de punição diante de quase todo erro.
Essa questão dos médicos não é uma exceção dentro do Estado. Há uma grande necessidade de se rever o papel de cada um dentro do Estado e reestruturar o contrato social. Durante a pandemia, evidentemente, salta aos olhos a questão sanitária, mas muitas outras devem ser encaradas, uma vez que o tecido social brasileiro, que já não era dos melhores, está em frangalhos, em função desse governo. Precisamos seriamente pensar o Brasil e agir, pois já não temos mais uma nação.