A democracia na União Soviética

Como funcionava esse sistema em que, no auge de seu poder, Stálin não conseguia sequer nomear todos os comissários (equivalentes a ministros) que queria?

por Ivan Conterno

Quando os revolucionários russos assumiram o poder em 1917, o modelo para uma democracia no socialismo era o que tinha sido adotado na Comuna de Paris. Na Comuna de Paris, a primeira experiência de governo operário do mundo, foram instituídos o sufrágio universal, a fusão dos órgãos executivos e legislativos, a revogabilidade dos mandatos pelos eleitores, a eleição para o judiciário e o fim de um exército permanente com o armamento geral do povo.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

Essas medidas tinham como objetivo o definhamento gradual do Estado como instrumento de dominação de uma classe sobre as demais. No início de 1917, antes da tomada do poder, os socialdemocratas bolcheviques, liderados por Lênin, acreditavam que essa destruição do Estado poderia acontecer logo após a vitória da tomada do poder pelos sovietes. Essa proposta passava pela elegibilidade absoluta, a revogabilidade de todos os cargos sem exceção e a equiparação dos vencimentos dos membros do governo ao salário dos operários.

Os sovietes eram comitês de greve que surgiram durante um breve período em 1905 e ressurgiram no início de 1917. Eles eram legalmente reconhecidos pelo governo como conselhos de deputados operários. Em 1917, surgiram, além dos sovietes de operários, os sovietes de camponeses e os sovietes de soldados.

No entanto, o modelo da Comuna de Paris não pôde ser praticado logo após a tomada do poder em outubro de 1917. Os aparelhos de repressão se fortaleceram, já que catorze países imperialistas invadiram a Rússia revolucionária a partir de 1918. Da mesma forma, os vencimentos dos funcionários do governo não se igualaram aos salários dos trabalhadores e a revogabilidade de mandatos não foi adotada.

O sistema de partido único não estava nos planos iniciais dos socialistas. Os bolcheviques, que mais tarde fundariam o Partido Comunista, propuseram uma coalizão com os socialdemocratas mencheviques e os “socialistas-revolucionários” ainda em outubro de 1917. No entanto, com a recusa desses outros dois partidos, os bolcheviques foram obrigados a assumir sozinhos o primeiro governo soviético.

Somente no dia 12 de dezembro de 1917 os “socialistas-revolucionários” de esquerda concordaram em participar do governo, assumindo sete comissariados do povo, o que equivale aos ministérios numa democracia burguesa. Os bolcheviques ficaram com onze cadeiras. Em fevereiro de 1918, as negociações do tratado de paz com a Alemanha, assinadas por Leon Trotsky, afastaram novamente os “socialista-revolucionários” do governo, deixando os comunistas sozinhos.

Em julho de 1918, a primeira constituição dos sovietes determinou que as eleições seriam limitadas aos maiores de 18 anos que ganhavam a sua vida com um trabalho produtivo e útil e fossem filiados aos sindicatos. Não poderiam votar os patrões, os padres e os membros da antiga família real. Sendo assim, a representação dos delegados dos sovietes era proporcional ao número de votos de cada partido do campo democrático-popular. Os distritos eleitorais urbanos, no entanto, tinham peso quatro vezes maior que os rurais, elegendo mais deputados para o Congresso dos Sovietes.

Leia também:  Criatividade sem limites: os nomes excêntricos das eleições

Partido único

O Congresso dos Sovietes era pluripartidário, com maioria de bolcheviques e “socialistas revolucionários” de esquerda, mas também era composto por mencheviques, anarquistas e independentes. Entretanto, no V Congresso, ocorrido em julho de 1918, vários dirigentes dos “socialistas-revolucionários” defenderam a derrubada do governo dos sovietes. Em seguida, os militantes desse grupo assassinaram o embaixador da Alemanha para forçar o rompimento do tratado de paz com a Rússia. Em agosto, Lênin sofreu um atentado a tiros, ficando gravemente ferido.

Em setembro, um grupo explodiu a sede do Partido Comunista em Moscou, matando doze pessoas e ferindo outras cinquenta. O governo se viu obrigado a realizar prisões e execuções de opositores, colocando na ilegalidade os “socialistas-revolucionários” e os mencheviques.

No entanto, o sistema de partido único não estava entre os objetivos do Partido Comunista. No final do ano, os mencheviques aprovaram um apoio crítico ao governo do Partido Comunista, reconhecendo os esforços do governo revolucionário na guerra contra os exércitos invasores. Assim, eles foram readmitidos nos sovietes. Em fevereiro do ano de 1919, os “socialistas-revolucionários” de esquerda também foram readmitidos. Essas duas organizações perderam popularidade, mas obtiveram representantes no Congresso dos Sovietes até 1920. Nesse processo, muitos dos seus membros se juntaram ao Partido Comunista.

Em 1921, após a derrota dos exércitos que invadiram a Rússia, o país foi submetido a um enorme cerco econômico e militar. Além disso, as sucessivas guerras haviam destruído a economia russa. O parque industrial se reduziu a 13% do que era em 1914, quando se iniciou a Primeira Guerra Mundial. Dezenas de milhares de militantes socialistas morreram ou foram mutilados na guerra civil e nas intervenções dos exércitos estrangeiros.

Por conta da situação catastrófica, os antigos líderes operários eram forçados a assumir cargos estatais ou partidários, abandonando as fábricas. A nova classe operária foi rapidamente sendo formada pelos antigos camponeses e pelos antigos burgueses, muitos deles insatisfeitos com os anos de penúria dos anos de guerra.

Em março de 1921, enquanto ocorria o X Congresso do Partido Comunista, um levante de marinheiros na fortaleza de Kronstadt foi duramente reprimido pelas forças do governo revolucionário, lideradas por Leon Trotsky. No mesmo período, diversas fábricas entraram em greve ao mesmo tempo que o descontentamento dos camponeses chegava ao seu auge. Diante da crise, o Partido Comunista impôs o fim do “comunismo de guerra” e o início da Nova Política Econômica, concedendo aos camponeses o direito de comercializar livremente seus excedentes no mercado. Ao mesmo tempo, as tendências no interior do Partido Comunista foram proibidas para evitar o fortalecimento das novas camadas burguesas.

Leia também:  Guedes, o teto e o mercado

Stálin

Ao fim da guerra civil, o governo revolucionário colaborou com os outros partidos comunistas do antigo Império Russo, que também assumiram o poder em seus países. Em 1922, A Rússia e as demais repúblicas soviéticas — Ucrânia, Bielorrússia e Transcaucásia — formaram a União Soviética. Com a morte de Lênin, em 1924, uma troika formada por Kamenev, Zinoviev e Stálin passou a governar a União Soviética. No ano seguinte, Stálin assumiu sozinho o comando da União Soviética, implementando um regime de economia planificada, resultando em uma rápida industrialização e na coletivização das propriedades agrícolas.

O Congresso dos Sovietes deveria se reunir trimestralmente. Nos intervalos, o poder era exercido pelo Comitê Executivo Central dos Sovietes. Esse comitê elegia o Comissariado do Povo, que exercia o poder executivo. No entanto, com as dificuldades que se acentuavam, o Congresso dos Sovietes se reuniu apenas uma vez a cada ano a partir de 1919, até que não se reunisse mais entre 1931 e 1935. Dessa forma, quem efetivamente exercia o poder no país era o Conselho dos Comissários do Povo, que reunia as tarefas legislativas e executivas.

No XVII Congresso do Partido Comunista, realizado em 1934, Stálin visualizou uma unidade ideológica no partido, o que significaria que não havia mais rivalidade entre as classes sociais na União Soviética. O papel do Estado nessa etapa, segundo Stálin, seria o de castigar os agentes estrangeiros. A proporção de trabalhadores no partido foi se tornando cada vez menor, enquanto o número de intelectuais se tornou cada vez maior.

A Constituição soviética aprovada em 1936 concedeu direitos eleitorais aos antigos patrões, aos padres, clérigos e aos ex-agentes dos exércitos invasores. Além disso, a Constituição estabelecia ainda o direito de não ser preso sem um mandado e nem condenado sem o devido processo legal com ampla oportunidade de defesa. Foi estabelecido o Soviete Supremo da União Soviética. A população, então, passou a eleger seus representantes a cada quatro anos.

No entanto, entre 1936 e 1938, durante os Processos de Moscou, 1.108 dos presentes no XVII Congresso do partido (56% do total) e 98 membros eleitos para o Comitê Central do partido (70% deles) foram presos ou executados.

As eleições

O comparecimento nas eleições soviéticas foi sempre próximo a 100%. Antes das eleições, os jornais faziam propaganda informando o calendário e inundavam os leitores com reportagens sobre os preparativos para as eleições. A maioria dos candidatos concorria pelo Partido Comunista, mas também havia candidatos independentes.

Leia também:  A escolha: Bolsonaro de um lado, vida e economia de outro

Os soviéticos votavam diretamente para eleger os representantes do povo entre candidatos que haviam previamente sido escolhidos em assembleias de trabalhadores. Os eleitos nomeavam, entre si, representantes para ocupar cargos maiores. Se o representante eleito pelo povo não atendesse as reivindicações locais, poderiam ser destituídos a qualquer momento. Esse sistema parece ser mais democrático que as democracias ocidentais.

Além disso, os estrangeiros que trabalhavam no país também tinham direito de votar, pois eram convocados pela comissão sindical em seus locais de trabalho. Todos os presentes tinham o direito de propor um candidato, que seria entrevistado sobre suas qualificações.

Mesmo no período de maior repressão, muitas das propostas de Stálin não foram aprovadas por falta de apoio do Soviete Supremo. Stálin não conseguiu nomear nem mesmo pessoas próximas à sua política para cargos de confiança, como na Administração da Aviação Civil Soviética e no Ministério do Interior, o que numa democracia burguesa nem mesmo necessitaria de uma indicação do congresso. As propostas de Stálin para a reforma do sistema político foram, em sua maioria, rejeitadas.

Uma experiência inédita

A União Soviética era, portanto, uma democracia ou uma ditadura? Numa democracia, o povo seria governado por si próprio, através de representantes, e desfrutaria das vantagens que o Estado poderia oferecer. Uma ditadura seria o governo de uma minoria, no qual o Estado não atenderia aos anseios da maioria da população. No entanto, a democracia que conhecemos, criada pela burguesia, é também uma ditadura da minoria endinheirada sobre as classes sociais despossuídas. Podemos dizer que não existia, para os soviéticos, uma dualidade entre democracia e ditadura.

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

Como primeira tentativa de longo prazo de um governo operário, a União Soviética ofereceu uma experiência inédita à humanidade. Os desafios de se criar um sistema eleitoral para as massas de trabalhadores surgiam ao mesmo tempo que os revolucionários enfrentavam ameaças militares e pressão econômica do mundo capitalista.

Deixe uma resposta