A cédula de R$200 e “as mentiras que os homens contam”

As reflexões de Karl Marx sobre o que é o dinheiro ajudam a entender a decisão do governo de começar a imprimir uma nova nota durante a crise atual

Imagem: Shutterstock
por Matheus Dato

O dia 29 de julho de 2020 apresentou uma novidade à desajustada economia brasileira: após dezoito anos, o teto do valor das unidades de cédulas será elevado para R$ 200,00, substituindo o limite de R$ 100,00 fixado durante a quase totalidade da vigência do Real.

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A especulação a respeito de uma medida como essa jamais é acalorada quando nos referimos a um país acostumado aos mais brutais ciclos inflacionários que precedem ou antecedem as crises orgânicas do capitalismo monopolista. Não por acaso, a diretora de Administração do Banco Central, Carolina Assis Barros, apressou-se em responder à mídia e à população que a decisão tomada pelo Conselho Monetário Nacional (CNM) se deve a um suposto aumento da demanda por papel-moeda, e não a um processo de inflação se desenhando no horizonte. O Banco Central chegou a apontar que esta demanda estaria relacionada aos saques em quantia dos valores depositados em Auxílio-Emergencial em entrevista coletiva.

Além disso, também se afirmou que as metas inflacionárias para o ano de 2020 estariam sendo cumpridas adequadamente e que não haveria razões para preocupação. Algumas perguntas surgem neste processo, e consideramos importante responder a estas perguntas, mais do que simplesmente noticiar uma medida administrativa tomada por burocratas do sistema financeiro nacional: o que é o dinheiro? Por que um pedaço de papel pintado representa valores e quem decide a maneira como estes valores são reais para a maioria das pessoas? O que muda no Brasil a partir de uma nova política monetária e por que os trabalhadores deveriam se preocupar com estes acontecimentos?

Para responder algumas destas questões, precisamos recorrer ao grande teórico do capitalismo, Karl Marx (1818-1883).

O que é o dinheiro?

Não se sabe ao certo como surgiu o elemento dinheiro na forma de papel-moeda. O trânsito de valores por meio de metais cunhados pode ser datado desde o século VII a.C. entre os gregos, segundo Florenzano. A origem de um bilhete para atestar estes mesmos valores outrora representado por metais preciosos ou outros minerais não é tão simples de ser rastreada na história.

A tese provável é de que as cédulas de papel surgiram na China ainda no ano de 960 mas se tornaram a principal unidade de trocas apenas no séc. XV europeu. Opiniões divergentes, como a de Bogdanov em sua obra Economia Política-Curso Popular, teorizam que talvez o uso moderno de cédulas de dinheiro seja derivado das letras de câmbio do antigo mercantilismo europeu.

O que importa para a nossa análise é apreender o modo como o dinheiro se transforma em mercadoria sob o modo de produção capitalista.

Com a incompreensão geral a respeito do socialismo a todo vapor no Brasil, em parte por um esforço de propaganda burguesa e em parte por um projeto de deseducação do povo, é preciso desmistificar algumas vulgarizações. A primeira delas é de que o socialismo se refere apenas a um novo modo de se produzir nas fábricas e no campo, quando na realidade os impactos econômicos no comércio e nas relações de troca são profundos quando se elimina a base material capitalista; a segunda interpretação vulgar é a de que a forma monetária de representar valores, como o dinheiro em cédulas, seria incompatível com uma sociedade socialista.

A crítica de Marx se centra nas características particulares do dinheiro sob o capitalismo, e não é de maneira alguma um ataque generalizado ao papel-moeda como unidade de valor. Tratando destas características vemos em primeiro lugar que a moeda dos países capitalistas se torna cada vez mais abstrata ao longo do desenvolvimento histórico. Em 1844, o teórico prussiano já afirmava a tendência cada vez mais clara do dinheiro de se desvincular relativamente dos seus lastros (i.e. o ouro) e se tornar uma mercadoria por si só.

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Chamamos de mercadoria “um objeto exterior, uma coisa, que, por meio das suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie”, conforme O Capital. Karl Marx ainda fará duas distinções importantes: toda mercadoria é dotada de valor de uso e valor de troca, e assim também se realiza com a moeda.

Valor de uso se refere ao modo como determinado produto do trabalho humano social soluciona qualitativamente alguma demanda. Valor de troca é o modo como uma mercadoria pode ser equiparada a outra para fins de substituição; assim sendo, seria impossível trocar o dinheiro por qualquer coisa se este não revelasse um valor de troca seu. Falaremos mais adiante de como se define essa propriedade no caso do dinheiro.

Entender finalmente a real natureza do dinheiro, como nos parágrafos anteriores, nos abre duas janelas necessárias: a primeira delas é que a crítica socialista se faz no sentido de destituir a mercadoria como forma da riqueza produzida, para que esta riqueza se transforme em um produto socialmente possuído e acessível à classe dos que produzem. A segunda janela aberta é a de que um processo de alienação se aplica ao dinheiro tal qual descrevemos acima – passando da função de simplesmente representar o valor de troca de cada mercadoria, a moeda corrente aparenta se tornar um fim em si mesmo.

Em 1944, ao encerrar um ciclo de crise econômica e guerra contra o fascismo, os países hegemonizados pelo capitalismo se reuniram na cidade norte-americana de Bretton Woods para definir como seria reconstruído o poder do capital após o fim desta turbulência histórica. Mais de 730 delegados de todo o globo decidiram que a moeda seria definida da seguinte maneira em todo o mundo burguês: o valor de troca do dinheiro de cada nação estaria atrelado ao valor do dólar, e o valor do dólar estaria então atrelado à quantidade de ouro existente no tesouro dos Estados Unidos da América. Esta medida reorganizou as incertezas do ocidente e possibilitou que a enorme produção das décadas de 40, 50 e 60 do século XX pudesse circular e enriquecer a classe dominante com facilidade. Uma nova política monetária havia equilibrado momentaneamente o já decadente capitalismo.

Nenhuma prosperidade, porém, se prolonga no império do capital. Um novo período de crise levou os Estados Unidos da América a determinar novos rumos para consolidar seu poder como potência imperialista, e em 1971 o presidente estadunidense Richard Nixon (1913-1994) declarou o fim do ouro como medida do valor monetário e passou a decretar que a medida de todo o câmbio mundial seria atrelada ao dólar, pura e simplesmente. Cada país seria obrigado a manter reservas cada vez maiores de dólares em seus bancos centrais para garantir a sobrevivência de suas próprias moedas, e assim tem funcionado a economia de todo o mundo desde então, com algumas variações.

A mercadoria chamada de dinheiro então não representaria mais, fielmente, o valor de troca das demais mercadorias que adquirimos com ele, como alimentos e vestuário. Nem sequer a nossa moeda representa fielmente a medida do dólar: os países atrasados submetidos à dependência e ao neocolonialismo observam as suas moedas se transformarem em névoa e poeira. Temos então o ponto central da análise, que é o modo como estas categorias interpretativas deixadas por Karl Heinrich Marx nos ajudam a entender o problema financeiro brasileiro e, mais especificamente, desvendar as razões e as consequências da recente decisão do Banco Central do Brasil.

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A implicação mais óbvia disto é darmo-nos conta de que os poderosos mentiram durante toda a nossa vida, ou ao menos não fizeram qualquer esforço para que descobríssemos a verdade. A grande maioria dos trabalhadores nunca precisará comprar dólares ou euros e nunca saberá que tudo no capitalismo, coisas visíveis e invisíveis, se transforma em mercadoria para consumo; seremos enganados com a ideia de que os problemas brutais que a América Latina sofrerá nos próximos dez anos não possuem responsáveis claros. Se dizer a verdade às massas é um ato revolucionário, aqui dizemos: os ricos estão mentindo para nós, e a destruição de tudo o que possuímos não é um acidente, é um projeto sofisticado. Enfrentemos portanto as consequências do controle burguês sobre o dinheiro. 

O que há de errado em tudo isso?

Um relatório da Oxfam publicado em seu site oficial no últimos dia 27 aponta estatisticamente que os 42 bilionários brasileiros aumentaram em US$ 34 bilhões a sua fortuna durante a pandemia de COVID-19. Ao mesmo tempo, o Fundo Monetário Internacional previu uma queda de 9,1% no Produto Interno Bruto do Brasil para o ano de 2020, além de um patamar recorde para a dívida pública total.

Como é possível que estes dois dados convivam? A lógica de nossa sociedade opera na socialização do trabalho e na concentração da riqueza; em outras palavras, é em nossa miséria que os parasitas mais ricos apoiam os pés para subir na vida. De tal maneira, em um país que está às portas de um empobrecimento geral, a medida de criar uma nova unidade monetária em cédula no valor de R$ 200,00 atende a um interesse muito distinto da simples demanda de papel-moeda pelo povo em abstrato.

Vamos investigar em primeiro lugar como se opera a crise brasileira atualmente. Por uma consequência da existência de monopólios no domínio da economia, faz-se necessário que a renda e a propriedade se concentrem na mão de cada vez menos pessoas e o tecido produtivo e comercial de uma certa parcela com pouco capital se desfaça; justamente aí reside a autoridade do Ministro da Economia, Paulo Guedes, em sentenciar os pequenos empresários à falência para salvar os grandes detentores de riquezas. As tentativas sucessivas de abertura do comércio mesmo diante da emergência global de saúde pública não visam criar chances de crescimento para as pequenas economias locais, mas impedir que as mercadorias possuídas e negociadas pela grande burguesia permaneçam paradas e se acumulem. O acúmulo é o motor da crise no sistema capitalista, de maneira genérica.

Ocorre que o desemprego que atinge formalmente 12% da população do país, aliado às condições de empobrecimento de todo o continente americano, criam uma situação desfavorável para o consumo e para as próprias condições materiais de existência da grande maioria da população inserida na classe trabalhadora. O mínimo necessário se torna aqui um privilégio, e este quadro de desgraça social já se desenha no nosso momento atual, impossibilitando que a produção e o comércio de bens e serviços consiga aumentar grandemente a sua margem de lucro ou desenvolver as suas capacidades – é como se um câncer se espalhasse de tal maneira que não houvesse mais o que devorar.

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Dissemos na introdução que isto não é uma infelicidade do acaso, mas um plano de negócios que tem funcionado até agora e que é meticulosamente operado pelo setor mais poderoso das classes dominantes. Pois bem, como é que se tenta prevenir a todo custo essa metástase causada pela ausência de circulação de mercadorias, quebra do consumo e acumulação de bens produzidos e destinados à troca? Buscando ao máximo fomentar a compra e venda dos excedentes de mercadoria. Alguns indicadores apontam que isto está acontecendo no presente momento e que o aumento do valor máximo da cédula do Real, planejado para agosto de 2020, é uma tarefa particular desta tentativa desesperada de gerenciar a crise.

A taxa Selic, utilizada como taxa básica de todos os juros e contrapeso da inflação do Brasil, está muito abaixo da média prevista pelo Conselho de Política Monetária do Banco Central para o ano de 2020. Até agora, já enfrentamos oito baixas consecutivas nos pontos desta taxa variável, e o impacto disto não fica claro para a maioria dos brasileiros ou então é sumariamente mal-interpretada – o que podemos concluir é que há um esforço crescente no sentido de garantir um nível maior de crédito e consumo, mas este crédito e consumo se torna mais oneroso e difícil na medida em que se empobrece a população submetida à precariedade das relações de trabalho contemporâneas.

O reflexo lógico deste complexo quadro que interliga uma série de fenômenos e acontecimentos nacionais e internacionais para a atividade monetária é o crescimento artificial da demanda por moeda e a necessidade de utilizar o dinheiro como saída para uma crise que parece cada vez mais irresolúvel nos limites do capitalismo. Ao contrário do que pensam os obtusos liberais, não estamos simplesmente criando inflação e emitindo mais moeda, dado que a moeda não está circulando em condições normais de uma mercadoria, mas estamos pavimentando a via para uma realidade sombria de pobreza, corte no poder de compra dos trabalhadores, arrocho salarial, fim de cadeias produtivas inteiras e desemprego catalisadas na máquina de moer gente da pandemia de 2020.

As análises do crescimento do capital improdutivo como opção preferencial de lucratividade burguesa ao mesmo tempo em que cresce o exército de reserva do trabalho não deixam dúvidas de quem é que irá realmente sentir na carne os prejuízos volumosos que a crise nos legará.

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Recordemos: não é o valor de R$ 600,00 do Auxílio-Emergencial, nem a inflação, nem a demanda pura e simples por dinheiro que motivam o Banco Central a tomar a atitude que aqui relatamos. Estas são as mentiras que os homens contam. A verdade é o tiquetaquear de um relógio que carrega nos seus ponteiros uma pergunta: mais uma crise ou uma nova revolução? Socialismo ou barbárie?

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