A América Latina existe?

Em meio às diferenças e semelhanças entre os povos latino-americanos, o inimigo comum imperialista e os exemplos de luta dos vizinhos para o Brasil

Imagem: Belikova Oksana
por Vitor Ferreira

O genial Darcy Ribeiro parece ter deixado um dos nortes centrais para se pensar a política atual e a organização em luta das esquerdas brasileiras e latino-americanas. Darcy, em um de seus livros, levanta a questão que nesse exato momento carece de verdadeira profundidade cotidiana e de conotação política no interior das esquerdas hegemônicas em nosso país para se pensar a realidade, que urge para além de uma simples afirmação de identidade latino-americana. Aqui, lanço a pergunta brilhante elaborada por Darcy: “A América Latina existe?” Logo na primeira página Darcy nos dá uma de suas respostas para essa questão:

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“Não há dúvida que sim. Mas é sempre bom aprofundar o significado dessa existência. No plano geográfico, é notória a unidade da América Latina como fruto de sua unidade continental. A esta base física, porém, não corresponde uma estrutura sociopolítica unificada e nem mesmo uma coexistência ativa e interatuante. Toda a vastidão continental se rompe em nacionalidades singulares, algumas delas bem pouco viáveis como o quadro dentro do qual um povo possa realizar suas potencialidades. Efetivamente, a unidade geográfica jamais funcionou aqui como fator de unificação porque as distintas implantações coloniais das quais nasceram as sociedades latino-americanas coexistiram sem conviver, ao longo dos séculos. Cada uma delas se relacionava diretamente com a metrópole colonial. Ainda hoje, nós, latino-americanos, vivemos como se fossemos um arquipélago de ilhas que se comunicam por mar e pelo ar e que, com mais frequência, voltam-se para fora, para os grandes centros econômicos mundiais, do que para dentro.”

Darcy, em seu livro, aponta as diversas diferenças de formação dos povos latinos, diferenças que continuam a existir, desde o plano linguístico até o plano cultural. Isso não se pode negar, existem grandes diferenças! Mas Darcy também nos apresenta as semelhanças, como o fato de sermos todos frutos de massacres coloniais e de sermos “um combustível humano em forma de energia muscular, destinado a ser consumido para gerar lucro”. Ruy Mauro Marini, com a teoria marxista da dependência, também nos dá outro gigante exemplo do que temos em comum, apresentando muito bem nosso papel comum na divisão internacional do trabalho enquanto uma periferia de superexploração de força de trabalho, nosso papel comum de gerar valor e transferir esse valor para os países centrais do capitalismo.

Para finalizar, Vânia Bambirra também nos apresenta o importantíssimo fator em comum que temos na América Latina, o de possuirmos todos uma classe dominante dominada, dominada pelas burguesias imperialistas. Aqui foram levantados alguns pontos cruciais das semelhanças por três pensadores geniais do Brasil e da América Latina, a seguir quero apresentar brevemente alguns fatos de alguns países latino-americanos em destaque na política mundial atual:

Chile: recentemente vimos explosões sociais na terra de Allende, um número gigantesco de manifestações de todos os formatos, onde mesmo no cenário pandêmico se manteve certo nível de mobilização nas ruas, que está enterrando constituição pinochetista (que inspira Paulo Guedes);

Equador: o processo de luta nas ruas, parecido com o chileno, vem acarretando no enfraquecimento do governo golpista da direita local, e as pesquisas apontam o candidato da esquerda como favorito na disputa presidencial;

Argentina: após diversas mobilizações organizadas e ininterruptas contra Macri, a esquerda volta ao poder do Estado, sem contar a grande conquista da fenomenal luta feminista de anos pelo direito ao aborto legal e seguro, e a recente ocupação dos trabalhadores em uma fábrica de alfajores contra o desemprego;

Bolívia: o país passou por um golpe de estado assustador, onde vimos cenas de uma prefeita sendo arrastada pela rua, onde o presidente Evo precisou se retirar do país e, ainda sim, manteve-se um nível de organização e mobilização popular pelos partidos de esquerda com a população que não se abalou e respondeu elegendo Arce do Movimiento Al Socialismo para a presidência;

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Venezuela: uma permanente resistência nas ruas acontece desde que Chávez chegou ao poder em 1999 até os dias de hoje, com Maduro lidando com as diversas tentativas de golpe, as infiltrações terroristas de milicianos financiadas pelos EUA, o próprio caos do golpista Juan Guaidó, também financiado pelos EUA, o bloqueio criminoso imposto que foi aprofundado na pandemia e o roubo por parte dos EUA de materiais sanitários doados para o país. Toda essa série de crimes não derrubou nem Chávez em seu período e nem Maduro que, recentemente, organizou a doação solidaria de oxigênio para o Brasil;

Cuba: a minúscula ilha colada aos norte-americanos, resiste ao maior bloqueio econômico da história da mundo, 60 anos de um bloqueio assassino, uma série de tentativas de golpes, uma difamação e uma criminalização incessante por parte dos EUA; o povo cubano resiste em permanente revolução, exporta médicos ao mundo, além de ser o país da região com a menor taxa de mortalidade por Covid-19, seguido pela já citada Venezuela.

É possível notar algumas coisas em comum por esses seis países citados, o fato de Cuba e Venezuela sofrerem bloqueios econômicos e serem constantemente sabotados pelos Estados Unidos, além de serem os governos de esquerda mais duradouros da América Latina, será coincidência? O Fato de Rafael Correa no Equador e Evo Morales na Bolívia serem dois ex-presidentes perseguidos e caçados será mera coincidência? A relação entre a constituição chilena ser a mesma implementada pelo homem que inaugurou na América Latina o neoliberalismo, o homem que implantou uma ditadura-militar no país apoiado pelos EUA, que também treinou e financiou a implementação de ditaduras militares em diversos outros países das Américas como foi na Argentina, processos que se deram logo após a Revolução Cubana, parece também ser coincidência? A resposta é um claro não! A atuação do império estadunidense logo ali, ao norte de nós, é mais um ponto em comum que os povos latino-americanos possuem. Isso porque não foram citados países como Haiti, também massacrado pelos EUA, assim como a Colômbia atuando como um braço dos EUA. Para além de toda luta anti-imperialista travada por todos esses países, a luta popular é outro ponto em comum, a ocupação das ruas, a resistência dos povos, a organização, o protagonismo da esquerda, a proposição política e constante mobilização em defesa da soberania e da dignidade são componentes centrais em comum. Seja pela via revolucionária ou no campo democrático-popular, os latino-americanos lutaram e lutam, mobilizam e organizam, resistem e se propõem. É assim desde a invasão colonial até os dias de hoje, é luta concreta atrás de luta concreta.

Adentremos mais a fundo na realidade brasileira para refletirmos sobre a questão latino-americana concretamente em forma de ação política, como Darcy faz, mas que curiosamente no Brasil é utilizada apenas como forma de identidade abstrata pela esquerda hegemônica, que não ultrapassa o limite de uma tentativa de reconhecimento individual abstrato descolado de ação real. Vamos relembrar rapidamente que Dilma teve seu governo grampeado pelos EUA, a operação Lava Jato teve influência e envolvimento dos EUA, a tradicional direita-liberal foi quem iniciou o processo de impeachment e consolidou um de seus agentes Michel Temer (MDB) no poder, onde o mesmo cumpriu seu mandato mesmo sendo um criminoso e aprofundando a política de austeridade e de contrarreformas. Lula foi preso ilegalmente, impedido de concorrer à presidência e até de dar entrevista. Foi nesse cenário que se construiu o nome de Bolsonaro e foi com esse cenário que o fascista se elegeu apoiado em notícias falsas, disparos por WhatsApp e rachadinhas, sendo apoiado pela burguesia nacional e pelo nazifascista Donald Trump (então presidente estadunidense).

Acredito que você, leitor e leitora, encontrou algumas semelhanças de nosso país com os outros citados, vale destacar aqui que dos países mencionados apenas Cuba realizou uma revolução socialista, todos os outros conquistaram e ou conquistam suas vitórias por via eleitoral e institucional. O Brasil de Lula e Dilma vinha nesse caminho progressista institucional, mas é muito curioso como nos países que mais se assemelham ao caso brasileiro, Argentina, Equador e Bolívia, em que a esquerda foi governo e perdeu o governo, já deram suas respostas aos golpistas e ao imperialismo, cada um no seu tempo e cada um na sua forma. Então por que o campo democrático-popular brasileiro que, assim como os desses países, sofreu com uma série de golpes articulados pela burguesia nacional em aliança com os EUA por meio do judiciário, mídia e partidos de direita, ainda não conseguiu responder a altura?

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Tragédia do Brasil

Por aqui até esse momento não temos avançado muito na luta e o retorno ao poder parece distante. Esse é o quinto ano desde o golpe e a conjuntura é a seguinte: vivemos uma tragédia sanitária como nunca antes, chegamos ao ponto de lutar por oxigênio, sim, o modo de produção e reprodução da vida no capitalismo nos trouxe ao ponto de literalmente se negar o ar à população brasileira. A extrema miséria bate na porta do povo, são mais de 14 milhões de desempregados, é assustador participar de grupos de empregos no Facebook, pois o que se vê de irmãos e irmãs suplicando para ter a oportunidade de limpar o chão, escrevendo que estão dispostos a aceitar qualquer coisa, já que é o que lhes resta para tentar comer e sobreviver, é de chorar, é de doer o peito. Parece um cenário de guerra. Essa situação vem se refletindo na porcentagem mais baixa da popularidade de Bolsonaro desde que ele foi eleito dois anos atrás, passamos recentemente por um processo eleitoral das esferas municipais, onde o que se viu foi uma vitória acachapante da tradicional direita liberal golpista, e temos agora uma eleição na Câmara dos Deputados em que a esquerda brasileira hegemônica (com certo nível de disputa interna) aparece ao lado de Baleia Rossi (MDB), esse é o cenário posto hoje.

Quero destacar agora o último trecho da resposta citada no primeiro parágrafo dada por Darcy Ribeiro: “Ainda hoje, nós, latino-americanos, vivemos como se fôssemos um arquipélago de ilhas que se comunicam por mar e pelo ar e que, com mais frequência, voltam-se para fora, para os grandes centros econômicos mundiais, do que para dentro.” Esse trecho me parece ser vital para entendermos o por que não avançamos como os países irmãos e uma das diferenças grandes que nossa esquerda possui em relação a eles. Ao se deparar com os golpes, com a sequência de derrotas, o campo democrático-popular brasileiro foi e é até esse momento é incapaz de organizar e mobilizar o povo, não consegue entender como os memes na Internet não derrubam Bolsonaro, como as notas de repúdio não revertem o quadro. Assistem os povos da América Latina em luta real e comemoram suas vitórias, mas se espelham mesmo em um assassino imperialista como é Joe Biden, que foi vice de Obama, aquele que
realizou 26.171 bombardeios em 2016 e grampeou o governo Dilma.

Aliança irreal

Vai buscar inspiração na aliança feita na Segunda Guerra Mundial entre União Soviética, Inglaterra, França e EUA, para derrotar Hitler e Mussolini num cenário de guerra militar real, transportando pra cá uma realidade que não é e nunca foi a nossa, sem contar que anula completamente o fato de Inglaterra, França e EUA negligenciarem o que a URSS denunciava há tempos sobre o regime nazista na esperança desse regime bombardear a URSS, e que esses mesmos países conviveram tranquilamente com os governos de Franco e Salazar. Esse argumento de inspiração em Biden e na aliança dos países da Segunda Guerra é o fracasso da esquerda hegemônica, é um argumento que simplesmente até o presente momento não tem base nenhuma, que parece sinceramente uma forma de se esforçar menos na luta, ignora toda a nossa realidade, todo nosso histórico colonial e seu desenvolvimento até os dias de hoje, ignora o fato de a classe trabalhadora brasileira e latino-americana como um todo só vencer com muita luta, com autonomia e com organização.

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Tenho os últimos destaques para fazer aqui: o primeiro é que, no momento em que Bolsonaro não tinha um partido político para disputar eleição municipal e eleger aliados, fortalecendo seu nome, parecia que a esquerda poderia aproveitar e voltar com mais força, mas só parecia no imaginário baseado na fé, pois não havia sido construído nada de concreto para que isso acontecesse. O que vimos foi a direita-liberal golpista ampliando seus poderes e “se colocando” (milhões de aspas) como oposição ao bolsonarismo.

O segundo ponto é que Bolsonaro está em queda de aprovação. A pandemia se agrava e a ineficácia do governo é escancarada, mas a esquerda está focada num debate onde já tomou a posição de derrotada. A estratégia de apoiar Baleia Rossi na Câmara vem sendo utilizada no mesmo sentido pífio de vale tudo para se derrotar Bolsonaro, mas esse vale tudo não passa do esforço mínimo, não passa de uma inspiração tirada a quilômetros de distância de Nuestra América.

Numa falta de coerência na linha política e um descolamento das lutas latino-americanas, ignora-se completamente o fato de Baleia (MDB) não ter absolutamente qualquer compromisso com os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil, de não assumir qualquer compromisso com o impedimento de Bolsonaro, de não ter nenhuma contradição com a política de austeridade e ser um apologista das privatizações e mais submisso ao imperialismo. Entra-se nessa desventura, alguns com certo nível de ilusão e outros com a intenção de iludir, imaginando-se que a vitória daqueles que iniciaram os processos de golpes institucionais no país promovendo o próprio fascismo, agora serão os agentes aliados do ponto de partida pela derrota de Bolsonaro e o retorno da “democracia” virando essa conjuntura.

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Pátria Grande

Reconhecer-se enquanto latino-americano não é só uma questão afirmativa, é um modo de pensar a história, um modo de sentir o pesar da história sobre nós, é uma necessidade de pensar a política e a ação politica a partir do que significa ser um país latino-americano, é entender o que é o imperialismo, é sentir o que é o imperialismo em todos os seus níveis. Se a América Latina existe, porque não lutar feito latino-americanos que somos? A história de invasão e golpes por aqui todo mundo já conhece e Darcy também afirma: “O que merece ser visto não é só sangue derramado, mas a criatura que ali se gerou e ganhou vida”, nós somos essa criatura, somos a própria necessidade de rebelião e libertação! Marx escreveu em 1853 “a profunda hipocrisia e a barbárie inerente da civilização burguesa mostra-se sem véus aos nossos olhos, passando de seu lar natal, onde ela assume formas respeitáveis, para as colônias onde se apresenta sem véus”, lembrar disso a cada dia, do que nos faz ser o que somos, do que temos em comum com os povos irmãos, é mais do que necessário, é entender a forma real pela qual a nossa verdadeira emancipação vai se dar, em luta! Lembrar de Darcy – de América Latina, de José Martí – de Nuestra América e de Simón Bolívar – a Pátria Grande, tomar como exemplo as lutas que aqui ocorrem, e assim venceremos.

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