A origem do novo Coronavírus: hábitos alimentares e preconceitos

É vital lembrar que as mudanças climáticas e a destruição do meio ambiente também contribuem para o surgimento e a dispersão de doenças

CDC
por Henrique Rufo para A Ciência Explica

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS ou WHO, na sigla em inglês), os coronavírus são uma grande família de vírus responsáveis por causar infecções respiratórias em humanos e outros animais. As mais graves são a Síndrome respiratória aguda grave (SARS, do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome) causada pelo vírus SARS-CoV e a Síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS, do inglês Middle East Respiratory Syndrome) causada pelo MERS-CoV e, agora, a doença recém descoberta: COVID-19 (do inglês Coronavirus Disease 2019), causada pelo vírus SARS-CoV-2 [1]. O primeiro caso de COVID-19 foi identificado na China, na cidade de Wuhan. Entretanto, ainda não há consenso sobre como ocorreu a transmissão que infectou o paciente zero.

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A proteína spike é uma das quatro proteínas estruturais. As proteínas S formam picos proeminentes na superfície do vírus e os espigões em forma de coroa dão nome aos coronavírus [17].
A proteína spike é uma das quatro proteínas estruturais. As proteínas S formam picos proeminentes na superfície do vírus e os espigões em forma de coroa dão nome aos coronavírus [17].

Com o genoma do novo coronavírus sequenciado os cientistas puderam compará-lo a outros seis tipos de coronavírus capazes de infectar seres humanos (SARS, MERS, HKU1, NL63, OC43 e 229E), indicando sua proximidade com os vírus do grupo SARS, os quais são conhecidos por infectar outros animais. Dessa forma, os pesquisadores se concentraram em analisar a proteína spike, que são as moléculas responsáveis por abrir o caminho para dentro das células do hospedeiro. Essas proteínas possuem duas características de interesse: o domínio de ligação ao receptor (RBD, na sigla em inglês), um tipo de gancho que se agarra as células hospedeiras e o local da clivagem, que permite ao vírus abrir e invadir a célula alvo [2].

 

 

O que chamou a atenção dos pesquisadores dentre essas características do SARS-CoV-2 foi que:

1)     Dentro do grupo da SARS ele se mostrou geneticamente mais próximos dos coronavírus presentes em animais, como os morcegos e pangolins, e não dos vírus que infectam seres humanos;

2)      A proteína spike presente nele é altamente especializada em invadir as células humanas. Isso seria evidência suficiente para excluir a teoria de que o vírus foi criado em laboratório pelo simples fato de que se fosse para desenvolver um vírus em laboratório capaz de infectar seres humanos seriam utilizadas estruturas dos vírus que já são capazes de fazer isso e não de outro vírus desconhecido e que não afeta as células humanas. Com isso fica claro que o SARS-CoV-2 é produto da evolução por seleção natural e não da engenharia genética [3;4].

Então, qual teria sido o animal transmissor do vírus para humanos, morcegos ou pangolins? A resposta ainda é incerta. O vírus poderia ter sido transmitido aos humanos diretamente por morcegos ou de forma indireta, sendo o pangolim um intermediário nessa transmissão. A segunda hipótese ganha força pela semelhança entre as cepas de vírus que infectam pangolins e humanos. Materiais biológicos de pangolins malaios que foram apreendidos do tráfico há 3 anos atrás continham amostras de coronavírus semelhantes ao SARS-CoV-2. Outras amostras coletadas de pangolins de locais diferentes do território chinês também apresentaram semelhança [5]. No entanto, essa semelhança genética gira em torno de 85,5% e 92,4% e não contém as características necessárias para se acoplar as células humanas. Isso também gera implicações para as hipóteses de evolução do vírus. Ele pode ter adquirido as características que possibilitam infectar células humanas em um hospedeiro animal e ao ser transmitido aos humanos já ser capaz de causar a doença ou ter adquirido essas adaptações dentro de um hospedeiro humano [2;3;4].

O fato do vírus ter sido transmitido por um animal selvagem que possivelmente serviu de alimento gerou muitos comentários racistas e xenofóbicos ao imputar aos chineses o estigma de comer “tudo que se mexe” ou ter uma cultura e hábitos alimentares incomuns. O grande problema desse tipo de comentário é que ele ignora o fato de que o mesmo comportamento acontece debaixo do nosso nariz. Em regiões brasileiras, principalmente as rurais e mais pobres, assim como na China, a população caça e se alimenta de tatus (parente do pangolim), tamanduás, gambás, espécies de lagartos, macacos, diversas aves, entre outras.

A caça no Brasil é prática antiga. Segundo os dados levantados pelo biólogo Hugo Fernandes [6] em sua tese de doutorado “foram documentadas 344 espécies, embora as estimativas apontem que esse número pode atingir mais que 525, sendo 46% aves, 42% mamíferos, 11% répteis e 1% anfíbios”. Em comparação, um estudo [7] que analisou 39 mercados que vendem animais provindos da caça em 7 cidades chinesas encontrou a venda de 97 espécies, sendo répteis (51%), aves (21%) e mamíferos (10%).

Nesse cenário, não estamos muito diferentes da China. Em todos os continentes há registros de caça, seja ela legal ou ilegal [8;9]. Os mercados chineses não são únicos, existem mercados do mesmo tipo no Brasil [16] e nos EUA [10], podendo igualmente funcionar como um ponto de dispersão inicial para novas doenças [11]. E claro, os tais wet markets não são um requisito necessário para a disseminação de novos surtos. Como exemplo é possível citar a MERS que teve origem na criação de camelos no Oriente Médio, que são criados para transporte, consumo de leite e em alguns casos consumo da carne. A gripe aviária se originou da criação de aves para consumo e o mesmo vale para a gripe suína. Já a gripe espanhola teve sua origem provavelmente no estado do Kansas, Estados Unidos, durante a 1ª guerra mundial.

É vital lembrar que as mudanças climáticas e a destruição do meio ambiente, um campo no qual o Brasil tem se tornado destaque nos últimos anos, também contribuem para o surgimento e a dispersão de doenças [12], assim como o degelo, acelerado pelo aquecimento global, pode trazer à tona vírus adormecidos [13]. O desmatamento no Brasil tem favorecido, em conjunto com as precárias condições de saneamento básico em algumas regiões, a dispersão dos arbovírus como a Dengue, Zika e Chikungunya [14;15].

Logo, a origem de novos vírus pode se dar em qualquer parte do mundo, seja através do consumo de animais selvagens, aumento populacional, condições precárias de saneamento básico ou a destruição acelerada do meio-ambiente. Estigmatizar os países asiáticos é agir de má fé. E se queremos buscar uma solução para esses problemas, principalmente da caça, apreensão e consumo ilegal de animais exóticos, precisamos fazer isso com seriedade e sem preconceitos, buscando uma discussão pautada na racionalidade e em evidências e não em opiniões xenofóbicas e/ou racistas disfarçadas de ciência.

Referências:

1 – Q&A on coronaviruses (COVID-19)

2 – Andersen, K.G., Rambaut, A., Lipkin, W.I. et al. The proximal origin of SARS-CoV-2. Nat Med (2020).

3 – Scripps Research Institute. (2020, March 17). COVID-19 coronavirus epidemic has a natural origin.

4 – The coronavirus did not escape from a lab. Here’s how we know.

5 – Crescem as evidências de que o pangolim foi o animal de origem do coronavírus.

6 – FERREIRA, Hugo Fernandes. A caça no Brasil: panorama histórico e atual, 2014. 466 f. Tese (Doutorado em Ciências Biológicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014.

7 – CHOW, Alex T.; CHEUNG, Szeman; YIP, Peter K. Wildlife markets in South China. Human–Wildlife Interactions, v. 8, n. 1, p. 11, 2014.

8 – RIPPLE, William J. et al. Bushmeat hunting and extinction risk to the world’s mammals. Royal Society open science, v. 3, n. 10, p. 160498, 2016.

9 – Hunting. Encyclopædia Britannica, inc. August 26, 2019.

10 – Inside NYC’s Wet Markets – A “Ticking Time Bomb”

11 – It takes a whole world to create a new virus, not just China.

12 – Majeed, M. T., & Ozturk, I. (2020). Environmental degradation and population health outcomes: a global panel data analysis. Environmental Science and Pollution Research, 1-11.

13 – Maat, D.S.; Prins, M.A.; Brussaard, C.P.D. Sediments from Arctic Tide-Water Glaciers Remove Coastal Marine Viruses and Delay Host Infection. Viruses 2019, 11, 123.

14 – Prado, Tatiana & Miagostovich, Marize. (2014). Virologia ambiental e saneamento no Brasil: uma revisão narrativa. Cadernos de Saúde Pública. 30. 1367-1378. 10.1590/0102-311X00109213.

15 – Pereira, J., Carvalho, J., Marçal, J., Gomes, L., Carvalho, D., & Ferreira, R. (2020). SITUAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA DA DENGUE, CHIKUNGUNYA E ZIKA, NO BRASIL, EM MINAS GERAIS E NO ESPÍRITO SANTO. Retrieved 4 April 2020.

16 – Ferreira, Felipe & Fernandes-Ferreira, Hugo & Neto, Nivaldo & Brito, Samuel & Alves, Rômulo. (2013). The trade of medicinal animals in Brazil: Current status and perspectives. Biodiversity and Conservation. 22. 10.1007/s10531-013-0475-7.

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17 – Bad News Wrapped in Protein: Inside the Coronavirus Genome. Jonathan Corum and Carl Zimmer. April 3, 2020.

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