Uma tese em defesa de Capitu

Machado de Assis usava com correção e ironia conceitos jurídicos, o que enseja uma análise do “processo inquisitorial” sofrido por Capitu sob a perspectiva do direito

Uma tese em defesa de capitu - O Partisano
Imagem: O Partisano
por Mariana de Almeida Azevedo França

Dom Casmurro é um dos livros mais lidos de Machado de Assis. A grandiosidade de sua obra transforma em tarefa difícil analisá-la apenas sob um ponto de vista, seja da psicologia, do direito, da história, da sociologia ou mesmo das letras. Tentar interpretá-la apenas de uma forma é limitar a arte de Machado. Como na arte abstrata, limita-se a beleza de uma pintura ao tentar encontrar apenas um significado, e como uma das características marcantes do autor é suscitar a dúvida do leitor, respondê-la seria descaracterizá-lo. Machado teve esse poder de tornar sua obra atemporal, mesmo que inserida em um contexto histórico, pois traz à tona questões que podem ser debatidas infinitamente, polêmicas que transcendem a história. Aqui, o recorte é feito sob o ponto de vista do Direito.

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Machado de Assis e o Direito

Ao ler as obras de Machado de Assis é possível perceber, como aponta Nilo Batista, sua grande familiaridade, não só com “…o mundo forense – aquela legião de bacharéis, juízes, tabeliães, desembargadores, escrivães, advogados e promotores que transitam intensamente por sua ficção […] mas também com formulações e conceitos jurídicos.” Esses conceitos do Direito são utilizados da maneira correta, completa o autor supramencionado: “À procura de certa palavra em sua obra, tropeçávamos fascinados no uso impecável dessas formulações e desses conceitos…”

No capítulo III, intitulado “A Denúncia”, a personagem José Dias diz: “Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.” Não só pelo título do capítulo, quanto pelo conteúdo, é razoável concluir que Bentinho compara a cena que presencia a uma denúncia criminal, que na contemporaneidade é um ato de ação penal pública que dá início ao processo. Porém, no modelo do direito inquisitório, poderia ser secreta e o réu nem teria acesso ao seu conteúdo: “A inquisição era promovida ex oficio, apoiando-se no conhecimento privado do magistrado ou numa denúncia que podia ser mantida secreta.”

Segundo Nilo Batista, Bento Santiago assume dupla posição, pois, não só apronta a acusação, mas também sentencia, seguindo o modelo processual inquisitório, que se opõe ao contraditório. Esse capítulo, portanto, pode também ser comparado a esse modelo, pois José Dias faz uma denúncia secreta (Bentinho ouve escondido), que teria como pedido a pena: o seminário. A figura de Dona Glória nesse capítulo pode ser comparada à do magistrado, eis que ela ouve todos os presentes, com exceção do maior interessado, que é Bentinho, ou seja, não há lugar para o contraditório. O próprio Bentinho fala “…porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou.”

A Condição Jurídica da Mulher

O contexto histórico da época é de suma importância, principalmente o papel da mulher na sociedade, para a análise de alguns aspectos jurídicos do romance. A mulher era considerada inferior ao homem tanto na esfera cível, quanto na criminal. Isso era estudado nas doutrinas de Direito da época. Nilo Batista, tentando compreender Bentinho pelo contexto histórico, consulta o que o personagem teria estudado na Faculdade de Direito, que, pelas contas, deve ter colado grau por volta de 1863.

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O centro normativo de tais relações residia no “poder marital” que disporia de fundamentos jusnaturalistas: “a mesma natureza indica ser o homem” (o chefe da sociedade conjugal) “por ser o mais inteligente, o mais experimentado, o mais ágil em todos os negócios da vida, e ao mesmo tempo o mais forte.” Essa opinião era moeda corrente: num livro publicado em 1869, o Conselheiro Lafayette, mais discretamente, fundamentava a titularidade do poder marital no fato de ser o homem “o mais apto pelos predicados de seu sexo para exercê-lo”.

O autor vai além citando trechos da primeira edição do livro “Instituições de Direito Civil” de Trigo de Loureiro:

[…] “ao marido, como chefe da sociedade conjugal, compete o direito de exigir de sua mulher respeito e obediência”, particularmente quanto “a guarda da honestidade e bons costumes” e “à prestação dos serviços e trabalhos domésticos”, abstendo-se ainda ela de formular “exigências que o marido não possa (atender) honestamente”.

Sobre os direitos da mulher casada, Nilo Batista chama atenção para o fato de que estes estavam expressos na voz passiva:

[…] Pois, vejam as faculdades que elas poderiam desfrutar: “ser alimentada”, “ser defendida (pelo marido) em sua pessoa, honra e bens”, “ser nomeada curadora” do marido em caso de ser ele interditado, “ser recebida em juízo” mesmo sem outorga uxória, para rever os bens transferidos à concubina e readquirir a administração de seus bens por morte do marido. O único direito em cujo exercício não está a casada dependente de iniciativa alheia é o de “gozar… das honras e privilégios do marido”.

Na esfera criminal, cita o livro “A Nova Escola Penal” de Viveiros de Castro:

[…] Viveiros de Castro fazia coro à explicação da “nova escola penal” sobre a constante estatística da menor criminalização de mulheres: precisamente por sua inferioridade física e mental. Eis a lição: “A estreiteza de sua inteligência não lhes permite pois conceber, preparar, amadurecer, realizar estes crimes que exigem reflexões acuradas, profundas, frias.”

Segue trecho da narrativa que mostra que Bentinho incorporou essas ideias:

“(…) sentia já debaixo do recolhimento casto uns assomos de petulância e de atrevimento; eram do sangue, mas eram também das moças que na rua ou da janela não me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto a minha beleza (…)”

Enquanto que ao relatar sobre o ciúme que teve de Capitu, escreve: “Agora lembrava-me que alguns olhavam para Capitu, — e tão senhor me sentia dela que era como se olhassem para mim”. É possível perceber que Bentinho realmente sentia-se superior à Capitu, eis que ele acreditava que seu atrevimento era “do sangue”. Com esses trechos, fica claro que a mulher não era considerada capaz nem mesmo de cometer um crime mais elaborado, quanto mais tomar uma decisão, sem a ajuda de um homem. Capitu estava em desvantagem apenas por ser mulher.

Embargos de Terceiro

Embargos de Terceiro, em uma definição bem simplificada, é o direito de um proprietário ou possuidor legítimo, que não faz parte de uma relação processual, reclamar, através desse recurso, a posse de um bem. Portanto, pode-se inferir que alguém estranho interfere em uma relação processual que já está em andamento. Explica Carlos Roberto Gonçalves:

“A ação de embargos de terceiro guarda acentuada semelhança com as possessórias, pois, assim como estas, exige uma posse e um ato de turbação ou esbulho. Tal ação pode, com efeito, ser também usada para a defesa da posse, revestindo-se, neste caso, inquestionavelmente, de caráter possessório. (…)”

No capítulo, Bento narra uma passagem em que vai à estreia de uma ópera sozinho, pois Capitu diz estar se sentindo mal, mas insiste que o marido vá, mesmo sem ela: “Ao teatro íamos juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ela, um benefício de ator, e uma estreia de ópera, a que ela não foi por ter adoecido, mas quis por força que eu fosse.” Preocupado com a saúde da esposa decide voltar para casa, chegando lá encontra seu amigo Escobar na porta do corredor. Escobar diz que foi procurar o amigo advogado “para aquele negócio dos embargos”. Porém, quando o Bentinho lhe conta do mal estar de Capitu, Escobar diz que vai embora. Bento pede que o espere, pois iria ver como estava a esposa: “Capitu estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me.” Ao saber disso Escobar sorri e diz: “— A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos.”

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A passagem não é clara quanto a alguns aspectos, como, por exemplo: onde é a porta do corredor? Essa porta dava acesso aos quartos? Se sim, Escobar tinha a chave da casa? Parece que Bentinho, que descreve com riqueza de detalhes certas memórias, propositalmente, nesse trecho, quer confundir a cabeça do leitor, para convencê-lo da traição de Capitu, induzindo-o a pensar que Escobar estava com Capitu.

O Adultério

O adultério, tema central do livro, era considerado crime, e, também, tinha algumas peculiaridades no que diz respeito ao tratamento diferente que era dado ao homem adúltero e à mulher adúltera. O código penal de 1890, seguindo o código criminal de 1830, previa o adultério da seguinte forma:

“Art. 250. A mulher casada que commeter  adultério será punida com a pena de prisão com trabalho por um a três annos. A mesma pena se imporá neste caso ao adultero.
Art. 251. O homem casado que tiver concubina, teúda e manteúda, será punido com as penas do artigo antecedente”

Enquanto para a mulher bastava apenas uma conjunção carnal para caracterizar adultério, para o homem teriam que ser habituais e com uma parceira sustentada por ele. Nas palavras de Nilo Batista: “O adultério da mulher está realizado com a prática de apenas uma conjunção carnal extramatrimonial”, já para o homem “requer uma estável reiteração de conjunções carnais com a mesma parceira, objetivamente sustentada por ele, configurando o que tecnicamente se chama crime habitual.”

Bento Santiago assume dupla posição de acusador e juiz, seguindo um modelo processual inquisitório e, em virtude de seu ciúme doentio, o julgamento estaria comprometido pela parcialidade. Além disso, Bentinho baseou-se apenas em indícios, e indícios não podem ser considerados provas. Para atribuir valor probatório aos indícios, explica Nilo Batista: “…tem que submeter-se a uma espécie de teste de confirmação para o qual se convocam os contra-indícios.” Segue o autor dizendo: “Como, em Dom Casmurro, tais indícios são manejados por um marido que se supõe traído, todo cuidado é pouco.”

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É admissível constatar que tais indícios estão contaminados pela emoção desde o início da narrativa, pois Bentinho apresenta Capitu ao leitor atribuindo a ela valores negativos. Primeiro pelos lábios de João Dias: “… A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê”. Depois, quando fala da relação de Capitu com Dona Glória: “…ao passo que nos prendíamos um ao outro, ela ia prendendo minha mãe…”, aqui, poderia ter usado uma palavra com uma conotação menos negativa, como conquistando, cativando ou encantando. “Capitu ia agora entrando na alma de minha mãe…”, como que se se apossasse de Dona Glória.

Para Helen Caldwell “…a única prova tangível da culpa de Capitu é a semelhança de Ezequiel com Escobar.” Seguindo raciocínio da autora: quem na história percebe tal semelhança? Bentinho e Capitu. E foi a própria Capitu que disse: “— Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar.” Que é um contra-indício, pois não chamaria a atenção do marido ao fato, se tivesse culpa. Outro contra-indício é que o próprio Escobar sugere casar o Ezequiel com a filha. Se Escobar tivesse alguma desconfiança de que Ezequiel era seu filho, não levantaria tal hipótese. Afinal seria propor o casamento entre irmãos.

Portanto…

São inúmeros os fatores que fazem de Dom Casmurro um romance de destaque para a literatura brasileira. O livro reúne quase todas, se não todas, as vertentes do estilo machadiano. A violência estrutural das relações sociais, destacando as relações entre esposo e esposa e entre pai e filho. E a dúvida, “é a traição ou não?”; mas há também as suscitadas implicitamente que versam sobre a família, o amor, a amizade e a religião. Estas últimas marcam o ceticismo de Machado de Assis diante desses conceitos.

Aqui, prevalece o direito de defesa para a personagem Capitu. Se fosse ao contrário, Capitu escrevendo suas memórias denunciando Bentinho de adultério, teria a mesma repercussão? A resposta mais óbvia seria que não. E sem a repercussão, esse romance não teria a importância que tem até os dias atuais. Como nas obras de Machado de Assis a mulher é sempre apresentada como uma figura mais interessante que o homem, e dado que uma das características mais marcantes da escrita do autor é a ironia, queria, ele, chamar a atenção para esse problema? Fica a dúvida.

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BATISTA, Nilo, Machado de Assis, criminalista. 1ª edição, Rio de Janeiro: Renavan, 2018.

CALDWELL, Helen. The Brazilian Othello of Machado de Assis: A Study of Dom Casmurro. Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1960.

DE ASSSIS, Machado, Dom Casmurro. iBooks. https://books.apple.com/br/book/dom-casmurro/id1144116932

DE SOUZA MENDES, Paulo, Lições de Direito Processual Penal. Coimbra: Edições Almedinas, S.A., 2013

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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5 : direito das coisas. 13ª Ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

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