Segundo filme de Julia Ducournau, diretora do controverso Raw, é crônica surrealista movida a sexo com automóveis, sangue e busca incontrolável por amor

por Henrique Nunes
Não sabemos onde exatamente ela está. Tampouco a data em que os fatos ocorrem. Um acidente de carro. Pai e filha. Uma placa de titânio na cabeça da criança. A história avança. A criança vira mulher. A câmera a acompanha de costas enquanto caminha entre corpos em transe. Quando a vemos, ela nos encara num misto de ódio, tesão e desdém. Dança sobre o capô de um carro com quem transará logo adiante — sim, ela transa com um carro.
Agora já sabemos quem ela é, mas nunca conseguiremos antever o que ela será capaz de fazer. A premissa de Titane segue a partir da obsessão desta mulher — cujo passado pouco sabemos além do acidente do prenúncio — por sexo e violência. Mas sobretudo pela tentativa errônea em descobrir e despertar afeto.
Ela quase não fala. Atrai suas presas, de ambos os gêneros, a partir de um fascínio que exerce sobre os outros pelo controle absoluto que tem do seu corpo — marcado pela dor física e psicológica. Se você acha que já soube demais sobre a história de Titane, não se preocupe: tudo o que foi dito até aqui acontece nos minutos iniciais e o restante da história te conduzirá para campos ainda mais profundos.
Não é um filme fácil de digerir, sabemos logo. Talvez não cause a mesma repulsa que Raw, o “filme canibal” que colocou a então estreante Julia Ducournau no radar há alguns anos. O que pouca gente esperava é que a diretora faria história já em seu segundo longa ao vencer Cannes 2021 com obra mais uma vez ousada a ponto de causar vômitos, desmaios e debandadas das salas de cinema.
Desde que Spike Lee, o então presidente do júri, anunciou Titane como o vencedor da Palma de Ouro, o filme tem alimentado discussões acaloradas e sido adjetivado como “provocador”, “atordoante”, “incendiário”. De fato, o filme franco-belga é tudo isso, mas não só. Por pouco mais de 1h40 o espectador é jogado sem piedade num lamaçal de reações a ponto de cogitar a possibilidade de interromper a jornada — como muitos fizeram logo nas primeiras cenas de violência explícita.
Aos que suportam acompanhar a história até o fim, haverá graves consequências: é impossível rotular Titane sem o mínimo de perturbação. Tenho grande resistência em atribuir camadas muito filosóficas a filmes quase literais, que usam sexo e violência como recursos narrativos. Também acho super pretensioso quem se dispõe a explicar com malabarismos técnicos o que nem mesmo o criador (ou a criadora, no caso) sequer insinuou.
Eis o que a própria Ducounau fala sobre o filme: “Quis fazer um filme que, pela sua violência, pudesse parecer ‘desagradável’ a princípio, mas que depois nos levasse a apegar-nos às personagens e, em última análise, a receber o filme como uma história de amor. Ou melhor, uma história sobre o nascimento do amor”.
Mas onde está este amor do qual ele se refere? Aí, cabe ao raro leitor seguir com estômago forte ao lado da personagem para descobrir que, sim, pode haver humanidade até mesmo em quem tem óleo em vez de sangue nas veias.
Onde ver: Titane entrará no catálogo do Mubi em janeiro.