Steve Albini: gravadoras e Spotify vendem música sem pagar músicos

Aplicativos de “streaming” como iTunes, Deezer ou Spotify dão muito dinheiro. Infelizmente, artistas de grandes gravadoras não recebem nada com esse negócio. Entenda

Imagem: O Partisano
por Steve Albini, no Twitter, com tradução de Danilo Matoso

Nossa banda idiota tem cerca de um milhão de reproduções mensais no Spotify. O Spotify nos paga 0,003 centavo por reproução, 100% do qual vai para nossa antiga gravadora, a Sony, que é uma das donas do Spotify. É por isso que estou puto.

O desabafo da banda Eve 6 feito no último 31 de janeiro no Twitter foi respondido com dois longos fios pelo músico e produtor Steve Albini, um no mesmo dia e outro no dia seguinte.

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Nascido em Pasadena, California, em 1961, Albini iniciou sua carreira à frente de Big Black – inicialmente um pseudônimo e depois o nome de uma banda – em Illinois. Uma das mais contundentes e barulhentas encarnações musicais daquela década de ascensão do neoliberalismo que, por isso mesmo, não poderia deixar de ter um forte conteúdo político. Como músico, Albini estaria à frente ainda das excelentes bandas Rapeman e Shellac.

Mas cada vez mais ele se tornaria conhecido como descobridor e produtor de bandas influentes como Slint ou Breeders. A qualidade de seu trabalho pode ser ouvida em mais de 650 discos, que vão de Surfer Rosa (Pixies, 1988), passando por No Pocky for Kitty (Superchunk, 1991) In Utero (Nirvana, 1993), Rid of Me (PJ Harvey, 1993) até os quatro discos da banda alternativa de Catânia (Sicília), Uzeda. Desde 1997 à frente dos estúdios Electrical Audio em Chicago, Steve Albini entende de música, de gravação, da indústria da música e de como combatê-la.


Com respeito ao debate atual sobre o Spotify, há um importante fio condutor no tempo que merece um olhar mais detido ao se tratar da exploração de bandas por gravadoras. Os grandes selos historicamente exploram os músicos terrivelmente, usando contratos construídos em torno à ideia de amortização de dívidas contraídas por adiantamento. Eu já escrevi sobre isso antes – fique à vontade para buscar no Google – mas explicarei aqui rapidamente para chegarmos à parte importante.

Os contratos de grandes gravadoras são estruturados de tal modo que a banda ganha um royalty – uma porcentagem das vendas – expressa em “pontos percentuais” do valor daquela venda. Contratos nominais variam de 10 a 14 pontos, mas o valor é menos importante que a lógica do negócio.

Esse royalty, qualquer que seja, não vai diretamente para banda. Primeiramente ele se destina a “amortizar” qualquer dinheiro “adiantado” para a banda. Desavisados entendem que um “adiantamento” é só dinheiro dado para a banda, como se fosse um bônus pela adesão. Ok, há uma pequena parte disso.

Mas o “adiantamento” na verdade é o valor total de qualquer dinheiro gasto na gravação, produção, promoção, embalagem, vendas ou distribuição da música. A prensagem física e o envio normalmente não são incluídos nesse valor, mas a gravação com certeza o é, juntamente às comissões pagas a produtores, agentes (tais como comissões a “olheiros”), músicos de estúdio, serviços técnicos, direção de arte, direitos e autorizações, promoção, jabá, produção de vídeo, vitrines de lojas, publicidade, apoio a turnês… Ou seja, tudo fora o plástico na prensa. Essa quantia é inflada a somas enormes já no início de um acordo, e todos os royalties que iriam para a banda vão primeiro para a gravadora para reembolsar esse gasto. Note-se algo bastante específico nessa contabilidade.

Basicamente, 100% dos custos são pagos pela banda e retirados da minúscula fração das vendas totais que se destinava a ela. O resto do lucro já vai para a gravadora desde o primeiro disco. Esse arranjo de partilha garante essencialmente que – a menos que seja um sucesso gigantesco – a banda provavelmente verá um centavo das vendas, porque eles ainda estão “em débito”, enquanto a gravadora já tem lucros astronômicos da ordem de mais de 80%.

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Todo o pessoal que acrescenta sua porção aos valores de custo – produtores, artistas e repertório (A&R), advogados, agentes – também estão recebendo suas fatias, ao mesmo tempo em que reduzem a parcela contabilizada à banda. Quando um produtor recebe um ou dois por cento num contrato, isso não é “dinheiro extra”. Esse percentual é tirado das migalhas destinadas à banda no negócio. Se a produção tira 2%, a mixagem, o jurídico e A&R, 1% cada, a banda agora recebe oito por cento. E eles ainda precisam arcar com toda aquela outra “despesa” com esses míseros 8%. Se uma banda está em débito quando chega a hora de gravar o segundo disco, então todos aqueles custos simplesmente se acumulam às despesas não amortizadas, e assim por diante até que a banda é descartada ou destruída.

Como driblar o sistema

Eu fiz questão de frisar aqui “grandes gravadoras” porque, durante a era punk, os selos independentes surgiram. Selos como Touch and Go, Dischord, Drag City, Merge e outros, que operavam de modo diferente. Em geral, esses selos adotavam um modelo de partilha, ao invés de amortização.

Na partilha de lucros, toda a remuneração de um lançamento cobre seus custos e todo e qualquer lucro restante é dividido entre a banda e a gravadora – normalmente meio a meio. Minhas bandas usufruíram desse tipo de acordo desde o início da década de 1980 e vou lhe dizer que é ótimo.

Em certo ponto nos anos 80, havia uma espécie de corrida armamentista nas grandes gravadoras, em que se ofereciam às grandes estrela acordos especiais de gravação. Madonna, Bruce Springsteen ou Prince fizeram época ao arrancar acordos de gravação numa base de 20% ou mais – algo inédito então – enquanto muitas bandas recebiam 10% ou menos.

Bem, eu ganhei alguma grana naquele tempo e minhas bandas estavam quilômetros à frente deles. Nós trabalhávamos de modo econômico, de modo que o acordo de partilha chegava ao equivalente a quase 30%. Bandas independentes estavam fechando negócios muito melhores que as bandas de grandes gravadoras. Isso significava que nossos discos se viabilizavam com menores preços finais – e menores vendas também – e que ganhávamos mais dinheiro vendendo uns poucos milhares de discos que bandas ganhavam vendendo centenas de milhares. Nossos métodos eram exclusivos de bandas e selos independentes. Então bandas como Eve 6 estavam aprisionadas ao paradigma das grandes gravadoras, sem outra opção que assinar contratos baseados no sistema de amortização que expliquei.

Sobre os aplicativos de streaming

Na discussão do Spotify e mesmo antes, eu vi leigos (leigos ignorantes, capitalistas) botarem a culpa por aqueles acordos nas bandas. “Você assinou o contrato, meu chapa. Se você não arrumou um advogado melhor, a culpa é sua” – a babaquice típica que argumentam. Cada banda que assinou contrato com uma grande gravadora teve um bom advogado acompanhando sua negociação e dizendo “É, parece padrão…”. Isso porque ERA padrão.

O padrão era corrupto, explorador e injusto, mas era o padrão da indústria. De modo que bandas como Eve 6 e similares permanecem presas a esses péssimos acordos, firmados anos antes do streaming, com termos que nunca foram além grotescamente injusto.

Na era do streaming as grandes gravadoras conseguiram para si mesmas uma parte da propriedade de serviços como o Spotify em troca de licenças gerais a seus catálogos. Quando o Spotify dá dinheiro, ele dá dinheiro, e eles não estão nem aí se algum dinheiro é acumulado em royalties para as bandas.

E se uma fração de centavo é “paga” à conta de royalty de uma banda, não importa: há ainda uma quantia não amortizada pendente que permite que eles a embolsem também. Uma banda como a minha, que toca muito menos que a Eve 6, recebe cerca de cinco dígitos anualmente do Spotify e outros serviços – uma bela quantia. Se minhas bandas fossem mais populares, essa quantia cresceria o suficiente para nos sustentar, tal como ocorre com alguns de nossos colegas mais populares.

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As perspectivas parecem sombrias para as bandas presas no gueto das grandes gravadoras (eu tentei pensar num termo menos carregado, mas esse pareceu bom, dada sua conotação protofascista). Se elas puderem bolar uma saída do Spotify, lutem por ela.

Bandas independentes podem sair do Spotify porque o serviço abriga um falastrão disonesto de direita antivacina como Joe Rogan. Mas entendam por favor que esse é um sacrifício muito maior de sua parte que o de uma banda de uma grande gravadora, que perderia literalmente nada. Se você vir um êxodo do lado das bandas independentes, é um sacrifício genuíno. Não um protesto de custo zero.

É notório que, se esses serviços pagam tão pouco, essa é só mais uma manifestação da ganância dos grandes selos e das práticas de uma indústria corrupta e predatória.

Eu fico tranquilo ao pensar que o modelo de streaming é insustentável e que vai quebrar um dia. Mas até lá lembre-se que o negócio da música que fodeu com as bandas do mainstream sempre foram contrastadas pela cena independente em paralelo, que era mais justa e segue sendo.

[Leio comentários do tipo “Nem todas as bandas indie eram boas e puras…” Sim, eu sei, eu combati a mentalidade proto-profissional no mundo independente desde que ela surgiu. Algumas poucas bandas indies eram ruins, sim, ok: eu disse isso. Mas TODAS as grandes gravadoras. TODAS.]

[Para todos aqueles se indagando “como você colocou isso num contrato”, a resposta é: nós não temos um contrato, nós temos confiança mútua e um acordo de princípios. Eu não uso contratos. Eu não acredito neles e eu acho que eles não servem para nada, especialmente para o lado mais fraco.]

Como trabalhar fora do esquema

Eu não recebo royalties por gravar bandas. Esse é um comportamento ético normal em todas as demais indústrias e não deveria ser excepcional ou notável na música. É constrangedor que isso tenha que vir à tona sempre que discutimos o pagamento de músicos, mas pela nona vez… Aí vai.

Eu trabalho num disco por relativamente pouco tempo, de poucos dias a poucas semanas. Me parece pouco ético esperar que uma banda me pague para sempre por um trabalho que eu faço uma vez. Pagar por meu tempo é normal e é assim que o comércio funciona, e isso me permite decidir quanto vale meu tempo.

Se eu não estou trabalhando em seu disco essa semana. Eu estarei trabalhando no de outra pessoa. Logo, trabalhar no seu disco não é minha única chance de remuneração. Eu tenho outros clientes, e sinceramente o agendamento é uma das piores partes do trabalho – então se eu não valho isso pra você, tudo bem.

A maioria dos discos em que trabalho são pequenos em escala, para bandas ou selos independentes, e eu não os importuno com contabilidade ou vantagens. Se eu buscasse ganhar um pouco mais em cada edição de mil discos que já fiz, eu passaria o tempo todo ao telefone enchendo o saco por centavos.

Nos poucos discos em que trabalho que caem no paradigma das grandes gravadoras, onde há mais dinheiro circulando ao redor do processo, eu precifico meu tempo de modo diferenciado e cobro mais. Tem dinheiro pra queimar nessas sessões de gravação e eu ainda sou uma relativa pechincha, mas eu tento molhar meu bico.

Essas sessões normalmente demandam muito mais trabalho especializado, viagens, frete e advogados administrativos metendo a mão e sendo remunerados. E receber de grandes gravadoras é SEMPRE um sufoco. Você pode achar que as grandes gravadoras pagam imediatamente, mas elas podem ser brutais.

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Com muitos anos no negócio, com milhares de sessões nas costas, eu só sofri dois calotes. Um foi de um poeta de rua sem recursos que me devia algumas centenas de dólares e até me pagou alguma coisa. O outro foi da Warner Brothers, que me devia dez barões.

Então eu cobro mais das grandes gravadoras. Eu ainda não recebo royalties, porque eles viriam direto dos bolsos das bandas e, como já discutimos, elas estão fodidas, pra começar.

Sim. Isso já me custou “milhões”. Mas eu estou bem. Eu tenho uma casa, um estúdio e um Ford Fusion Hybrid, e durmo tranquilo. Eu continuarei atendendo ao telefone e seguirei fazendo discos até perder a audição e ter que me aposentar. Eu gosto desse trabalho, que me traz satisfação e inspiração, e me faz conhecer gente legal.

Alguns produtores respeitáveis parecem verdadeiramente odiar música, músicos, gravações, o negócio todo. Eles só querem garantir um par de sucessos que vão remunerá-los pelo resto da vida, de modo que eles possam cair fora. Eles provavelmente hoje estão enterrados em criptomoedas ou NFTs. Quanto a mim, eu curto o trabalho.

Custando “milhões” para si mesmo

Quanto aos “milhões” que custei para mim mesmo. Das duas dúzias de discos de grandes gravadoras que fiz, alguns ainda estão “não amortizados”. Não os grandes, mas alguns. Então eu não sinto falta de nada deles, e provavelmente eu recebi mais adiantamentos que se eu estivesse recebendo percentuais.

Dos maiores discos em que trabalhei, sim, a rigor haveria milhões deixados de lado. Esse dinheiro foi para as bandas, como expliquei, e eu me sinto muito bem com isso. Eu me sinto bem por ser o único com quem elas lidaram – ao longo do que foi provavelmente um doloroso período de dedicação exclusiva a uma grande gravadora – a não tentar maximizar seus lucros pessoais às suas custas. Eles compuseram aquelas canções, eles a executaram, eles sonharam suas bandas e as criaram do nada, construindo um público e um relacionamento com esse público. Porra, eles merecem essa grana.

E se talvez eu tivesse me comportado como uma pessoa típica da indústria, eles seriam uma parte da minha clientela que me deixaria de lado e não voltaria a mim. Teria me custado em reputação com meus clientes feijão-com-arroz: bandas e selos independentes.

No conjunto, provavelmente daria na mesma. Eu preciso continuar trabalhando ao invés de receber os cheques pelo correio. Mas e daí? Eu gosto de trabalhar e não há garantia alguma que os tais cheques viriam sem um trabalho de acompanhamento e cobrança de minha parte – algo que eu simplesmente não sei fazer.

Por fim, eu ainda estou na área. Ainda estou fazendo discos todo dia (hoje não, que estou de folga) e a maior parte das pessoas que me achava louco vazou do mundo da música. Estão vendendo imóveis, enquanto eu estou permanentemente trabalhando com as pessoas mais legais e inspiradoras do mundo.

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Então, na boa, não achem que isso é uma espécie de nobreza. O modo pelo qual sou remunerado é normal, familiar, compreensível e livre de rituais, legalismo, contratos ou burocracia. Eu tento custar barato porque, como sempre, tenho afinidade com as bandas. Simples assim.

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