O que há de tão revolucionário assim em “Round 6” que o distancie das enlatadas e previsíveis produções de Hollywood? Nada

por Henrique Nunes
Antes de tudo, sejamos justos: o primeiro e talvez maior mérito de Round 6 é consolidar a Coreia do Sul como uma das grandes potências da indústria do entretenimento.
O país, que tem uma “Ancine” para chamar de sua, colhe frutos de anos de investimento em produções feitas para derrubar fronteiras culturais e atingir novos públicos sem alimentar o velho rótulo de cinema “exótico”.
É inegável que o boom causado pelo excelente Parasita, que abocanhou Cannes e Oscar, ainda causa estragos e reverbera no interesse de espectador adormecido.
A defesa da obra, portanto, deveria passar necessariamente pelo viés do incentivo fiscal e da defesa de um setor sob constante ameaça diante do levante ultraconservador que ocorre não só aqui como em várias partes do mundo.
O leitor mais atento deve estar pensando: “não há como comparar a Coreia do Sul com, por exemplo, os países da América Latina”. Claro que não. Mas não se trata apenas do considerável montante em dinheiro injetado no setor.
A questão tem mais a ver com legado, com “escola”. Basta notar que, mesmo diante da pior crise de sua história, a Argentina ainda conseguiu criar obras como “A Odisseia dos Tontos” (justamente sobre a crise) e causar furor nos principais festivais do mundo — o mesmo aconteceu com os nossos “Bacurau” e “A Vida Invisível”. Tanto no país vizinho quanto aqui, esses filmes correm o risco de serem o último respiro de um eminente legado e do quase surgimento de uma escola formada a partir de (e não só) investimento público — hoje rebaixado à míngua.
Round 6 é, por fim, um tapa na cara dos liberais que refutam a ideia de o governo apoiar projetos ligados à cultura. Diga isso a eles, quando derem chilique nas redes para defender a série.
O Brasil além das novelas
Ainda que boa parte do público brasileiro tenha o hábito de assistir produções estrangeiras com dublagem em português, é fato que as produções coreanas foram muito bem aceitas por aqui.
Além, claro, do que é feito nos EUA e de alguns poucos filmes e séries europeias (como “La Casa de Papel”), o catálogo do país asiático tem sido um dos mais consumidos no Brasil.
Há tantas produções disponíveis em plataformas como a Netflix que até um filme chinês de ficção científica acabou sendo “vendido” nas redes sociais como mais uma produção foda da Coreia do Sul.
Feita para lacrar
Pois bem. Mas do que se trata, afinal, a série “Round 6”? Tentarei resumir: falidos, endividados e famintos da Coreia do Sul são convidados a participar de um misterioso jogo em que, sem saber, terão de lutar também pela própria vida. A promessa é que, no final, quem vencer sairá milionário.
A sinopse é rasa e confirma que a série não é assim tão original como propagam os fãs. Quantas histórias não vimos com premissa semelhante? Embora com infinitas variações no cenário, no contexto histórico e no subtexto, “Round 6” dividiria a prateleira com clássicos como Mad Max até blockbusters como a trilogia (tetralogia, tecnicamente) “Jogos Vorazes”. Também entram aí filmes como o polêmico “The Hunt”, sobre uma caçada humana organizada pela elite (alguma semelhança como “Bacurau”?) e que deixou Trump furioso.
Impossível, ainda, não colocá-la como filha bastarda de Parasita, mesmo que esteja muito aquém da ousadia narrativa do já clássico filme de Bong Joon-ho.
“Round 6”, sejamos diretos, é bem diferente de todos eles, mas se apropria da mesma lógica de colocar miseráveis ou excluídos no epicentro de uma saga que mistura um certo sadismo à luta pela sobrevivência — há quem o compare, inclusive, ao sanguinolento Jogos Mortais.
O velho e o novo
O ponto mais surpreendente de “Round 6” é justamente reinventar essas velhas premissas de luta num cenário novo e sob circunstâncias um tanto inusitadas — embora os jogos pelos quais os participantes miseráveis devam enfrentar nem sejam tão distantes dos que jogávamos na infância.
Ao que parece, o que deve ter conquistado o público que levou a produção ao topo da Netflix é exatamente a mistura de violência quase (!) sempre na dose certa com situações que nos provocam empatia e comoção imediata. A escolha dos personagens, do protagonista ao imigrante paquistanês, também é certeira. Um parêntese: o elenco todo tem gozado da superexposição promovida pela série e colhido as dores e delícias da fama.
Pesa contra a série a tendência hollywoodiana de apresentar um didatismo irritante (precisa explicar tudo o que estamos vendo na tela?) aliado ao infalível recurso de “esticar a corda” e nos entregar o resultado que já prevíamos — o protagonista vence sempre a um segundo do fim, é sempre o que oferece a blusa para quem está com frio, quem estende a mão a quem está sozinho.
As mensagens muitas vezes também são transmitidas num tom quase religioso, categórico, bisonhamente literal. Não há nuances que permitam ao espectador fugir da caricatura. Se, no início, o bem e o mal se diluem e não nos deixam decidir para quem torceremos, ao longo da série essa suposta complexidade se dissipa e o que vemos é o mesmo de sempre: um único herói rodeado de gente que, sabemos, cedo ou tarde vai morrer.
Isso não deixa qualquer margem à imaginação ou dubiedade. É aquilo e pronto. É assim e acabou.
Vem daí, inclusive, o meu espanto pela histeria causada em quem tanto refuta a mitologia do herói criada pelo cinema estadunidense. O que há de tão revolucionário assim em “Round 6” que o distancie das enlatadas e previsíveis produções de Hollywood? Nada. Não haveria problema se a série fosse consumida apenas como entretenimento, mais diversão do que arte.
A enxurrada de avaliações positivas sobre a saga coreana é até compreensível. O que incomoda é atribuir a ela uma qualidade que não se sustenta — seja na estética, no suposto tom panfletário ou no roteiro pop. Os paralelos com o Brasil de Bolsonaro também parecem forçar a barra de maneira tão infantil quanto os tweets dos filhinhos do presidente.
Sem cair na arrogância dos cinéfilos ou na prepotência dos acadêmicos, talvez falte aos adoradores de “Round 6” uma boa maratona de Ken Loach. Este, sim, um arquiteto legítimo da narrativa progressista, um combatente incomparável da violência causada pelo capital.