Planaltina: tomba uma casa, apaga-se nossa memória

Demolição de casarão histórico na cidade colonial remanescente no Distrito Federal é fruto da ausência de uma política consistente de Patrimônio Cultural

Imagem: Antonio Cunha/D.A. Press
por Danilo Matoso

Era manhã de uma quarta-feira escaldante no Distrito Federal, dia 20 de setembro de 2020. Sem qualquer aviso, sem permissão, sem interdição, sem tapume, sem acompanhamento de autoridades, a escavadeira postou-se no meio da rua e investiu contra uma acanhada casa vazia de esquina na praça de São Sebastião em Planaltina, no Distrito Federal. A construção já vinha sofrendo com a ruína do abandono havia pelo menos uma década e não opôs muita resistência.

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As paredes de barro tombaram e se esfacelaram, os esteios de madeira apodrecida que emolduravam os vãos estalaram e vieram abaixo com o telhado. Em poucos minutos, a casa centenária se transformaria num monte de escombros. Apanhada de surpresa, a população local não teve tempo de intervir. Restou filmar a cena, um lamento, uma nota de repúdio, a revolta.

O Governo do Distrito Federal não agiu – não age há um bom tempo, a bem da verdade. A perda do casarão é mais uma página arrancada do passado de nossa cidade, da própria história da concepção do Plano Piloto, um passado que teima em resistir após sucessivas tentativas de apagamento.

Cenário

A região era pouso de viajantes desde o ciclo do ouro em Goiás, tendo se constituído como povoação do Mestre d’Armas no final do século 18. De data de nascimento incerta, construído por um certo Benjamin Espírito Santo, o casarão pode ter testemunhado mudança de nome do município para Planaltina em 1917 – talvez a primeira iniciativa de apagamento do simplório passado colonial da região.

Em 1892 – logo após a proclamação da República – a chamada Missão Cruls demarcara a área como possível sede da futura capital do Brasil, cuja pedra fundamental seria assentada nas aforas da vila em 1922, quando do centenário de nossa Independência. A prefeitura da cidade tentou assumir a frente do processo de mudança, encomendando ao escritório paulista de engenharia de Mário Sílvio Polacco o projeto de Planópolis, na fazenda do Bananal – atual local do Plano Piloto de Brasília. Chegou a vender lotes segundo este plano, que nunca sairia do papel, suplantado pelas iniciativas federais de planejamento que culminariam no concurso vencido por Lucio Costa em 1957.

Faz parte do mito fundacional de Brasília a ideia de que a cidade foi construída no sertão, no meio do nada. Uma ideia de modernização que passa por cima das preexistências locais de modo deletério, negando a contradição latente em todo processo histórico, que preserva, nega e suplanta a realidade num processo dialético. A vila que precedera a capital deixou de ser município e se tornou uma “Cidade-Satélite” que passou a sediar uma burocrática “Região Administrativa” do Distrito Federal. O centro histórico foi batizado de “Setor Tradicional”, as ruas perderam seus nomes habituais – rua Direita etc.– e os quarteirões tornaram-se anódinas quadras numeradas.

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O Casarão de Dona Negrinha

Houve alguma resistência. A família do coronel Salviano Monteiro Guimarães vendeu ao poder público seu casarão centenário, na praça que hoje leva seu nome, para abrigar o Museu Histórico e Artístico de Planaltina – fundado em 1974. Oito anos depois, por meio de decreto, uma parte do “Setor Tradicional” ganharia proteção como patrimônio cultural. Na mesma rua do Museu, na esquina que dá frente à praça da Igreja de São Sebastião, encontrava-se a casa de Delmira Fernandes Guimarães – a “Dona Negrinha” –, que a comprara em 1945.

Segundo o inventário encomendado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2012, a casa serviu a diversos fins – inclusive aluguel de quartos – que ensejaram pequenos acréscimos no exíguo lote. Pela abertura de portas, depois transformadas em janelas, é possível que tenha abrigado algum comércio. De um só pavimento, com telhado de quatro águas, beirais com cachorros, dez aberturas de corte reto e panos de parede emoldurados por esteios, a edificação é de uma simplicidade aparentada tanto à colônia quanto à arquitetura rural que se praticou no interior do Brasil até o final do século 20 – toda de madeira, barro e cal.

Legado e permanência

Juntamente às igrejas, aos palácios, às fortalezas, relativamente suntuosos de nossa herança colonial, nossa anônima arquitetura civil tem um papel que vai além do mero pano de fundo às obras monumentais. Sua simplicidade tem um carisma próprio, decisivo na própria conformação da Arquitetura Moderna brasileira. Lucio Costa, depois autor do Plano Piloto de Brasília, fora contratado em 1922 pela Sociedade Brasileira de Belas Artes – sob auspícios de José Mariano Filho – para realizar levantamento cadastral do patrimônio colonial de Diamantina, em Minas Gerais. O arquiteto, então um jovem expoente do movimento neocolonial, mais tarde relataria em suas memórias (Registro de uma vivência, Empresa das Artes, 1995):

Lá chegando caí em cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi uma revelação: casas, igrejas, pousada dos tropeiros, era tudo pau-a-pique, ou seja, fortes arcabouços de madeira – esteios, baldrames, frechais – enquadrando paredes de trama barreada, a chamada taipa de mão, ou de sebe, ao contrário de São Paulo onde a taipa de pilão imperava. (…) E mal sabia que, 30 anos depois, iria projetar nossa capital para um rapaz da minha idade nascido ali.

Lucio Costa integrara ainda a equipe de Rodrigo de Melo Franco de Andrade que fundou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) em 1937. O fomento da identidade nacional estava na ordem do dia, e não apenas norteava as escolhas do Serviço de Patrimônio, mas também o feitio da arquitetura moderna que se procurava desenvolver então, cujo maior expoente seria Oscar Niemeyer – então estagiário de Costa.

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De fato, a primeira obra de relevo de Oscar Niemeyer seria o Grande Hotel Ouro Preto, no coração da cidade colonial tombada, realizado por encomenda do Iphan e da Prefeitura em 1938. Num texto canônico, Documentação necessária, publicado no primeiro número da revista do Sphan em 1938, Lucio Costa situaria no casario o elo de ligação entre passado e presente – sua feição “evoluiria” na medida exata do avanço das técnicas construtivas e dos maiores vãos permitidos.

A memória da singeleza

Evidentemente é uma narrativa enviesada, mas que carrega em suas descrições elementos determinantes dessa “constante de simplicidade” – reforçada por Glauco Campello em seu O brilho da simplicidade (Casa da Palavra, 2001) – que acabaria por caracterizar a influente arquitetura de Costa e Niemeyer, e portanto a de muitos outros profissionais. A leitura das feições do casario está na origem de uma linguagem que nortearia a arquitetura e o urbanismo de Brasília, o mesmo Plano Piloto e seus palácios.

Um trecho descritivo-prescritivo de Documentação necessária, por exemplo, bem poderia aplicar-se ao Casarão de Dona Negrinha: “os telhados que, de traçado tão simples no corpo principal, se esparramavam depois para ir cobrindo – como asa de galinha – os alpendres, puxados e mais dependências, evitando os lanternins e nunca empregando o tipo de Mansard tão em voga na metrópole, mas conservando sempre o galbo inconfundível do telhado português”. A casa trazia em si, portanto, mais memória do que sua singeleza aparentava – ou na verdade a memória de sua própria singeleza.

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Espelho do descuido

Abandonada e em desuso havia anos, a edificação começava a ruir. A comunidade denunciou ao poder público o descaso, para que providências fossem tomadas para a conservação do bem. A burocracia distrital deixou o processo fluir pela pior via possível: uma notificação da Defesa Civil ao proprietário – descendente de Delmira Guimarães – sobre a instabilidade da casa. Ele não se fez de rogado: ordenou a sua demolição imediata. Se o tombamento individual da casa, pedido pelo deputado distrital Fábio Félix (PSOL) em 2019, ainda não fora levada a cabo, melhor tirar proveito da inércia do Executivo – a despeito dos esforços dos técnicos – e não esperar que tal tombamento ocorresse de fato.

Mas a culpa de tal sucesso não deve ser atribuída exclusivamente ao dono da casa. A responsabilidade está, sobretudo, nas costas de sucessivas gestões do Governo do Distrito Federal (GDF), incapazes – por falta de vontade política dos dirigentes – de elaborar e levar a cabo uma política consistente de preservação do Patrimônio Cultural. Sequer os incensados edifícios de Niemeyer na área monumental sob tutela do GDF contam com uma conservação satisfatória. Que dizer de um passado colonial que quase sempre se quis negar?

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Desnecessário lembrar que ultimamente, em tempos de bolsonarismo, o GDF abraçou uma boa dose do obscurantismo vigente – agravando a situação de nossos bens tombados. Resta-nos constatar com Simone Macedo, fundadora da Associação dos Amigos do Centro Histórico de Planaltina: “essa demolição é o espelho da atual situação do nosso país em relação à cultura, ao patrimônio cultural material, imaterial e natural”.

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