Pelé “isentão” é confrontado em filme da Netflix

Documentário “Pelé” confronta o jogador com sua postura durante a ditadura, acompanhando sua trajetória no futebol e em sua vida pessoal diante da história do Brasil

Imagem: Netflix / Divulgação
por William Dunne

Três fios narrativos correm paralelamente no filme “Pelé”, lançado ontem pela Netflix. Durante as duas horas de documentário, vemos as trajetória do jogador em sua vida pessoal e em sua carreira dentro dos gramados, correndo paralelamente à história do país. A cronologia que divide o filme em capítulos revela essa opção de enfoque na relação entre o personagem e seu tempo: são os anos das copas, de 1958 até 1970, e os decisivos anos de 1964, ocasião do golpe militar, e 1968, com o fechamento do regime e a decretação do AI5.

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A confrontação de Pelé com seu papel durante a ditadura é justamente um dos trunfos da obra. O assunto é antigo, mas vemos o ídolo ser confrontado com ele. O jogador foi usado pela ditadura para fazer propaganda, aparecendo ao lado do ditador Garrastazu Médici quando ganhou a Copa de 70 e quando fez seus mil gols. Pelé se justifica dizendo que era uma pessoa comum a quem Deus deu o talento para jogar futebol, e que teria aceitado o convite de qualquer um para encontros como aquele, como sempre fazia com pessoas famosas.

Em uma entrevista da época, ele aparece dizendo que não entende nada de política e que o futebol toma todo seu tempo. Respondendo a uma pergunta do diretor do documentário, o britânico David Tryhorn, que fala português, o craque diz que para ele a ditadura não mudou nada, “o futebol continuou igual”. Mas admite que “estaria mentindo” se dissesse que não sabia nada do que acontecia. E diz que durante a ditadura ele tinha “as portas abertas” mesmo nos “momentos bem ruins”, e que era procurado sempre para apoiar um lado ou o outro.

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Redenção

O filme procura apresentar uma redenção do rei do futebol frente à história de seu país por meio daquilo que ele representou para o povo jogando bola. Na Copa de 70, o futebol era um respiro em meio ao clima tenso da repressão. O jornalista José Trajano aparece no documentário dizendo que foi cobrir o campeonato torcendo contra o time, por causa do uso que seria feito pela ditadura de uma conquista do Brasil. Mas chegando lá não conseguiu torcer contra o Brasil quando a bola rolou. A alegria do título seria um alívio para o povo, e Pelé aparece dizendo que a Copa de 70 “foi mais importante para o país do que para o futebol”.

Nesse ponto, culminante na carreira do jogador, essas duas camadas, história do país e carreira futebolística, coincidem. A Copa de 70 foi uma redenção também para a trajetória de Pelé nos campos. Em 1966 a seleção tinha sido eliminada na fase de grupos. Pelé foi tirado do último jogo, contra o Portugal de Eusébio, por uma falta violenta. O rei do futebol foi embora do campeonato não querendo mais jogar copas. Havia, no entanto, uma pressão do regime político para que Pelé jogasse. Em 1962, quando o Brasil foi bicampeão, Pelé participou mas se machucou na fase de grupos, sendo substituído por Amarildo.

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Na Copa de 70, ele teve outra chance de jogar até o final, repetindo, agora aos 29 anos, o êxito de sua atuação na Suécia em 58, quando tinha apenas 17. “Ele precisava daquilo. O gol de cabeça contra a Itália, o soco no ar”, diz Juca Kfouri, entrevistado no documentário.

O enfoque íntimo

Há momentos tocantes no filme. O ídolo chora ao lembrar momentos como a conquista de 58, e quando começou a chorar no ônibus, na Copa do México em 70, quando viu pela janela a torcida brasileira indo assistir à final contra a Itália. O reencontro com antigos companheiros de Santos é outro momento emocionante em que o espectador se sente envolvido pelo clima descontraído daquele grupo, relembrando seus grandes momentos no esporte.

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Esse ângulo íntimo, sem fugir das falhas pessoais do ídolo eterno do futebol brasileiro, coloca o rei do futebol em suas comoventes dimensões humanas. Quando despontou no futebol, Pelé tornou-se um símbolo do país em um momento de otimismo nacional, com desenvolvimento e pujança cultural. As imagens daquele jovem negro, sempre sorridente nas fotos e entrevistas, representavam aquele Brasil interrompido pela ditadura. Pelé é cobrado até pela sua tentativa de ser isento naquele momento. Juca Kfouri pondera que para o jogador poderia ter sido muito perigoso agir de outra forma. De qualquer modo, vale relembrar aqui uma reflexão de Mano Brown, feita durante uma entrevista a Silvio Almeida no YouTube alguns meses atrás: “Existe uma cobrança exacerbada em cima do Pelé. E se o Pelé fosse branco? O que o Brasil ia fazer com isso?”

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Imagem: Instagram

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