Crônicas, contos, romances e novelas têm uma evolução atrelada ao desenvolvimento burguês, mas sua função é subvertida pelos grandes artistas

por Matheus Dato
O texto abaixo é o terceiro da série Estudos de literatura para a classe trabalhadora.
Para além de tecer uma crítica da divisão entre prosa e verso no campo da literatura, necessitamos avançar um pouco e estudarmos o que cada uma dessas estruturas nos oferece a título de expressão humana e reflexão sobre a vida social.
Chegamos a introduzir de maneira breve algumas divisões úteis sobre a prosa no último texto de nossa série. Logicamente, a pauta destes textos não é fazer simplesmente um diálogo entediante e acadêmico sobre literatura, mas aguçar de maneira crítica a percepção sobre o tema; por isso, será necessário comentar as classificações e analisá-las no contexto de sua materialidade.
Diversas definições podem ser retiradas da prosa e a sua pluralidade é um processo dinâmico e constante de aperfeiçoamento e novas criações. Trabalharemos aqui com a definição mais usualmente estabelecida pelo estudo brasileiro de literatura.
Segundo o já citado professor Massaud Moisés (1928 – 2018), as principais divisões estabelecidas na prosa partem das seguintes categorias: a prosa literária, a prosa representativa ou dramática e a prosa expositiva ou argumentativa.
A prosa literária será o nosso objeto e é toda escrita proseada que pretenda narrar ou elaborar uma história propriamente dita por meio da conexão entre aquele que comunica e aquele que é o alvo da comunicação. Entre seus gêneros, há a crônica, o conto, o romance e a novela. É certo que muitos outros gêneros existem, mas para fins didáticos é necessário se ater ao mais comum e utilizado.
Crônica
A crônica é um modo de escrita que se baseia na narrativa cômica e crítica dos eventos do cotidiano individual ou das experiências socialmente compartilhadas por uma classe ou grupo em determinado contexto. Encontra seu melhor veículo na mídia de alta circulação de massas, como jornais, revistas e boletins, muito embora seja possível encontrar coletâneas, elencos e obras escolhidas de cronistas nos livros.
Por definição, a crônica é um gênero popular e crítico das condições sociais em que é produzida. O papel da arte, na perspectiva da classe trabalhadora, é justamente de expressar o sentimento e o entendimento de que a sociedade burguesa é ridícula, disfuncional e repleta de contradições insolúveis dentro do antro estreito do capital; nos moldes do desenvolvimento literário brasileiro, é inegável que as crônicas têm sido um retrato acurado do desenvolvimento, crise e decadência do capitalismo dependente do Brasil. Especialmente se considerarmos que a crônica é quase tão antiga quanto o jornalismo nestas terras, poucos meios apresentam tanta fidelidade à perspectiva nacional, popular e operária sobre os ocorridos dos últimos 100 anos.
Conto
O conto, por sua vez, é uma unidade narrativa breve, com pouca extensão e complexidade na construção do enredo e dos personagens. Possui diálogos em linguagem direta na maior parte do tempo; além disso, é relativamente simples detectar as fases de começo, meio e fim em um conto, e possui um clímax bem determinado.
Historicamente, o conto tem se desenvolvido desde o antigo mundo árabe e ocidental como um gênero de expressão dos personagens mitificados ou sacralizados pelas diversas sociedades. Os contos iniciaram por narrar as aventuras de heróis, semideuses, divindades e nobres ancestrais.
Em certo sentido, o conto foi manejado socialmente para refletir a ideologia e a espiritualidade da classe dominante por meio da literatura acessível à plebe, muitas vezes de forma oral antes mesmo de propriamente ser escrita. Ao mesmo tempo que refletiu essa característica mística-ideológica, o conto também foi o portador de uma expressão de temas sociais, naturais e fantásticos.
Isso, realmente, não excluiu de maneira alguma a produção efetiva de contos que se destinavam a outros propósitos literários. O terror, o cordel e a tradição latinoamericana de contos são bons exemplares de uma ruptura contemporânea com essa figura clássica.
Creio ser possível analisarmos o conto como um problema a ser ainda resolvido, e com isso quero dizer que o processo de uma identidade proletária para este gênero é uma relação dialética inacabada e eivada de contradições que apontam a luta de classes latente na literatura.
Afinal, quem poderia negar que os contos de Lima Barreto (1881 – 1922) são a voz da brutalidade capitalista e do vazio da cidade moderna? Não é também óbvio que há um enfrentamento essencial entre este tipo de conto e os velhos contos da infância? Este gênero possui, portanto, o potencial de “rasgar o véu da sentimentalidade burguesa”, como diria o velho Marx.
Novela e Romance
Por fim, a novela e o romance serão tratados conjuntamente na medida em que são expressões derivadas um do outro, e não gêneros necessariamente separados. A novela e o romance encontram o seu veículo mais comum nos livros, embora possamos ver exemplos de boas novelas e romances que foram publicados em fascículos por meio de jornais; estes casos curiosos são comuns nas literaturas latina e russa.
Ambos os gêneros são narrativas de histórias mais longas e complexas, com uma gama mais variada de símbolos e personalidades. Diferenciam-se na medida em que a novela é mais sintética, focada no evento principal que o autor pretende expôr e possui uma extensão mais resumida em relação ao romance. O romance se faz mais extenso, com uma carga social, política, psicológica e emocional mais profunda do que a novela.
Ambas as formas possuem a sua configuração herdada das mudanças materiais e ideológicas bruscas da Renascença do séc. XIV europeu. A natureza do ser humano como o centro da produção cultural e artística vai sendo pouco a pouco remodelada pelas revoluções burguesas dos séc. XVII e XVIII, assim como passa a contar as histórias da classe operária nascente e a luta do proletariado contra o esmagamento político e econômico propiciado pelo capitalismo ainda em fase de consolidação. O romance e a novela adquirem feições importantíssimas para a compreensão dos tempos históricos e do caráter das classes dominantes e dominadas, em primeiro lugar porque sua forma permite um relato mais detalhado das impressões do escritor sobre a realidade vivida, e em segundo lugar porque a experiência imersiva do romance e da novela posiciona de maneira muito privilegiada o leitor nos acontecimentos que estão sendo narrados.
De que maneira, por fim, podemos estabelecer uma crítica destes gêneros, situando cada um desses jeitos de fazer a prosa no contexto adequado? Em primeiro lugar, realizando a crítica da pobreza material e intelectual da escrita mercantilizada e de matriz colonial que assola a América Latina.
Sem exceções, todos os gêneros literários comercializados pelos grandes capitalistas do mercado editorial estão sendo dominados em volume pelo que existe de mais medíocre, feio e tacanho no âmbito da literatura. Ao tratar da literatura infanto-juvenil, a situação é ainda pior. Não que desejemos que surja uma obra-prima a cada dez dias no mundo, mas ao notar que os livros parcamente consumidos pelo brasileiro médio são derivações do ponto de vista de uma burguesia idiotizada e desconectada da realidade material do povo, tratando de temas estranhos às massas e que tentam universalizar para uma classe operária faminta a experiência individualista de nossas elites, torna-se impossível negar que a literatura somente não morre por mera teimosia.
A quebra desta mediocridade institucionalizada é precisamente a negação das auto-ajudas fajutas, das histórias limitadas que pretendem confirmar ao leitor que sua realidade sofrida é nada mais que a normalidade imutável e decepam da imaginação do povo brasileiro um novo viver e uma nova personalidade conquistada.
Como todas as outras tarefas da revolução na fase imperialista do capital, a nova literatura também é um dever que só poderá ser levado adiante pelas classes trabalhadores em sua totalidade, a partir de uma conquista objetiva de novas estruturas de educação e cultura. Não há como esperar que a burguesia seja o vetor desta mudança; a burguesia é o passado, nós somos o futuro.
As indicações de leitura deste capítulo serão exemplos dos gêneros que trabalhamos aqui e constituem-se como obras que não se renderam à mediocridade que ora criticamos.
INDICAÇÕES DE LEITURA.
- “Germinal”. Émile Zola (1840 – 1902).
- “Contos Fluminenses”. Machado de Assis (1839 – 1908).
- “Enfermaria nº 6” Anton Tchekhov (1860 – 1904).
- “Vidas Secas”. Graciliano Ramos (1892 – 1953).
- “O Processo”. Franz Kafka (1883 – 1924).
- “Triste Fim de Policarpo Quaresma” (1881 – 1922).
- “Elenco de Cronistas Modernos”. Grupo Editorial Record.