“Não importa como a história começa ou se encerra, o que realmente interessa é a forma como Santiago vive e vê o mundo que o cerca”

por Emílio Pio
O Velho e o Mar, novela publicada em 1952 e escrita em Cuba, garantiu a Ernest Hemingway um Nobel da Literatura e um Pulitzer. A obra é uma declaração de amor pela vida, ali nas páginas há uma afirmação de que ainda existe vida em Havana. Santiago, velho pescador, passa 84 anos sem conseguir um peixe. Seu corpo é o retrato de um deserto, mas seu olhar é o mar, um reflexo de tudo que há na ilha e na extensão do oceano, das águas.
“O velho era magro e seco com profundas rugas. As manchas castanhas do benigno cancro da pele que o sol provoca ao refletir-se no mar dos trópico viam-se-lhe no rosto. As manchas iam pelos lados da cara abaixo, as mãos tinham as cicatrizes profundamente sulcadas, que o manejo das linhas com peixe graúdo dá. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram antigas como erosões num deserto sem peixes. Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da cor do mar e alegres e não vencidos.”
Não importa tanto qual ponto do oceano o barco de Santiago alcança, interessa a descrição de como o velho pescador vive as horas do dia. Uma história breve e imensa, intensa, um retrato da condição humana, um relato da beleza da vida. Não importa como a história começa ou se encerra, o que realmente interessa é a forma como Santiago vive e vê o mundo que o cerca. Um Santiago que se embriagava também de sonhos.
“Não tardou que estivesse a sonhar com a África, quando era rapaz, e as extensas praias douradas, e as praias brancas, tão brancas que faziam doer os olhos, e os cabos alterosos e as grandes montanhas escuras. Vivia ao longo da costa todas as noites agora, e em sonhos ouvia o estrondo da ressaca e via as canoas nativas deslizarem por ela. Cheirava o alcatrão e a estopa do convés, a dormir, e cheirava o cheiro da África, que a brisa de terra pela manhã trazia.”
A palavra “intolerável” não existe no dicionário de Santiago, ele conduz suas linhas com um olhar que antecede a linguagem como a conhecemos. A sua dor é beleza, é nobre. No plano da existência Santiago é uma metáfora da afirmação da vida, do ser integrado à totalidade, à natureza. Não há solidão, mas uma experiência de um ser que é tudo. E se há um amigo no caminho, como o jovem pescador, há comunhão entre eles.
“Era demasiado simples ele, para ficar-se a pensar ao atingir a humildade. Mas sabia que atingira e sabia que não era desgraça e não acarretava perda do amor-próprio autêntico.”
Nos últimos anos de vida de Hemingway floresce uma obra que brilha como o sol na ilha Cubana, revolucionário.
“Uma vez, levantou-se e urinou pela borda fora, e olhou para os astros a verificar o rumo. A linha brilhava na água como uma fita fosforescente que lhe saísse dos ombros. Iam então mais devagar, e o clarão de Havana era menos intenso; a corrente levava-os, portanto, para leste.”
Uma existência marcada por uma travessia feita pelo amor, amor a tudo que existe, por tudo que a vista de Santiago alcança, pelos homens, pela natureza. Envolto no próprio olhar, na própria existência, abrigado em si, Santiago vive uma experiência cósmica, embriagado de sonhos e vida, uma vida em abundância mesmo diante da ausência de peixes. Uma leitura que vale não pelo início e nem pelo fim, mas pelo trajeto, pela experiência, por aquilo que se consome nas horas e nos dias quando se esquece do relógio.