Por estar sendo animado na República Tcheca, o filme sofreu um forçado hiato de produção durante a invasão soviética no país

por Daniel Lameira*
Já antes de vislumbrar a primeira imagem de La Planète Sauvage, o espectador é recebido com um dos pontos fortes da película: a trilha sonora de Alain Gorager, um jazz eletrônico, groovado e alienígena que nos prepara, durante os créditos, para o que seguirá.
Uma mãe aparece, correndo desesperada entre plantas alienígenas, com um bebê no colo, olha para trás com medo, tropeça, a música interage com os efeitos sonoros, com pausas e tons dramáticos. Ela volta a correr até que uma mão azul gigante, com tom divino, lhe dá um peteleco. Sem ligar para as vãs tentativas de fuga da mulher, a mão a ergue e a derruba de uma altura que resulta em sua morte. O bebê olha sem entender.
Somos apresentados aos donos das mãos azuis, seres de corpo azulado e olhos vermelhos, com barbatanas onde haveria orelhas. São três crianças dessa raça gigante, os Draags, que tratam os pequenos humanos, no filme chamados de Oms, como animais inofensivos, domesticáveis e que não merecem uma atenção redobrada. Um misto de como lidamos com formigas, lagartixas, hamsters e bichos de pelúcia.

O pequeno bebê, protagonista da história, abandonado após a morte da mãe, é então adotado por uma das crianças gigantes e inicia sua jornada. Inicialmente de sofrimento, com uma coleira que o arrasta para onde a Draag quer; depois da descoberta do conhecimento, ao aprender junto com sua dona, em aulas, como funciona o mundo; e, por fim, de rebeldia, ajudando a criar uma cidade de pequenos Oms que inicia uma revolta lilliputiana contra os gigantes Draags.
Mas a trama, repleta de alegorias e críticas contra o domínio de uma raça a outra, está longe de ser o ponto forte do filme. Baseado no romance de 1957, Oms en Serie, do escritor francês Stefen Wul, o arco do protagonista Terr serve, na verdade, como subterfúgio para o que, de fato, torna Planeta Fantástico único, memorável e revolucionário: a exploração surrealista visual, sonora e conceitual do planeta de Ygan.
O encontro dos dois artistas responsáveis, Topor e Laloux, é simbólico para entendermos a ousadia que essa animação alcança.

Roland Topor, ilustrador e diretor de arte do filme, traz o elemento sensibilidade gráfica. Topor, além de artista plástico, era escritor e, mais tarde, teria seu romance, O Inquilino, adaptado para o cinema por Polanski. Referência na vanguarda cultural europeia, havia fundado, junto com Jodorowsky e Fernando Arrabal, o Panic Movement, uma resposta, pós-revolução cultural, ao movimento surrealista de Dali, Ernst e Breton, que, segundo os artistas, havia sido consumido pelo pensamento conservador e pequeno burguês. Além de Polanski, Topor também trabalharia mais tarde com Fellini e Herzog, além de fazer ilustrações para livros de Sartre.
Com uma trajetória diferente, René Laloux estudou artes e havia começado na área de publicidade antes de trabalhar em uma instituição psiquiátrica, onde desenvolvia projeto artísticos com os pacientes. Com ajuda do filósofo Guatarri, desenvolveu curtas de animação como o impressionante Monkey’s Teeth, em 1960, que já tem em si um cerne do que o artista exploraria em seus longas.
Planeta Fantástico foi a terceira animação da dupla criativa, precedida por Les Escargots (1966) e Les temps Morts (1965), e venceu o Grand Prix de Cannes em 1973. O filme deveria ter sido lançado anos antes, mas por estar sendo animado na República Tcheca, sofreu um forçado hiato de produção durante a invasão soviética no país.

Como bem nota Bráulio Tavares, estudioso da ficção científica, em um ensaio que compara as obras anglo-saxãs com as francesas:
“Nos EUA, os autores de FC descendem das pulp magazines, mas também de uma tradição literária que inclui Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne e Ambrose Bierce. Já os autores franceses talvez se sintam descendentes de Cyrano de Bergerac, Voltaire e Diderot.”
Essa herança temática, juntamente com o visual e a trilha sonora, foi crucial para a recepção que o longa teve em todo o mundo, vencendo em Cannes e sendo cultuada no cenário lisérgico progressivo que dominava a cultura americana depois dos hippies e dos beatniks. Ao reassistir o filme, é impossível não o comparar com o que hoje celebra-se como ousadia em filmes como Aniquilação e A Chegada. Mas fica óbvio que ainda estamos longe de voltar a explorar universos que já foram visitados cinematograficamente no passado e que continuam a pautar, ainda hoje, o que há de melhor no gênero.

*Daniel Lameira é editor na Aleph, especialista em ficção científica, historiador e autor do quadrinho Garota Galáctica.
**O texto acima faz parte do segundo fascículo da mostra Fronteiras Finais, ciclo de cinema organizado pela Aleph, Projeto Replicante e CineSesc, que celebra a chegada do homem à Lua e faz uma contagem regressiva para o aniversário de 50 anos do feito.
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