O humor e a ascensão da extrema direita

O humor é essencial à vida, é hora de virar o jogo e combater o seu uso reacionário para enfim trazê-lo de volta a seu lugar natural

Imagem: Reprodução
por Alexandre Lessa da Silva

O humor exerceu, e ainda exerce, um papel fundamental para o crescimento da extrema direita no mundo, inclusive no Brasil. Daí, a necessidade de uma análise um pouco mais profunda de como o humor serviu como uma espécie de catapulta para o crescimento das principais lideranças desse espectro político. Dessa forma, este texto caminha na busca de uma demonstração da importância do humor como ferramenta capaz de quebrar os limites civilizatórios até então erigidos, sempre levando em conta os exemplos empíricos de tal prática.

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A relação entre a comédia e a política não é nova. Desde a Antiguidade Clássica, pelo menos, o humor tem um papel fundamental para a crítica política. Aristófanes (446-386 a.C.), durante o período democrático de Atenas, já usava suas peças como instrumento de crítica política (1). Em ‘As vespas’ (2), por exemplo, o autor faz uma crítica à democracia ateniense e seu sistema de tribunais formado por cidadãos pagos para comparecer às sessões e que, na visão de Aristófanes, só favorecia a elite política, prejudicando, assim, o próprio povo ateniense. Vale aqui lembrar que Aristófanes só foi capaz de fazer essa crítica em função do regime democrático de Atenas que, apesar de todas as suas limitações, especialmente no que diz respeito ao conceito de ‘cidadão’, era muito mais livre que as alternativas do Período. Uma prova disso é Menandro (342/41-290 a.C.), maior representante da nova comédia grega, que, segundo alguns comentadores, apresenta no máximo alguns sinais de sua preferência política em seus escritos, uma vez que suas peças não abordam essa temática (3). Certamente, uma das razões pelo desinteresse político no escopo do teatro da época é o domínio macedônico, isto é, a força do império de Alexandre, o Grande, e dos governadores macedônicos de Atenas. Nesse período, não havia espaço para críticas políticas, posto que Atenas já não mais vivia a liberdade democrática.

No tocante à crítica da comédia e, consequentemente, do humor, ela também é praticamente tão antiga quanto a própria comédia. Aristóteles (384-322 a.C.), em sua Poética, afirma que a diferença entre a tragédia e a comédia é que “procura esta imitar os homens piores, e aquela, melhores do que eles ordinariamente são” (4). A comédia é descrita, portanto, pelo estagirita, como uma imitação de “homens inferiores”, em especial no que diz respeito ao torpe, ridículo, ao que é disforme (5), levando, assim, à sensação de superioridade em relação àqueles que são imitados. O que há, portanto, é um rebaixamento da figura que é alvo do humor, algo extremamente útil para os políticos da extrema direita no Brasil e no mundo, uma vez que faz parecer que são pessoas do povo, os aproximando, assim, da visão de mundo (Weltanschauung) de boa parte dos eleitores, em especial aqueles cujos preconceitos e princípios reacionários têm papel fundamental em suas vidas.

Martina Kessel afirma que “o humor é um importante meio para negociar a identidade e o pertencimento” (6). O humor ajuda a dar unidade a uma sociedade, democrática ou autoritária, por ser uma prática cultural que ordena e organiza, como demonstra Kessel. Dessa forma, ela é uma prática compartilhada que pode ser usada para estruturar uma sociedade dentro de um determinado caminho. Para exemplificar o que foi afirmado, a autora cita o exemplo de vários artigos que foram escritos para desvendar o papel do humor na Alemanha, na primeira metade do século XX, para produzir o aumento intolerante das fronteiras sociais (7). Assim como o humor se tornou uma prática de exclusão na Alemanha de Hitler, os programas humorísticos brasileiros imediatamente anteriores à campanha para eleição presidencial de 2018 ajudaram a propalar as ideias preconceituosas do candidato do PSL que viria a se eleger. De maneira jocosa, esses ideais anti-humanistas começaram a ser despertados numa população conservadora e que mal tinha começado a conviver com uma visão de mundo mais atual. Falas aparentemente engraçadas sobre raça, orientação sexual e outros temas ajudaram a retirar o manto sacralizado por um discurso liberal e de esquerda, permitindo que esses temas voltassem, dessa vez apoiados por um discurso de ódio potencializado por humor grotesco.

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Para Schopenhauer, o riso é proveniente da incongruência repentina entre um conceito e um objeto, o que gera um inesperado paradoxo. Ocorre, portanto, um desalinhamento do conceito racional em relação ao objeto sensível (8). Ao interpretar Schopenhauer, Ronald F. Atkinson defende que essa explicação também traça a diferença entre sagacidade e loucura (9). Assim, quando Sartre conta a história de um homem que saltou na água para abrigar-se da chuva é algo sagaz e bem humorado, ao passo que Dom Quixote, quando confunde moinhos de vento com gigantes, é um exemplo de loucura do personagem. Esse limite entre a sagacidade e a loucura, esse paradoxo inesperado, esse “relaxamento geral das regras do raciocínio”, como definiu Bergson (10), colaborou para a perda do medo racional de uma ditadura. Afinal, como um bufão poderia ser perigoso (11)? É o que ocorre quando um determinado pastor, durante a campanha para a eleição presidencial de 2018, apresenta Bolsonaro aos fiéis como sendo uma coisa louca, fraca, vil, desprezível, descartável e sem importância. Com o candidato bufão de pé, com um olhar sério e perdido, sendo transformado em um objeto que é, ao mesmo tempo, digno de deboche e adoração.

Não é à toa que Giuliano Da Empoli, em seu Engenheiro do Caos, obra dedicada às táticas da extrema direita para subverter a democracia, começa com uma citação de Woody Allen e uma visita de Goethe a Roma durante o período de carnaval, “a festa que tem por hábito virar o mundo de cabeça para baixo” (12). Ligando humor e Big Data, Empoli conta a história do Movimento 5 Estrelas na Itália, país em que toda essa nova experiência de uma nova-velha direita começou. Livorno, cidade em que nasceu o Partido Comunista italiano, também viu nascer o 5 Estrelas, um movimento apresentado como uma busca pela democracia direta através da internet, liderado por figuras antissistema. Dessa maneira, Beppe Grillo, um comediante italiano, foi escolhido para liderar o movimento. Como uma primeira experiência, o Movimento 5 Estrelas não pode ser caracterizado como um partido de extrema direita, mas abriu as portas para esse novo tipo de política e para uma vitória da extrema direita, uma vez que a grande maioria de seus eleitores sempre preferiram a coligação com a Liga Norte, partido de extrema direita de Matteo Salvini. Com a chegada de Giuseppe Conte, em 2018, ao cargo de primeiro-ministro italiano, um desconhecido professor universitário, o Movimento 5 Estrelas e a Liga Norte chegam ao poder, pois são eles que comandam através de Conte. Conte, chamado por Empoli de ‘Mister Chance’, personagem de Peter Sellers em Muito além do jardim, é um homem deslocado e trapalhão. Começa seu governo tendo seu currículo desmentido por uma série de instituições, mas isso não foi capaz de abalá-lo. Assim, Conte toma como vice Matteo Salvini e como vice-presidente do Conselho e ministro da Indústria e Trabalho, Luigi di Maio, uma liderança do 5 Estrelas de 30 anos e que, antes de ser deputado, contava apenas com a experiência de guia do estádio San Paolo de Nápoles, conforme afirma Empoli. O carnaval e o humor comandam a Itália, mas pelo menos Luigi di Maio não conta em seu currículo com a experiência de ter sido chapeiro nos Estados Unidos.

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Como diz Empoli, “no mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo”. Entretanto, nada disso é feito sem propósito, uma vez que os ideólogos de extrema direita sabem que o humor pode reforçar valores e pontos de vista dominantes na sociedade (13) e, assim, pode ser usado como ferramenta reacionária que aprofunda os valores mais reacionários. Como demonstra Lacan em seu Seminário V (14), o humor é da ordem do real e, portanto, está além das fronteiras do discurso racional. O humor choca e apresenta uma realidade nua, crua, sem intermediações; é o impossível que bate à porta. Assim, como Freud coloca (15), a piada tendenciosa tem o papel de fazer aflorar pensamentos reprimidos oriundos do inconsciente e, com isso, dar liberdade ao que foi recalcado. O problema, aqui, é que muitas vezes esse recalcado pode exprimir algo muito perigoso para a sociedade.

Bakhtin, por exemplo, já sabia a importância do humor e do riso para a cultura popular. Ao analisar a cultura popular da Idade Média e da Renascença, o autor russo a tratou “como uma cultura de carnaval ou do riso”, em oposição a uma “cultura do agelastoi, ou seja, das pessoas que nunca riam e que até odiavam o riso”, como aquela do clero (16). O riso, como observa Eagleton, é um paradoxo, um choque entre corpo e alma: “embora o riso em si seja puramente uma questão de significante – mero som sem sentido – ele é socialmente codificado … é carregado de significado cultural” (17). Assim, o projeto da extrema direita teve a capacidade de perceber o valor do humor para a cultura popular e, ao mesmo tempo, soube explorá-lo como o paradoxo que rompe barreiras sociais e, especificamente, da linguagem e da argumentação racional. Quando um presidente pergunta, em pleno carnaval, o que é golden shower, ele não faz isso por acaso, mas seguindo as orientações traçadas por uma equipe de ideólogos. Essa mesma equipe sabia da oportunidade que programas humorísticos representavam para construir a única via possível para viabilizar um candidato que é quase incapaz de falar. Dessa maneira, um bufão foi mitificado.

Antes das eleições de 2018 muitos programas humorísticos ou com veia cômica foram usados para destruir Lula e Dilma e promover Bolsonaro. Conscientes ou não desse objetivo, programas da TV brasileira ridicularizavam e atacavam com um humor rasteiro a presidenta Dilma e, ao mesmo tempo, transformavam Bolsonaro na figura do bufão, comentada aqui, criando uma aura mítica ao seu redor. Assim, permitiram a volta do orgulho de ser preconceituoso e o prazer de diminuir quem está abaixo de você. Agindo dessa forma, propiciaram um apagão argumentativo, uma vez que a ordem simbólica perdeu valor e o discurso racional sua força. O caminho, dessa maneira, foi aberto para a blindagem futura da figura de Bolsonaro, já que não há como discutir com um bufão.

O humor, portanto, foi capaz de trazer à tona os piores valores de boa parte da sociedade e, com isso, dar suporte ao discurso do ódio defendido através de uma figura cômica e grotesca como a de Bolsonaro. Daí, não é por acaso que Bolsonaro age como um piadista sem graça, posto que só dessa forma ele pode, ao mesmo tempo, atacar e defender, atacando com suas péssimas piadas e defendendo, por sua vez, dizendo que foi apenas uma brincadeira.

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O humor é essencial à vida e pode, como vários humoristas vêm demonstrando, ser uma ferramenta muito útil para a verdadeira crítica social e política. Por isso, é hora de virar o jogo e combater o seu uso reacionário para enfim trazê-lo de volta a seu lugar natural.


NOTAS

(1) HOLM, Nicholas. Humor as politics: the political aesthetics of contemporary comedy. Londres: Palgrave Macmillan, 2017. p. 59.

(2) ARISTÓFANES. As vespas: uma comédia grega. Trad. Mário da Gama Kuri. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

(3) SCAFURO, Adele C. Menander. In: FONTAINE, Michael; SCAFURO, Adele C. (ed). The Oxford handbook of greek and roman comedy. Oxford/ Nova York: Oxford University Press, 2014. P.219

(4) ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003. p. 105 (1448 a16).

(5) Ibid. P. 109 (1149 a32). É interessante, ainda, a afirmação, nesse mesmo trecho, que a máscara cômica é feia, disforme e que não tem a expressão de dor.

(6) KESSEL, Martina. Introduction in Landscapes of Humour: The History and Politics of the comical in the Twentieth Century. In: KESSEL, Martina; MERZIGER, Patrick. The politics of humour: laughter, inclusion, and exclusion in the twentieth century. Toronto: University of Toronto Press, 2012. P.3.

(7) Id, ibid.

(8) SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. P. 109, parágrafo 13.

(9) ATKINSON, Ronald F. Humour in philosophy. In: CAMERON, Keith (apresentador). Humour and history. Londres: Intellect Books, 1993. p. 17.

(10) BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 140.

(11) Sobre o limite entre racionalidade e irracionalidade em que o riso é encontrado: ALBERTI, Verena. O riso e o risível: na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 8 e ss.

(12) EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do Caos. Trad. Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2019. Ed. Eletrônica.

(13) TSAKONA, Villy; POPA, Diana Elena (eds.). Studies in political humour: In between political critique and public entertainment. Amsterdam/ Filadélfia: John Benjamins, 2011. P.2.

(14) LACAN, Jacques. O seminário – livro V: as formações do inconsciente. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

(15) FREUD, Sigmund. Jokes and their relations to the unconscious in Freud. Complete works. Disponível em: http://staferla.free.fr/Freud/freud.htm (p. 684-771).

(16) GUREVICH, Aaron. Bakhtin e sua teoria do carnaval. In: BREMMER, Jan; ROODENBURS, Herman. Uma história cultural do humor. Trad. de Cynthia Azevedo e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2000. P.47.

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(17) EAGLETON, Terry. Humor. Trad. Alessandra Borrunquer. 1.ed. Rio de Janeiro: Record, 2020. Ed. eletrônica.

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