O movimento surgiu ao mesmo tempo em que a luta contra a ditadura militar ganhava força, mas ao contrário dos grevistas e dos estudantes, os punks se organizavam em gangues

por Ivan Conterno
O texto abaixo é a sétima parte da série “Grito de ódio: uma breve história do punk“.
Em 1977, o apoio do governo dos Estados Unidos às ditaduras na América Latina tornou-se insustentável. O ciclo de crescimento do capitalismo permanecia estagnado havia três anos. As revoluções em Guiné Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique e Portugal davam o impulso que os brasileiros precisavam para enfrentar a ditadura militar. Para combater a crise política, os militares brasileiros propunham uma “distensão” lenta e gradual.
Junto a isso, as greves operárias no ABC e os levantes estudantis colocavam o regime em xeque. Nas periferias, a inflação comia solta e jogava a população na miséria. Essa efervescência política em conjunto com as novidades musicais vindas de fora inspiravam os adolescentes mais revoltados.
A onda punk que estourava na Inglaterra e nos Estados Unidos estava se espalhando para o resto do globo. Não demorou muito para que ela despertasse o interesse dos jovens nos subúrbios paulistanos. Questionado, Chico Buarque disse certa vez: “se o punk é o lixo, a miséria e a violência, então não precisamos importá-lo da Europa, pois já somos a vanguarda do punk no mundo inteiro”.
O rock n’ roll nos anos 70
Em 1974, a Globo começou a exibir nos sábados à tarde shows de grupos como Black Sabbath, Pink Floyd, Led Zeppelin, Bad Company, The Who, Sparks, Triumvirat, Status Quo, David Bowie, Greenslade, etc. O rock’n’roll tocava na rádio e era popular entre os jovens.
Em 1977, a revista Pop, que trazia matérias sobre rock’n’roll, lançou a coletânea A Revista Pop Apresenta o Punk Rock, com músicas dos Ramones, dos Sex Pistols, das Runaways, do London e do Ultravox, entre outras. Os adolescentes que curtiam a rebeldia e a estética dos anos 50, muito do rock ostentação dos anos 70, logo se identificaram. Eles só queriam vestir suas jaquetas de couro e ouvir bandas como Stooges e MC5. O punk rock chegou na hora certa.
Em 1977, Kid Vinill tinha conhecido o punk rock e resolveu montar sua primeira banda, Verminose, que ainda era mais inspirado em rockabilly do que no própio punk rock, embora assumisse uma postura punk. Em 1979, ele também estreou o programa Rock Sanduíche na rádio Excelsior dedicado ao punk rock e à new wave. O nome do apresentador era uma homenagem a Kosmo Vinyl, agenciador do Clash, e Kid Jensen, locutor da BBC.
O movimento nas capitais
No Rio de Janeiro, os punks se concentravam na zona norte, nos subúrbios e favelas da região. A banda Coquetel Molotov começou a tocar no Méier e atraiu jovens cariocas que adotavam visual agressivo e ideologia anarquista. Em outras cidades também surgiram projetos punks na mesma época, como em Brasília, com os filhos dos diplomatas que voltavam da Inglaterra, e em Curitiba, com o grupo Carne Podre. Nenhuma dessas cidades, no entanto, viu um movimento tão significativo e original quanto o surgido em São Paulo.
As primeiras bandas paulistanas, AI-5, Condutores de Cadáver e Restos de Nada, surgiram em 1978. A partir do início dos anos 80, os integrantes delas formaram outros grupos, como os Inocentes, Desequilíbrio, Estado de Coma e Hino Mortal. O programa de Kid Vinil influenciou centenas de jovens das periferias a criarem suas próprias bandas.
O movimento surgiu ao mesmo tempo em que a luta contra a ditadura militar ganhava força. Mas, ao contrário dos grevistas e dos estudantes, os punks se organizavam em gangues, muitas delas inspiradas no filme Warriors, lançado no início de 1979. Essa foi, de muitas maneiras, uma peculiaridade. Segundo o escritor Antônio Bivar, o movimento punk de São Paulo, embora seja uma continuidade, não foi uma simples cópia importada do punk de fora.
Em São Paulo, os punk se vestiam com jaquetas de couro, calça jeans, coturnos e muitos botons. Eram, em sua maioria, jovens que trabalhavam como office boys em bancos, escritórios e lojas. Na região do ABC, eles eram operários nas fábricas. Muitos estavam desempregados devido à crise que assolava o mundo e aproveitavam para deixar o cabelo moicano crescer. Eles se reuniam na Galeria do Rock, onde, sem grana para comprar os LPs importados, compravam fitas gravadas dos discos.
Em 1982, mais de 20 bandas já tocavam nas periferias. Naquele ano foi lançado o Grito Suburbano, o primeiro disco do movimento punk no Brasil, com as bandas Olho Seco, Inocentes e Cólera. Nessa mesma época, surgiram os primeiros zines cobrindo o movimento e lançando manifestos: Factor Zero, Vix Punk e SP Punk.

Enquanto isso, o Estadão publicava uma série de reportagens retratando os punks como assaltantes violentos e discípulos do demônio. Clemente, dos Inocentes, então escreveu uma carta respondendo as acusações que foi publicada e chamou a atenção de muita gente para uma cena pensante. O escritor Antônio Bivar, que conhecia a cena punk inglesa, resolveu se encontrar com os punks de São Paulo e acabou se engajando na promoção do movimento. Foi nesse reboliço também que Fernando Meirelles gravou “Garotos do Subúrbio”, uma obra prima do documentário nacional.
“Droga é coisa de hippie”, declarou Herman, dos Suburbanos, numa entrevista para a revista Veja. Naquela altura, os punks estavam preocupados em limpar a própria imagem e atendiam aos chamados da imprensa. Foram concedidas dezenas de entrevistas naquele ano de 1982. A surpresa é que, embora muitos não tivessem nem mesmo concluído o ensino básico, todos opinavam sobre política e problemas sociais. Muitos defendiam o voto nulo, mas muitos também estavam fechados com o PT, que surgia com força no movimento pelo fim da ditadura.
Para eles, a canção de protesto brasileira era muito elitizada e voltada para o mercado. Os artistas da MPB estariam romantizando a pobreza. Os temas das músicas punks também eram mais urbanas, diferindo bastante da tendência regionalista e de exaltação às belezas naturais que permeava a arte brasileira havia décadas. “Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira; para pintar de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer” escreveu Clemente, dos Inocentes.
Em 1982 também foi lançado o primeiro disco de uma única banda punk brasileira, o clássico Violência e Sobrevivência do grupo Lixomania. Uma das canções, para a surpresa de todos, falava sobre amor. A letra fala sobre um cara que encontra uma mulher na rua, dá uns amassos e acaba gozando. Tikinho, guitarrista da banda, afirmava que o visual agressivo dos punks era uma maneira de chamar a atenção para os problemas da juventude: “se eu fosse mais um office boy da rua 7 de Abril, você não estaria me entrevistando”.
Bivar então fez uma matéria sobre os punks para a Gallery Around. Era uma publicação voltada para a alta sociedade, mas que tinha um espaço para falar sobre cultura. Era a revista do clube Gallery, um dos lugares mais chiques de São Paulo. Os Inocentes tocaram no lançamento da edição e os punks ficaram no meio da burguesada bebendo e curtindo. Depois de algum tempo, eles foram expulsos. Dali a pouco entraria a comitiva do presidente Figueiredo e a bagunça pegaria mal. “Eles são os novos existencialistas”, disse um intelectual presente no evento.

Pouco depois, Bivar conseguiu um espaço para o primeiro festival punk brasileiro, O Começo do Fim do Mundo. Foram dois dias seguidos com 20 bandas tocando, exposição de fotos e desenhos, projeção de filmes e trocas de zines no Sesc Pompeia. Vários punks fizeram o corte de cabelo moicano para essa ocasião, mas acabaram perdendo o emprego. Na semana seguinte, com tanta pressão da sociedade, todos já estariam com a cabeça raspada.

Correspondência internacional
Os punks paulistanos também trocavam material com os finlandeses, o que influenciou a sonoridade das bandas daqui, assim como os brasileiros inspiravam os punks de lá. Um caso curioso foi um disco da banda holandesa Speedtwins, que foi enviado por engano por uma gravadora ao Brasil. O LP foi amplamente copiado para fita e a batida influenciou quase todas as primeiras gravações das bandas paulistanas.
Os discos brasileiros de punk rock das bandas paulistas tornaram-se também populares na Finlândia nos anos 1980. Poucos anos mais tarde, surgiu um grupo de Helsinque, o Força Macabra, que só cantava em português. A correspondência internacional aumentava vertiginosamente. O finlandeses apoiavam a luta contra a ditadura dos brasileiros. Da mesma forma, os brasileiros davam apoio aos finlandeses no “Movimento pela Liberação do Pênis“.
“Para nós, as poucas fitas e vinis brasileiros que tínhamos soavam extremamente apaixonados, com muita raiva, e o visual era muito legal também. Acho que os problemas cotidianos de um país de terceiro mundo, com corrupção e ainda sob uma ditadura militar, formavam um coquetel muito explosivo musicalmente. E, pelas cartas que trocávamos, víamos que os brasileiros também estavam loucos pelo hardcore finlandês”, afirmou um integrante do grupo finlandês.

O apogeu
Em 1983, ao invés de lançar um disco sozinho, a banda Cólera convidou mais 3 bandas para gravarem a coletânea Sub. Além do Cólera, aparecem no disco as primeiras gravações das bandas Ratos de Porão (ainda sem o Gordo), Psykóze e Fogo Cruzado. Esse disco é tido como o principal registro daquela época.
Em 1985, os Garotos Podres, uma banda do ABC, conseguiu lançar o próprio disco, Mais Podres do que Nunca. Como ainda a ditadura estava em pé, eles precisavam enviar as letras para o Departamento de Censura Federal, que censurou as músicas “Johnny” e “Vou Fazer Cocô”. Outras duas músicas tiveram as letras alteradas de propósito para burlar a censura: “Papai-Noel Filho da Puta”, que virou “Papai-Noel Velho Batuta”, e “Maldita Polícia”, que virou “Maldita Preguiça”. A última música censurada no Brasil também foi deles, em 1988. Com a promulgação da nova Constituição, entretanto, a censura caiu.
Em 1986, Branco dos Titãs leva os Inocentes para gravar na Warner. Eles foram a primeira banda punk brasileira a gravar numa multinacional. A banda fez em seguida uma turnê pelo Brasil, com um som mais sofisticado que o das primeiras gravações.
No final dos anos 80, muitas das primeiras bandas deixaram de existir e o movimento se enfraqueceu em São Paulo. Isso deu lugar para o florescimento retardatário nas demais regiões do país. Os Replicantes, de Porto Alegre, lançam o primeiro disco em 1986. Em 1988, surgem os Devotos do Ódio, em Recife. Dali pra frente, o punk rock brasileiro ganhou vida própria, com uma banda influenciando a próxima e diversos festivais pelo interior do país.
Na próxima semana, publicaremos o último capítulo da série e, na quarta-feira seguinte, teremos uma roda de conversa gravada com nomes de peso sobre o tema na estreia do podcast d’O Partisano. Até semana que vem.