O filme de Jodorowsky é também um dizer sim, a ausência do texto nos impede de negar as imagens, portanto, digerimos o filme

por Emílio Pio
A Montanha Sagrada (1973), filme de Jodorowsky, é uma caricatura mística, assim como uma boa parte da obra de Nietzsche, com suas afirmações e verdades profundas, uma espécie de caricatura da existência. Entre tantos símbolos é preciso escolher alguns para poder falar sobre a obra de Jodorowsky e Nietzsche. Em uma das cenas do filme há a figura de uma mulher, um sábio e um camelo, esse símbolo está presente tanto no filme como em Nietzsche, esse ser curvado que atravessa o deserto. Em Nietzsche a figura do Camelo faz parte das três Metamorfoses, um processo de transformação. As obras possuem diversos objetos em comum como a figura da montanha, a escalada, a superfície, as grandes atmosferas.
O filme de Jodorowsky é também um dizer sim, a ausência do texto nos impede de negar as imagens, portanto, digerimos o filme, seus símbolos, a sua sequência, a sua linguagem, a ausência de voz, mas a presença dos ruídos.
O Sol já havia se posto há muito” — falou ele por fim; “o prado ? Para quê? Onde? Para onde? Como? Não é uma loucura viver ainda? — A meus amigos, é a noite que assim me interroga. Perdoai minha tristeza! É noite alta: perdoai-me porque a noite se fez alta! (Assim Falou Zaratustra)
A obra de Nietzsche Assim Falou Zaratustra traz como figura principal um sábio representante do Zoroastrismo, uma religião fundada na Pérsia, uma doutrina, com um profeta, que divide o mundo entre bem e mal, e a disputa entre eles, composto com outros elementos como a ideia de paraíso, a ressurreição, o juízo final e a vinda de um messias.
Zaratustra é a profecia em verbo.
Na obra de Jodorowsky o reino humano é um espaço de disseminação de poder e está sob a influência dos seres mais poderosos do universo. Esses seres são eleitos para disputar o controle do universo e escalar uma montanha de purificação, uma jornada sagrada. A atividade humana é uma caricatura, uma brincadeira, aos olhos distantes dos poderosos de outros planetas. Os humanos são influenciados, estão o tempo todo brincando, seguindo tendências, tingindo o mundo de vermelho, mergulhados na ilusão de Maia, aliás o tudo é Maia, ou o nada. E o Espírito de gravidade é uma espécie de demônio.
Ó minha alma, ensinei-te a dizer “hoje”, assim como “algum dia” e “antigamente”, e a dançar tua dança sobre todos os aqui, lá e acolá. Ó minha alma, resgatei-te de todos os cantos, e espanei a tua poeira, tuas aranhas e penumbras. Ó minha alma, lavei-te das pequenas vergonhas e das virtudes embaraçosas e convenci-te a apresentar-te nua diante dos olhos do sol. Com a tempestade chamada de “espírito”, varri com meu sopro teu mar ondulante, soprei para longe todas as nuvens, estrangulei até o estrangulador chamado “pecado”. Ó minha alma, dei-te o direito de dizer Não como a tempestade e dizer Sim como céu aberto diz Sim: agora permaneces calma como a luz e passas através de tempestades de negação. Ó minha alma, restaurei tua liberdade sobre coisas criadas e incriadas: e quem conhece, como tu conheces, os prazeres das coisas do futuro? (Assim Falou Zaratustra)
Do Camelo ao Leão, o dizer sim está presente nas duas obras, é um trajeto que se abre e se alarga, com um eterno retorno, caminhando entre as trilhas da montanha, até perceber que há como esquecer de si, apagar as ilusões, até encontrar o pico e o nada, a atmosfera mais alta das nuvens e do vazio, a imagem da divindade ou do poder universal ao se ver diante do espelho.
Até que o Camelo se torna Leão, e afirma, diz sim. E faz novamente o seu retorno à realidade, ao nada, ao vazio. Quando a potência está diante do nada.