Após dois anos de pandemia, o futuro incerto da sétima arte agora baila sincronizado com o inseguro futuro do país

por Henrique Nunes
Era novembro de 2020. A pandemia, acreditavam os oportunistas, estava perto do fim. Ônibus lotados de desamparados, ruas abarrotadas de esperançosos em busca do pão amassado pelo diabo nosso de cada dia. Era a sopa de ossos oferecida no cardápio da multidão ensandecida pela vida. Ensandecida por viver.
Isolado na última fila das prioridades, o cinema saboreava um balde de incertezas mesmo com o anúncio da reabertura gradual do comércio e equipamentos culturais. Qual seria o futuro da sétima arte? De onde tiraríamos dinheiro para assistir a um filme na tela grande num país em que a maioria não tem grana sequer para um prato de comida? Para piorar, não havia garantia alguma (sanitária ou política) de que sobreviveríamos antes dos créditos finais.
Mesmo assim, decidi ir ao cinema. Shopping Frei Caneca. Tenet. Christopher Nolan. Eu, dois ou três outros casais. Chorei ao entrar. Sorri ao sair. Nem tanto pelo filme, mas pela motivação de ter participado de um ritual que antes me era tão banal. “Obrigado, Doria”, pensei, num vacilo silencioso jamais verbalizado.
Menos de um mês depois, perdi um tio para o Covid, num sinal de que a guerra ainda estava longe de acabar. Não demorou muito para que o cerco voltasse a se fechar – bem como todo o comércio e os equipamentos de cultura. Não havia tempo para lamentações. O choro estava todo concentrado nas vidas perdidas – do meu tio, de figuras importantes da arte nacional, de milhares de anônimos que jamais tiveram a oportunidade de ir ao cinema.
De lá para cá, vi dezenas de filmes e séries no auto-isolamento. Era o “fique em casa” pequeno burguês atendendo aos meus privilégios. Chorava e sorria na ficção ao mesmo tempo em que aumentava a minha indignação com o projeto de exterminação em massa articulado por quem hoje comanda o país. “Matasse a cultura, mas deixasse o povo brasileiro vivo, seu canalha!”.
O cinema, desde então, tornou-se uma paixão pouco a pouco deixada de lado, escanteada a uma condição futura tão incerta quanto dispensável. Não havia mais tempo para sonhar in loco. Era a nossa vida que estava em jogo. Era, mais do que tudo, a minha saúde mental devastada pela pandemia que deveria receber toda a minha dedicação.
Foram 12 meses de batalhas a perder de vista. Ainda não vencemos Bolsonaro, ainda não vencemos por completo o coronavírus. Eu, tampouco, venci os meus demônios internos. Mas, por muitas razões, eu voltei a sorrir. Voltei a sorrir porque a vacina se espalhou – ainda que tardia. Voltei a sorrir porque sinto que estamos matando o vírus-presidente, devagar e sempre, como devem ser mortos os piores vilões da história. Voltei a sorrir porque me reencontrei com as pequenas felicidades do cotidiano.
Foram outros 12 meses para que eu pudesse me reencontrar com uma sala de cinema. Não me recordo de, na vida adulta, ter ficado longe tanto tempo assim. Em quase dois anos, duas únicas vezes. E foi justamente neste Dia de Finados que eu decidi sair de casa para me certificar de que, sim, o cinema estava vivo.
Novembro de 2021. Cine Augusta. Filme árabe. O Homem que Vendeu a Sua Pele. Eu, minha amiga Ana, mais uma dúzia de espectadores com diferentes expectativas. Não chorei ao entrar. Mas novamente sorri ao sair. Nem tanto pelo filme, mas por saber que poderei banalizar este ritual a partir de agora. “Obrigado, Ana”, verbalizei entusiasmado, por ela ter compartilhado comigo tamanha experiência.
Ser feliz, como bem disse Sérgio Vaz, não quer dizer que não devemos estar revoltados com as coisas injustas que estão ao nosso redor. E sorrir enquanto lutamos, é uma forma de confundir os inimigos. No cinema ou não, sorrirei com o sorriso dos que estão vivos em meio a tantas tragédias. E isso, pelo menos por enquanto, já é o bastante.