Marighella: o filme errado na hora certa

É difícil, até mesmo triste, aceitar que uma obra que sofreu tanto para nascer — e ainda seja atacada por quem nem sequer o assistiu ou assistirá — não esteja à altura das expectativas

Imagem: O Partisano
por Henrique Nunes

Marighella é um caso raro na cinematografia nacional onde os problemas anteriores ao seu lançamento tornaram-se adereços abonatórios. A estreia de Wagner Moura na direção tornou-se, para o bem ou para o mal, uma saga maior que o filme.

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É um caso raro, mas não único. A exemplo do que aconteceu com Chatô, o épico involuntário de Guilherme Fontes que demorou quase duas décadas para sair do papel, Marighella corre o risco de ser lembrado mais pelas histórias de bastidores do que pela obra.

Para além das sempre hercúleas tarefas de captar recursos por aqui, tanto Chatô quanto Marighella tiveram (ainda que com durações bastante díspares e por razões diferentes) uma lista imensa de problemas até serem concluídos, com a diferença de que o primeiro foi acusado de captar recursos demais (numa trama que migrou para as páginas policiais) e o segundo quase não conseguiu ser finalizado por puro boicote.

As semelhanças param por aqui. Isso porque o filme de Moura se difere do de Fontes principalmente no que diz respeito ao contexto político do país: se Chatô começou a ser concebido antes de a Lei Rouanet se transformar em munição de ataque à “invasão comunista”, Marighella entrou em cena justamente quando a onda conservadora — orquestrada pelas elites econômicas — já havia tomado o poder.

A cinebiografia do revolucionário baiano, portanto, aparece não como um instrumento de legitimação da narrativa vigente, mas como contraponto a ela — bem provável que, fosse lançado durante o governo Lula ou Dilma, a chiadeira seria até maior. Diante das circunstâncias, o filme passou a ser taxado como uma afronta, por assim dizer, ao discurso hegemônico daquele Brasil que apostou todas as suas fichas num capitão reformado eleito justamente por defender a morte dos Marighellas de ontem e das Marielles de hoje.

Quando surgiu a notícia de que Moura se aventuraria na direção com a história de Marighella, inevitavelmente o cinema entrou para o campo da política. A polarização ganhou novos contornos e houve até ameaça de invasão no set de filmagens. Depois, passaram a aventar a hipótese de que a obra sequer seria concluída.

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O capítulo seguinte foi a denúncia de que a Ancine, aparelhada pelo bolsonarismo, recusava-se a colaborar com a conclusão do filme, o que jogou-o no centro do debate nacional. Enquanto favoráveis e contrários se digladiavam, jornais do mundo todo noticiaram o revés e a maioria apontava para a clara censura do órgão.

Isso tudo depois de Marighella já ter sido exibido em ao menos 30 festivais, inclusive o de Berlim, e dividido opiniões não pelo personagem, mas pela maneira como é retratado na tela. “É um filme que tem lado”, rebatia Moura diante de inúmeras acusações de mitificar ainda mais Marighella (sobretudo por escolher um ator negro e não mestiço) e transformá-lo numa caricatura tão heroica quanto superficial — pontos que, em partes, não concordo.

Por aqui, o vazamento da suposta cópia final só aumentou as expectativas para vê-lo nos cinemas — não se sabe ao certo quantas pessoas já assistiram a sua versão pirateada, mas certamente o estrago no faturamento foi (e será) tão grande que nem Moura, nem ninguém envolvido em sua concepção espera arrecadar cifras astronômicas agora que o filme entra oficialmente em cartaz.

Marighella estará nos cinemas a partir do dia 4 de novembro após incontáveis adiamentos sem a vantagem de alimentar muitas expectativas em boa parte do público. Tudo indica que ele apenas “se banque” nas bilheterias e, no máximo, cumpra a sua jornada com dignidade.

Nesta semana que antecede o seu lançamento, as milícias digitais bolsonaristas mais uma vez estão se organizando para derrubar as avaliações sobre o filme em sites agregadores de críticas como IMDb. Nada de novo sob o sol.

Diante de todos os percalços, a tendência é que o espectador ligado aos campos progressistas “perdoe” o fato de, sim, Marighella ser um filme bem mediano — para não dizer ruim. É difícil, até mesmo triste, aceitar que uma obra que sofreu tanto para nascer — e ainda seja atacada por quem nem sequer o assistiu ou assistirá — não esteja à altura das expectativas.

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Não se trata apenas de “ter lado”. Até mesmo quem tem apreço pela história do guerrilheiro deve ficar entediado em boa parte das 2h35 de filme. Depois de um começo arrebatador, a obra se perde entre o documental e o drama político, sem acertar o tom em nenhuma das opções. Aliás, seria menos trágico no sentido estético se Marighella, o filme, fosse uma caricatura voraz e não uma figura que não se decide entre ter a verborragia de um teórico e a combatividade de um guerrilheiro nato.

Ele poderia, claro, ser as duas coisas sem alterar o interesse do espectador. Poderia ainda renunciar a qualquer didatismo e oferecer um personagem que exigisse conhecimento prévio. Acontece que, quando se pretende levar história real para as telas, é inevitável dosar uma certa romantização com a verossimilhança. Marighella tinha, a meu ver, que ser mais o centro das atenções, no que discordo de parte das críticas internacionais.

Nem a relação com o filho, que amarra a temporalidade da trama, parece nos comover a ponto de não bocejar. Vibramos muito pouco ou quase nada com as decisões do personagem; quando o contestamos, fazemos com uma certa desconfiança: “Então foi ‘apenas’ isso?”, era a reação que eu tinha o tempo todo.

Lembremos de Capitão Nascimento que, mesmo sendo oficialmente uma caricatura de extrema-direita, foi tão bem construído como personagem que é impossível passar ileso a ele — goste-se ou não do que faz. Curioso pensar que Moura, atrás das câmeras, não conseguiu extrair a mesma visceralidade de um ator experiente como Seu Jorge, numa prova de que ser um bom ator não lhe garante o crachá de bom diretor. Ele próprio admitiu que a direção é uma aventura ingrata, cansativa e repleta de desafios. O peso da estreia também conta e muito.

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Com todo o respeito que Moura merece, é preciso dizer que poucos são os momentos em que ficamos entregues e boquiabertos com o Marighella da ficção a ponto de nem sequer notar a confusão que se constrói durante quase três horas. Ao desavisado, as perguntas seguintes seriam inevitáveis: teria ele mesmo gritado “Abaixo a ditadura” antes de levar um tiro? Marighella bebia cachaça com um padre enquanto seus compas fugiam, em vão, da morte? Mariguella teria gritado aos reféns de um banco que aquilo não era um assalto e, sim, uma revolução?

As respostas nem são importantes. O fato é que só de as frases serem ditas por um cara que enfrentou a ditadura e botou medo até em agentes da CIA, faz dele um herói quase juvenil, tão pueril quanto inocente.

Tudo bem se Moura mandasse às favas a materialidade histórica e fizesse um filme autoral, imaginativo, poético. Mas ele é, infelizmente, apenas uma rotulação capenga de um “revolucionário”. Ainda assim, devemos defendê-lo pelo fato de ter enfrentado fardo semelhante ao do personagem. Defender Mariguella é defender o cinema nacional. É defender a cultura.

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Tanto Mariguella, o filme, quanto Mariguella, o homem, lutaram contra o sistema e talvez seja isso o que importa. É o filme errado na hora certa.

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