O filme, dirigido por Wagner Moura, demonstra com êxito toda a brutalidade conhecida e presente no meio da luta armada, bem como a atuação positiva do elenco

por Matheus Dato
Nas últimas semanas, os nichos progressistas da internet receberam por diversos meios o filme de Wagner Moura, vazado em circunstâncias ainda não desvendadas. O filme, embora seja de 2019, passou por uma verdadeira odisseia permeada por limitações jurídicas à sua exibição, estreando em diversos festivais europeus antes de chegar ao seu destinatário: o povo brasileiro.
Entre a euforia de alguns, a indiferença de outros e o ódio dos setores fascistas que dominam o Brasil, penso ser necessário tecer uma crítica sobre a obra, que leve em consideração não somente as suas limitações políticas, históricas e ideológicas, mas também os possíveis desdobramentos de uma produção cultural como esta para a luta que se desenvolve no país nesta exata conjuntura.
O velho Marighella
Em primeiro lugar, há que se falar que faz falta uma produção artística que leve em consideração o Carlos Marighella nascido em 1911, poeta, militante do Partido Comunista do Brasil por 30 anos, deputado constituinte de 1946, organizador da luta legal e ilegal em todos os períodos históricos da contemporaneidade brasileira. É certo que o filme de Wagner Moura não possuía como objeto algo como isso e seria injusto lançar a ausência desta abordagem como crítica. Entretanto, falo a respeito desta necessidade por saber que não se pode compreender o Carlos Marighella de 1968 sem compreender o homem do Partido, que levou adiante tarefas burocráticas e pouco românticas. Se submeteu à autoridade do comitê central de sua organização quando ainda era possível fazê-lo, assumiu a função de deputado federal e realizou uma série de muitas outras atividades práticas na luta de classes que são preteridas ao trabalho partidário que, efetivamente, cria as condições de vitória.
O velho Marighella não nasceu com o seu “fura” na mão, nem como comandante da ALN. Tampouco aprendeu sobre marxismo e revolução por intervenção divina; foi a convivência, a práxis e a experiência de trinta anos intensos no PCB que possibilitaram o surgimento de um homem da estatura política e moral de Carlos Marighella.
A visão romântica prevalecente em determinados grupos e setores da esquerda brasileira, especialmente entre os mais jovens. Há uma ideia de que, no fim das contas, “o poder corrompe” e consequentemente, que a militância nos sindicatos, movimentos, partidos e associações de trabalhadores seria burocratizante. Por fim, a concepção de que é tudo uma perda de tempo diante daquela que seria a verdadeira luta, a insurreição armada, não pode trazer nenhuma vitória sequer ao povo brasileiro e não faz avançar em nenhum centímetro o debate necessário de um programa que efetivamente possibilite a tomada do poder pelos trabalhadores.
A obra
Dito isto, passemos à obra de Wagner Moura. O filme é tenso, movimentado do início ao fim e sanguinolento. Em certo sentido, “Marighella” teve êxito em captar na sua própria estrutura narrativa a realidade e o estado de ânimos deste tempo histórico conhecido como os Anos de Chumbo da ditadura empresarial-militar brasileira. Ao espectador, mesmo aquele que desconheça por completo a realidade histórica dos fatos ali narrados, é apresentada a barbárie gráfica da repressão.
Igualmente, a guerrilha urbana também é apresentada em todas as suas contradições, seus erros táticos e estratégicos, suas derrotas pontuais e na violência revolucionária jamais renegada por Marighella e pela Ação Libertadora Nacional. Wagner Moura não hesitou em demonstrar toda a brutalidade conhecida e presente no meio da luta armada. A atuação positiva do elenco tampouco hesita em expor os ódios de uma guerra. A questão é que, apesar das vantagens artísticas do filme esterem claras até este ponto, os problemas políticos são os mais variados.
Embora o filme não apresente o romantismo reacionário e despolitizado que vigora em toda obra produzida no circulo da mídia burguesa, há uma série de ausências, falhas ou excessos, fazendo com que a produção de Marighella esteja aquém dos objetivos políticos de uma obra como essa. A Globo Filmes, que figura no rol das produtoras, é parte do grande conglomerado de mídia da família Marinho, responsável por dar suporte propagandístico, financeiro e de inteligência ao golpe militar em abril de 1964. É de se questionar, portanto, até que ponto as deficiências políticas do filme são falhas dolosas.
Os aspectos políticos deixados de lado
Apesar de verificarmos neste filme a exposição do papel preponderante do imperialismo norte-americano na promoção e manutenção do processo ditatorial do golpe, os agentes da estrutura burguesa do regime passam quase incólumes na produção. Não se vê de maneira expressiva o papel de industriais, latifundiários e mesmo das Forças Armadas, agentes fundamentais das iniciativas de repressão e consolidação do regime fascista de 1964. Salvo nos discursos de Marighella, não aparece qualquer menção importante a estes agentes, dando a entender ao espectador a ideia de que a ALN lutava contra um inimigo não estruturado em um processo sem sujeitos ativos e passivos.
Disto, passamos a outro ponto. O inspetor Lúcio, muito bem inspirado no delegado Sérgio Paranhos Fleury, parece personalizar em si todo o caráter da repressão, ao mesmo tempo em que Marighella é personalizado como a encarnação da luta armada. Embora funcione bem do ponto de vista literário e artístico, esta criação de arquétipos políticos empobrece a narrativa histórica, especialmente na medida em que ela se propõe a combater o revisionismo levado adiante pela classe que exerce o poder, como parece ser o objetivo de Marighella.
A amplitude histórica do filme também é comprometida pela pouca exploração dos personagens secundários. Ao mesmo tempo, uma série de elementos ficcionais são reiteradamente lançadas no filme. Não se fala sobre “o Velho, o Branco” Joaquim Câmara Ferreira e sua magnitude política. Sua participação está resumida, na primeira parte do filme, a uma espécie de linha auxiliar do próprio Marighella. Já em sua cena final, há uma apologia patética a uma suposta vitória dos revolucionários durante uma cena de tortura. O Partido Comunista do Brasil tem a sua citação limitada a todo momento, falseando a importância desta organização para esta luta.
A avaliação coerente do filme passa por fazer justiça ao seu objeto artístico. De toda maneira, Marighella é uma obra que vale a pena ser assistida. O filme possui uma narrativa de qualidade, uma atuação e cenas memoráveis. Do ponto de vista artístico é valoroso, introduz de maneira adequada a discussão e serve para um objetivo propagandístico fundamental: a formação de um imaginário revolucionário que forneça elementos de identificação às atuais gerações de militantes que se veem ameaçados pelo fascismo no século XXI.
Param por aí, infelizmente, os êxitos do filme. Seu caráter político foi sumariamente preterido na produção da obra. Independentemente da obra não ser uma narrativa messiânica e lamuriosa das derrotas de Carlos Marighella e da luta armada, não fornece qualquer indício a respeito dos problemas políticos que, naquela conjuntura, produziram efetivamente as condições de derrota dos revolucionários brasileiros lutando na guerrilha urbana. Mesmo que a história da luta armada seja uma história de derrota real, sua queda deve ser explorada de maneira crítica, e não sentimental.
Nas palavras de Mao Tsetung nós, os comunistas, devemos mover uma luta de duas frentes no âmbito das artes, lutando pela união do político e do artístico de maneira harmoniosa e criteriosa. Nos encontramos ainda distantes de algo assim quando se trata de Marighella e, lamentavelmente, de grande parte da produção artística nacional.
Não vi o filme e não gostei muito desta resenha. Pelo visto Marighella ainda incomoda gregos e troianos. Marighella ao romper com o PCB (sublinho o verbo romper), rompeu com as concepções do PCB e criou para si e para a luta contra a ditadura concepções outras que seria interessante examinar com a devida atenção e seriedade para avaliar o Marighella todo como sugere o artigo. Talvez as categorias anteriores não sejam as mais indicadas para entender a mudança. O Marighella todo fez a sua autocritica na ação. Foi vencido. Também os communards de Paris foram vencidos e no entanto a história do movimento socialista seria outra, mais pobre, sem a audácia dos revolucionários de Paris.