Ken Loach e as angústias do trabalhador moderno

Diretor britânico, militante declarado de esquerda, é indispensável para entender o que se convencionou chamar de “filme político” — e também as angústias do proletariado

Ken Loach, vencedor de duas Palmas de Ouro em Cannes
por Henrique Nunes

Há no cinema um subgênero cada vez mais recorrente que pode ser chamado de “filme de mensagem”.  Não se trata necessariamente de obras em que, intencionalmente ou não, o espectador termine a audiência cravando teses ou tecendo teorias — como ocorre, por exemplo, com qualquer filme de David Lynch.

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O filme de mensagem está mais para a literalidade de um manifesto, não raro sujeito a cair num abismo de obviedades e lições de moral. Neste segmento podem estar obras medonhas como Independence Day (cuja mensagem é endossar o poderio bélico e a honra dos EUA) ou filmes razoáveis como Pantera Negra — que causou efeitos avassaladores na indústria do cinema ao defender a inclusão de negros não só no papel principal como em toda a linha de produção do set.

Ao lado deste lucrativo filão do mercado cinematográfico — onde também estão filmes religiosos, conservadores e ultrapatriotas — há outra prateleira: a dos filmes políticos. Hoje, este tipo de filme é mais conhecido por meio das cinebiografias de lideranças do passado ou do nosso tempo. Mas muitos filmes que não são necessariamente políticos (como o brilhante Nomadland) esbarram no tema e o levam para a tela de maneira ora sutil, ora escancarada.

Frances McDormand em Nomadland. Imagem: AP

Os filmes do britânico Ken Loach são um caso à parte. A depender do freguês, eles podem ser, sim, filmes de mensagem — com posicionamentos claros sobre temas como desemprego, falência da estrutura familiar e retirada de direitos.  Não há dúvida alguma, no entanto, de que sejam o que há de melhor em filme políticos há pelo menos duas décadas.

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Vencedor de duas Palmas de Ouro, o veterano é um caso raro, senão único, de cineasta assumidamente de esquerda, com trajetória ligada ao Partido Trabalhista britânico (do qual foi expulso recentemente por denunciar problemas dentro da legenda) e defensor incorrigível das classes trabalhadoras — embora refute os excessos da exposição midiática.

Ken Loach, duas vezes vencedor em Cannes

Um tanto discreto na vida pessoal, o veterano prefere se posicionar sem recorrer a verborragias panfletárias. Com estilo naturalista, Loach costuma fazer recortes certeiros (muitas vezes indigestos) sobre qualquer tema que se disponha a levar para a tela. Não se trata de levantar bandeiras progressistas e apontar caminhos fáceis como querem os militantes de internet de hoje. Loach faz estudos sociais a partir de pequenas tragédias do cotidiano que conseguem se desprender até mesmo do contexto geográfico em que as histórias acontecem.

Loach é, por isso mesmo, o mais urgente autor para quem procura entender — sem didatismo — a vida do trabalhador que sucumbe (nem sempre calado) às regras do capitalismo. É como se ele nos apresentasse teorias complexas do marxismo ou de outros pensadores progressistas a partir do ponto de vista de gente tão comum quanto eu e você — a não ser que você seja um empresário ou detentor do capital financeiro.

Três vezes Loach

Aos 85 anos, premiado e com carreira consolidada tanto no mainstream quanto no circuito autoral, Loach tem lançado filmes com intervalos relativamente curtos desde os anos 1960. Mas foi a partir dos anos 2000 que ele se consolidou como o mais agudo diretor de filmes políticos do cinema mundial.

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Muito desse status vem de três filmes indispensáveis para entender a sua obra. O primeiro deles é À Procura de Eric, de 2009, acertadamente chamado à época de “um conto de fadas proletário”. É uma rara imersão de Loach para o universo do fantástico, já que o protagonista (um carteiro em crise existencial e com ideias suicidas) que dialoga com Eric Cantona (o jogador de futebol e seu maior ídolo) em aparições “fantasmagóricas”.

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Procurando por Eric (2009). Imagem: reprodução

A conversa entre ambos é dessas mágicas que o cinema nos proporciona e que merecem ser revistas de tempos em tempos. Aqui está presente boa parte das características que tanto amamos em Loach: o drama social, a ambientação crua e realista, a luta de classes permanente, a solidariedade que um dia já fez da esquerda o melhor caminho a seguir.

Sete anos mais tarde, o diretor apresentaria em Cannes (e venceria) aquele que talvez seja o filme mais conhecido pelas novas gerações – Eu, Daniel Blake.  Após um infarto, o personagem que dá título ao filme tenta recorrer aos benefícios concedidos pelo governo, mas é sempre impedido porque os médicos dizem que ele está apto a voltar ao trabalho. Quando está prestes a desistir, ele encontra uma mãe solteira de duas crianças e a história ganha contornos, digamos, revolucionários. É um filmaço do começo ao fim e o que vemos na tela nos traz imediatamente de volta à realidade brasileira, com retirada sistemática de direitos, fim da aposentadoria e ataque à mão-de-obra assalariada do país.

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I, Daniel Blake (2016)

Em seu filme mais recente, Você Não Estava Aqui, outra pedrada sobre o universo proletário: após a crise financeira de 2008, um pai de família e sua esposa tentam sobreviver a qualquer custo com trabalhos na informalidade. Ao contrário de outros filmes do autor, há pouco ou quase nenhum espaço para certo alívio cômico e o espectador é levado a uma série de incômodos que se arrastam até o ato derradeiro. É o que hoje chamamos de “uberização” exibido de modo escancarado — e de um jeito que só Ken Loach sabe fazer.

Ken Loach é indispensável para entender (ou simplesmente sentir) as angústias do proletariado. Não sem oferecer sempre uma dose de esperança.

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Nota: difícil prestar “serviço” indicando filmes de um autor que não está nas plataformas de streaming. Numa pesquisa rápida, vi que ao menos dois dos três citados aqui podem ser alugados no Telecine.  Uma pena Loach não ter sua filmografia disponível tão facilmente.

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